pensamentos já não pegam
carona nas nuvens
do céu.
os dias acompanham
a degeneração das coisas
sem espanto.
não há mais visão
de anjos nem profetas.
não há mais poesia.
a aura do planeta
não é mais azul.
a escuridão se apossa de tudo
len
ta
men
te.
29 maio 2020
ZEITGEIST
[obra do
fotógrafo francês Philippe Echaroux]
28 maio 2020
NÁUFRAGOS
ó musa fugidia e divina
artesã da narrativa cósmica dos
seres
conta-nos o que já não podemos
vislumbrar
ou venha recriá-la com adendos.
por mais que estejas cansada
de artimanhas
e dos fazeres tempestuosos de
Cronos
por mais que teu coração esteja
constrangido
pelo padecimento dos seres
peço-te que não nos abandone
não nos deixe ser abraçados pela
ira
de Poseidon
que irritado com a loucura dos
povos
e governos
despeja-nos no mar revolto
da desesperança.
o que podes dizer que ainda não
foi dito?
quais imprecações ou bálsamo
teu canto pode inspirar?
quem sabe poderia nos lembrar
que somos frutos de um amar,
nutridos
no sal corrosivo do ultramar,
estrangeiros
em nosso próprio lar.
[obra A
Nona Onda, de Ivan Aivazovsky]
27 maio 2020
CREDO
entoar
uma canção
para
os que passam cabisbaixos
na
rua
e
reviver o olhar
que guarda as cores tenras
da esperança.
nem
tudo foi maculado.
ainda
há tempo
para
semear os campos
do
impossível.
mas
há que ser célere
e
apressar o passo alado
dos
sonhos que engravidam
o
tempo.
o
coração terá que pulsar, pleno
de
infância
no
lado esquerdo
do peito.
do peito.
[imagem: Robert &
Shana ParkeHarrison, ‘Burn Season’, 2003]
26 maio 2020
A VASTA NUVEM
há muitas espécies de flores
árvores, ervas em série e tamanhos
no planeta inundam todas as cores
por mais que haja perdas e ganhos
o abraço do céu se ergue no mundo
e a chuva deságua sobre os rebanhos
por mais que te chames Raimundo
comungas da mesma aflição
enquanto alguns param, outros estão no gerúndio
às vezes tu dizes o sim, outras preferes o não
mas como tudo é tão vário
e bebemos da mesma chuva e clarão
talvez seja mesmo tão raro
encontrar rimas em tamanha profusão
ou quem sabe a beleza seja tudo ser assim tão ignaro.
25 maio 2020
NOSTALGIA
para
Ricardo Rizek
de
tudo restará o gosto
da
amora.
os
trevos azedinhos que recolhemos
no
caminho da escola.
os
piqueniques e os lambe-lambes
no
Jardim da Luz.
os
patinhos na lagoa.
nós
dois, pombinhos
na
gamboa.
aquela
matemática inspirada,
a
música das estrelas,
o
desejo e suas faíscas
cadentes.
a
soma dos catetos
do
quadrado da Bruna Lombardi.
o
pulsar de luzes na memória.
pontos
luminosos
a
nos lembrar
que
a vida foi boa
que
a vida tem sido boa
mas
que deve haver mais.
sim, tem que haver mais.
24 maio 2020
LÓTUS
Primavera
já chegou
com
seu memento.
Na
sombra ainda faz frio.
No
sol aqueço o juramento.
Agora
tudo transparece
como
realmente é.
Tudo
já foi ínfimo.
Tudo
já foi vento.
Muito
passou por minhas mãos.
Trevo
de cinco pontas.
Vida
soprando generosa.
Benefícios
em profusão.
Mas
meu querido amigo
não
sobreviveu ao inverno
rigoroso.
Recito
por ele e por mim
caracteres da Lei Maravilhosa.
Uma
flor já brota na lama
de
outras terras.
A
certeza renovada
de
que mesmo lá
‘o
inverno nunca falha
em
se tornar
primavera’.
23 maio 2020
CRISÂNTEMO
Como
uma palavra pode
ser
tão bela,
soar
como a vida
e
ao mesmo tempo
carregar
o perfume
da
morte?
[A
dama crisântemos, de Edgar Degas]
22 maio 2020
21 maio 2020
AMÉRICA
Enquanto isso a brasa do Brasil beija o brejal,
e seus
estandartes se erguem aos céus em labaredas
a derreter
estrelas, a enterrar anseios e projetos no areal.
Melhor
seria morrer em guerras menos híbridas,
e não se entregar
assim de mão beijada
nem ver
Iracema com seu sexo e senso devassada.
[Iracema, de José Maria de Medeiros, 1881]
20 maio 2020
CIDADE IMAGINÁRIA
a busca
principia e se finda no coração
na longa
jornada, dia a dia, se oficia
e ao
final nos brinda com a claridão
no meio
do caminho de minha vida
viajante
que sou por sendas selváticas
ouço
falar de cidade tão querida
com
dadivosos tesouros e benefícios enfáticos
sua
existência - nutriente da procura
leva-me
adiante em ofício tão errático
encontrá-la,
amacia o ferro-vida que perdura
habitá-la,
ultrapassa o mundo-lida já tão lábil
desposá-la,
é a felizcidade em tessitura
se até
aqui nada me havia sido fácil
agora
verei do que realmente o laço é feito
em nada
me adiantou ter sido hábil
tal
estrada abriga horrores em seu leito
terríveis
desertos, terra inóspita e dardejante
falta-me
ar, me dá sede, a derrota arde-me no peito
corpo em
espírito antes tão flamejante
arrefece
exausto e amedrontado foge
- chega
de tempestades e sol escaldante!
queria
eu estar nesta hora que consome
a
reviver instantes da memória
lugares
que vivi e o deleite que me some
porém, o
sábio mestre da vitória
com
hábeis meios de uma melodia
soa o
canto que nos leva à possível glória
aquele
que conhece o caminho - o guia
presença
que em si é a ênfase do tesouro
disciplina
o ser e as almas fugidias
em meio
ao sofrimento vislumbro o ouro
a
imensidão do desejo em seu oásis
a
alegria reluzente, as dores em sumidouro
o
cansaço esvanece - um desenho a lápis
os
contornos da dor desaparecem na fumaça
tudo
esqueço, retornar ou desistir – jamais!
sob meus
pés a exuberância se enlaça
revela-se
íntegra uma cidade tão fantástica
o
paraíso em delícias nos perpassa
o mestre,
com sua voz sonora e dramática
diz que
não, estávamos no meio da jornada
a cidade
é imaginária, pura névoa carmática
19 maio 2020
AWAKENING
Te
Chuan Su sonhou
ser uma mariposa listrada,
esvoaçante.
Ao acordar, não sabia mais
se era um homem que sonhara
ser mariposa,
se era o mar, uma meretriz,
ou uma mariposa que sonhava
ser um homem
esvoaçante.
ser uma mariposa listrada,
esvoaçante.
Ao acordar, não sabia mais
se era um homem que sonhara
ser mariposa,
se era o mar, uma meretriz,
ou uma mariposa que sonhava
ser um homem
esvoaçante.
18 maio 2020
ARCANOS
escavar
a memória cósmica
dos
homens
e
fazer a arqueologia
de
uma possível eternidade.
recuperar
aquela mística cintilação
que
se apagou
e
desbaratar a teia que enreda
todos
os segredos.
despertar
a alma que viaja
cega
e inconsciente
e
torná-la plena anfitriã
deste
momento.
17 maio 2020
Haicais para Olga Savary
***
***
***
Tigre de ternura
com o Sutra do Lótus
em riste: Buda.
***
***
Ventos de janeiro.
As árvores esbravejam
sem controle algum.
***
Névoa no campo-santo.
Os que se despedem
quanto ainda viverão?
16 maio 2020
SAGRADO
labareda e
sua língua
de
ímpetos.
claridade
que nos toca
compassiva.
aquele
ardor de tempos
remotos.
o rumor de
épocas
futuras.
a luminescência
de seres
irmanados.
o amor, o
amor, o amor.
15 maio 2020
DHARANI
palavras são instiladas com a energia
da vida.
jvale mahajvale
uma lei maravilhosa permeia o cosmos
e rege tudo o que pulsa.
uke muke ate atavati
som e sentidos se apossam da conversação
do mundo em eterna hesitação.
nrite nritavati
a vontade de potência se manifesta
na palavra emancipada.
itini vitini chitini
um bom poema é uma catedral de dharanis.
nritini nrityavati
um waka ideograma todo o Japão.
novas palavras criam novas realidades.
a palavralada como flecha lançada
não retorna mais.
myoho renge kyo
o cerne do ser é atingido
no alvo.
dharani, do sânscrito, frase ou fórmula mística que tem o poder de
proteger e beneficiar quem a recita. “Dharani” é interpretado nas escrituras
budistas chinesas como “sustentar”, “manter” ou “reter”. Dizem que a pessoa que
mantém e recita um dharani é considerada hábil em se lembrar de todos os
ensinamentos do Buda e em rechaçar influências maléficas. Nome do capítulo 26
do Sutra do Lótus.
Assinar:
Postagens (Atom)