01 junho 2020

ULISSES


















        pior do que ouvir
        o canto das sereias
        é não ouvi-lo.
        ter as orelhas tapadas
        com a cera da apatia.
        sorrir ao próprio umbigo
        enquanto o barco
        à deriva, ruma direto
        ao abismo.






31 maio 2020

FALA XAMÃ





          poesia é moldar no céu
          da linguagem
          universos paralelos.

          realizar um milagre qualquer  
          transverberado 
          em palavras-valise.

          revelar-se subitamente 
          e desaparecer 
          aos olhos de todos.
         
          poesia é uma revoada
          de arribaçãs.




30 maio 2020

MEDITO





    








    uma gota de orvalho desvanece
    ao raiar do sol.
    um pingo de chuva se funde
    ao oceano cósmico da existência.
    um grão de areia irmana-se
    às margens do Rio Ganges.
    um coiote uiva solitário
    no deserto árido do Arizona.
    um acorde de Bach reverbera
    nos tubos de uma pequena catedral gótica.
    um mantra fulgura entre os oitenta
    e quatro mil ensinos do Buda.
    a vibração de uma Lei maravilhosa
    envolve a tudo.
    enfim eu sou o todo 
    e o todo sou eu.
    três mil mundos se configuram
    neste ínfimo instante da vida.
    refaço assim o cosmos que há dentro
    e lá fora de mim.







29 maio 2020

ZEITGEIST















pensamentos já não pegam

carona nas nuvens

do céu.

os dias acompanham

a degeneração das coisas

sem espanto.

não há mais visão

de anjos nem profetas.

não há mais poesia.

a aura do planeta

não é mais azul.

a escuridão se apossa de tudo

                                               len

                                                     ta

                                                        men

                                                               te. 










[obra do fotógrafo francês Philippe Echaroux]







28 maio 2020

NÁUFRAGOS
















 

ó musa fugidia e divina

artesã da narrativa cósmica dos seres

conta-nos o que já não podemos vislumbrar

ou venha recriá-la com adendos.

por mais que estejas cansada

de artimanhas

e dos fazeres tempestuosos de Cronos

por mais que teu coração esteja constrangido

pelo padecimento dos seres

peço-te que não nos abandone

não nos deixe ser abraçados pela ira

de Poseidon

que irritado com a loucura dos povos

e governos

despeja-nos no mar revolto

da desesperança.

o que podes dizer que ainda não foi dito?

quais imprecações ou bálsamo

teu canto pode inspirar?

quem sabe poderia nos lembrar

que somos frutos de um amar, nutridos

no sal corrosivo do ultramar,

estrangeiros

em nosso próprio lar.




[obra A Nona Onda, de Ivan Aivazovsky]











27 maio 2020

CREDO















entoar uma canção
para os que passam cabisbaixos
na rua
e reviver o olhar 
que guarda as cores tenras 
da esperança.
nem tudo foi maculado.
ainda há tempo
para semear os campos
do impossível.
mas há que ser célere
e apressar o passo alado
dos sonhos que engravidam
o tempo.
o coração terá que pulsar, pleno
de infância
no lado esquerdo
do peito.




[imagem: Robert & Shana ParkeHarrison, ‘Burn Season’, 2003]









26 maio 2020

A VASTA NUVEM













há muitas espécies de flores
árvores, ervas em série e tamanhos
no planeta inundam todas as cores

por mais que haja perdas e ganhos
o abraço do céu se ergue no mundo
e a chuva deságua sobre os rebanhos

por mais que te chames Raimundo
comungas da mesma aflição
enquanto alguns param, outros estão no gerúndio

às vezes tu dizes o sim, outras preferes o não
mas como tudo é tão vário
e bebemos da mesma chuva e clarão

talvez seja mesmo tão raro
encontrar rimas em tamanha profusão
ou quem sabe a beleza seja tudo ser assim tão ignaro.







25 maio 2020

NOSTALGIA















para Ricardo Rizek


de tudo restará o gosto
da amora.
os trevos azedinhos que recolhemos
no caminho da escola.
os piqueniques e os lambe-lambes
no Jardim da Luz.
os patinhos na lagoa.
nós dois, pombinhos
na gamboa.
aquela matemática inspirada,
a música das estrelas,
o desejo e suas faíscas
cadentes.
a soma dos catetos
do quadrado da Bruna Lombardi.
o pulsar de luzes na memória.
pontos luminosos
a nos lembrar
que a vida foi boa
que a vida tem sido boa
mas que deve haver mais.
        sim, tem que haver mais.




24 maio 2020

LÓTUS

















      Primavera já chegou
      com seu memento.
      Na sombra ainda faz frio.
      No sol aqueço o juramento.

      Agora tudo transparece
      como realmente é.
      Tudo já foi ínfimo.
      Tudo já foi vento.

      Muito passou por minhas mãos.

      Trevo de cinco pontas.
      Vida soprando generosa.
      Benefícios em profusão.

      Mas meu querido amigo
      não sobreviveu ao inverno
      rigoroso.
      Recito por ele e por mim
      caracteres da Lei Maravilhosa.
      Uma flor já brota na lama
      de outras terras.
      A certeza renovada
      de que mesmo lá
      ‘o inverno nunca falha
      em se tornar
      primavera’.





23 maio 2020

CRISÂNTEMO

















Como uma palavra pode
ser tão bela,
soar como a vida
e ao mesmo tempo
carregar o perfume
da morte?




[A dama crisântemos, de Edgar Degas]






22 maio 2020

21 maio 2020

AMÉRICA
















Enquanto isso a brasa do Brasil beija o brejal,
e seus estandartes se erguem aos céus em labaredas
a derreter estrelas, a enterrar anseios e projetos no areal.

Melhor seria morrer em guerras menos híbridas,
e não se entregar assim de mão beijada
nem ver Iracema com seu sexo e senso devassada.




[Iracema, de José Maria de Medeiros, 1881]





20 maio 2020

CIDADE IMAGINÁRIA


















a busca principia e se finda no coração
na longa jornada, dia a dia, se oficia
e ao final nos brinda com a claridão

no meio do caminho de minha vida
viajante que sou por sendas selváticas
ouço falar de cidade tão querida

com dadivosos tesouros e benefícios enfáticos
sua existência - nutriente da procura
leva-me adiante em ofício tão errático

encontrá-la, amacia o ferro-vida que perdura
habitá-la, ultrapassa o mundo-lida já tão lábil
desposá-la, é a felizcidade em tessitura

se até aqui nada me havia sido fácil
agora verei do que realmente o laço é feito
em nada me adiantou ter sido hábil

tal estrada abriga horrores em seu leito
terríveis desertos, terra inóspita e dardejante
falta-me ar, me dá sede, a derrota arde-me no peito

corpo em espírito antes tão flamejante
arrefece exausto e amedrontado foge
- chega de tempestades e sol escaldante!

queria eu estar nesta hora que consome
a reviver instantes da memória
lugares que vivi e o deleite que me some

porém, o sábio mestre da vitória
com hábeis meios de uma melodia
soa o canto que nos leva à possível glória

aquele que conhece o caminho - o guia
presença que em si é a ênfase do tesouro
disciplina o ser e as almas fugidias

em meio ao sofrimento vislumbro o ouro
a imensidão do desejo em seu oásis
a alegria reluzente, as dores em sumidouro

o cansaço esvanece - um desenho a lápis
os contornos da dor desaparecem na fumaça
tudo esqueço, retornar ou desistir – jamais!

sob meus pés a exuberância se enlaça
revela-se íntegra uma cidade tão fantástica
o paraíso em delícias nos perpassa

o mestre, com sua voz sonora e dramática
diz que não, estávamos no meio da jornada
a cidade é imaginária, pura névoa carmática





19 maio 2020

AWAKENING





















Te Chuan Su sonhou
ser uma mariposa listrada,
esvoaçante.
Ao acordar, não sabia mais
se era um homem que sonhara
ser mariposa,
se era o mar, uma meretriz,
ou uma mariposa que sonhava
ser um homem
esvoaçante.





18 maio 2020

ARCANOS





















escavar a memória cósmica
dos homens
e fazer a arqueologia
de uma possível eternidade.

recuperar aquela mística cintilação
que se apagou
e desbaratar a teia que enreda
todos os segredos.

despertar a alma que viaja
cega e inconsciente
e torná-la plena anfitriã
deste momento.