19 junho 2020

JAZZ

















o grave que jaz em nós
é o oco profundo do mundo.
uma frequência que desarmoniza
qualquer possibilidade de felicidade.
mas somos negros e algo em nós
resiste e grita.
nossa alma baila em moonwalk
no submundo do Hades.
aqui, nos Estados Unidos, em África
as mesmas marcas foram cravadas
nas estruturas.
o Brasil nos deu tudo de solapa.
uma ginga que encanta
quem não é bamba.
no ver da gente o samba
é pedra-mor.
nossas pegadas foram pregadas
na pedra
e buscamos sofregamente
decifrá-las.






18 junho 2020

TESSITURA














            o presente é ambidestro
            e nem sempre nos apetece
            mas é nele que a vida tece
            se faz presto e acontece.





17 junho 2020

HOMILIA












oh, poesia que irradia
ópio nosso de cada dia
dai-nos hoje a utopia
o contraveneno à afasia
devolva-nos por garantia
a tão usurpada alegria.






16 junho 2020

POBRE

















aquele de quem tiraram 
tudo o que tinha
e o fizeram querer tudo
aquilo que não pode ter.
aquele que fizeram crer
ser quase podre
e desejar aquilo tudo
que não pôde ser.




15 junho 2020

ANTES DO FIM













          para Sophia Miki e Tom Mitsuo



chegar ao outro lado da piscina Olímpica
e dar uma olhadinha pro céu azulado.

esperar a próxima florada das cerejeiras
passeando pelos parques do Japão.

cantar a música que ela tanto adora
e fechar os olhos na hora do beijo.

caminhar pela mata amazônica
e fotografar um Euhybus ikedai.

tirar uma self na Torre Eiffel
e depois mergulhar no Rio Sena.

tocar Praia de Morigasaki ao violino
e desaparecer enquanto todos estiverem chorando.

chegar à beira do Grand Canyon
e gritar a plenos pulmões: Sensei, eu venci!





14 junho 2020

TAO





















   o mestre taoista
   ao se apaixonar caligrafou:
   “Agora sim eu vi o dragão”.









13 junho 2020

HASARD

















não há acaso no pós,
apenas o caos e seu abraço
a gerar inúmeros dados.
nenhum lance de sorte
é esperado.
não há chance. no way.
apenas o fado
e seu bailar desastrado.
o deslizar dos dados
no tabuleiro da vez.
o xeque-mate do enfado
e o desespero do rei.






Nota:
1) poema enviado (e não selecionado) ao Arte como Respiro: múltiplos editais de emergência do setor de cultura dos banqueiros do Itaú/Unibanco.

2) compartilho comentário do poeta Marcelo Ariel que reflete o que eu penso a respeito desses editais culturais de fome patrocinados por bancos e adjacências:

Não deveria perder meu tempo comentando isso mas não é bom que passe em b(r)anco: Se um banco que obteve um lucro líquido contábil de R$ 3,401 bilhões no primeiro trimestre de 2020, quisesse realmente criar um auxílio emergencial para as artes criaria uma linha de crédito de no mínimo trinta milhões de reais com abertura imediata de conta para subvenção a fundo perdido.O critério seria inclusivo para artistas desempregados e/ou com renda inferior a um ou dois salários mínimos impactados pela pandemia, obviamente isto seria em uma segunda fase extensivo para microempresas. (Pequenas editoras, sebos, revistas e fanzines culturais, pequenas gravadoras independentes, centros culturais em zonas de exclusão, livrarias alternativas e produtoras culturais em geral ) Essa medida iria atingir infinitamente mais pessoas do que um edital seletivo e exclusivo que no fundo é uma operação de divulgação de marca que utiliza menos de 0,02% da renda líquida do primeiro trimestre de 2020 do não referido banco. Obviamente participei e participo sem ilusão ou ressentimentos de todos os editais abertos , sei da importância deles, não somos otários mas os bancos pensam que somos.











12 junho 2020

NA ESTRADA

















      araucárias choram.
      pinhas espalhadas
      pelo gramado molhado.







11 junho 2020

LINGUAGEM



















outeiro criado de acúmulos
tegumentos enrijecidos
essências exteriorizadas

depósito de antiquíssimas
coisas que não deterioram

plástico cheio de esperma
restos que não evaporam
interiores de madrepérola

coisas não transformadas
em objetos de adorno

palavras não específicas
lamelibrânquios lâmina
branca de sentidos

forno onde se calcina
a cal da memória

fábrica de desmundos
mijos de civilizações
sambaquis

tudo que o tempo não esquece
nem envaidece

kjokkenmodding








Nota: Na foto, Ezra Pound em Veneza, local em que morreu, que foi um mestre no quesito linguagem literária. O poema acima faz parte de meu primeiro livro Sortilégio. Descobri em meus arquivos um comentário inesperado do grande Augusto de Campos (enviado por email depois do livro lançado) que nunca havia compartilhado, nem publicado. Compartilho agora e notem que, claro, aceitei sua sugestão:

Caro Edson,


                    Ezra Pound dizia que os velhos não devem dar opinião sobre os mais novos, porque eles tendem a gostar daqueles que se parecem consigo mesmos. Em suma, os velhos são gente suspeita. No caso do SORTILÉGIO eu sou mais suspeito ainda, porque venho de ser tratado por vocês com uma generosidade inusitada e imerecida.  Em suma: como diríamos hoje no nosso lulês cotidiano, os septuagenários  “não deveriam meter o nariz” no trabalho daqueles a quem passam a bandeira. Mais atrapalham do que ajudam. Nos últimos anos de vida, quando já quase não falava, solicitado para dar um conselho aos jovens, respondeu o Ol’ Ez: “Curiosity, curiosity“. Curiosidade é o que não falta a você. O que sei dizer é que sua poesia tem garra e é tratada com esmero. Naturalmente, pelo vício original apontado por Pound, prefiro os poemas curtos, que você domina com segurança. Nada contra as tercinas (que necessitariam de mais precisão rítmica) ou os versos mais largos, onde há experiências interessantes como Lágrimas, com a sonoridade dos seus países e lugares, parecendo-me mais do que válido que você se exercite em diversas frentes. Porém a impressão que tenho é que, ao menos nesta fase, você se move, paradoxalmente, com mais fluidez e precisão, no verso enxuto. [Uma sugestão de amigo. Por que o “se envaidece” no bom poema LINGUAGEM? O problema gramatical é que a gente se envaidece “de” alguma coisa, o que parece conflitar com aquele “esquece”. Mas pode-se empregar perfeitamente “envaidece”, como transitivo, com uma pequena torção no significado. Acho que você poderia usar com vantagem “tudo o que o tempo não esquece/ nem envaidece.”]

Abraço grato, impertinente e suspeitíssimo do
                                                                     Augusto de Campos






10 junho 2020

PORTAL DO DRAGÃO



[a propósito de uma parábola budista]


quando o torpor do sono vem
e o ser apaziguado fica

algo enfim desperta e bem
com o sonido d’água precipita

tal sonho dentro de um sonho
a imagem de um peixe nos habita

salta pra fora num dançar bisonho
buscando o topo da queda entrevista

(nunca é fácil a uma carpa
transformar-se em um varão)

assim como os ciprinos buscam
o portal do dragão

assim como os poetas anseiam
enxergar na escuridão

assim como o plebeu almeja
algum dia ser barão

todos o seres ensejam
atingir a iluminação

parece fácil feito tocar harpa
tatuar o sim na água do não

uma rima pobre como bordão
vem repetir o mesmo refrão

não desanimem, insistam
superem o limite do ego falastrão

pois ninguém escapa da morte
nem mesmo o grande dragão.




09 junho 2020

PANDEMÔNIO




























as garras da noite infiltraram-se

sorrateiras

na hesitante luminosidade

dos dias.

 

a lição que nos ensina

com seu manto de névoas

não será fácil assimilar.

 

em tempos de trevas

mitologias e religiões confundem-nos

ainda mais.

 

os sonhos foram expulsos

e le cheval noire de la nuit encarcera

todas as imagens luminosas.

 

o que engendramos em vigília

já não inspira qualquer transcendência.

 

pode ser que não sejamos mais humanos

e alguma mutação ôntica já tenha

se instaurado.

 

talvez não seja mais possível zombar

da multidão de deuses

nem esquecê-los.

 

quiçá tenhamos de lhes fazer libações

para domesticar a legião de demônios

que despencou dos palácios de Satã.

 

o que se instaurou sobre nós

é o informe Caos à espera

de algum demiurgo.

 

uma símile corrompida do Paraíso Perdido

com versos que eliminaram

qualquer possibilidade

de redenção.

 











   [Imagem: “O Trono do Caos”, de Gustave Doré]















08 junho 2020

CARAVANA SOLITÁRIA




duas flores desiguais: o amor e o desamor
entre a pétala e a sépala floresce um cosmos

do nascimento à morte o mistério jaz
de um limite ao outro o extremo se perfaz

há gente que mata como quem vive
há outros que imitam um serial killer

de tudo sobra quase nada
gota de orvalho na manhã do Saara

os cães já não me seguem
os lugares todos me desertam

vivo pisando no chão dos nefelibatas
toda a vida é um acontecimento sinistro

o segredo da noite recolhe meus cacos
uma flor oferece seu pistilo

eu sigo acariciando meu destino.




[composição, voz e violão: Reynaldo Bessa; poema: Edson Cruz]





07 junho 2020

ANOITECER NA FLORESTA





     





















     para o menino Thiago de Mello


     é a hora do sono dos jacarés.

     pálpebras pesadas se fecham
     em sibilino ressonar 
     no mormaço.

     o remanso do poeta se aproxima.

     no desaguar majestoso dos rios,
     um borbulhar ressoa no espesso
     cansaço e seu abraço.

     o tempo se espraia
     em atávicos igarapés.

     um gavião silva e sobressalta
     o manso descanso do vate.

     o silêncio envolve tudo
     em seu arremate de asas.

     o menino Thiago desliza 
     em sua canoa de sonhos
     pelas águas negras do rio.

     estrelas se refletem nas águas
     e pirilampos tremeluzem
     em seus cabelos.



[Thiago em sua casa preparando-me um copo de Mirantã]






06 junho 2020

FUTEBOL EM BAGDÁ














o jovem Salfullah Al-Ansari
se explode
antes do apito final.

em um átimo, já não há
mais nada:
jogos
sonhos
           beijos
amigos risonhos.

só a dor, o vazio
               surdo
do estampido.
os pedaços, os corpos
carcomidos.

o clarão, a luz
de existências detonadas.
a expansão do universo
                            em disparada.