19 dezembro 2007

O poeta das grandezas do ínfimo




Eu sempre quis conhecer um poeta pessoalmente. É diferente de você lê-los nos livros, ouvir as poesias na sala de aula, ver aquelas fotos em preto-e-branco nas enciclopédias e ficar imaginando como ele seria realmente em carne e osso.

Meu sonho era de ter podido dialogar, pedido dicas, de Manuel Bandeira, ou Carlos Drummond de Andrade. Esses não consegui, mas me encontrei com outros grandes poetas. Hoje vou falar de um bem especial: Manoel de Barros.

Em 1996, juntamente com os amigos Marcelino Freire e Sourak Aranha, em pleno carnaval, fomos até Campo Grande (MS) e batemos em sua porta. Claro que antes ligamos, nos hospedamos em um hotel e marcamos o melhor horário para a visita.

Foi um encantamento. Almoçamos com ele e a esposa. Todo grande homem é gentil. No caso dele, também um grande poeta, a gentileza fazia concorrência com o silêncio.

É um homem simples que fez uma opção, em sua poesia, pelas coisas jogadas fora. Aquilo que a civilização costuma desprezar serve para a poesia, disse ele apertando os olhinhos. Para você ter idéia, um de seus livros chama-se “Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo”; outro ele nomeou de “Livro sobre Nada”; e outro, ainda, “Arranjos para Assobio”. São títulos que já revelam a natureza de seu ser e de sua poesia.

Neles você pode encontrar versos deste tipo:

Meu desagero
é de ser
fascinado por trastes.

Note que a palavra “desagero” não existe. Ou melhor, não existia até ele criá-la. Ele me disse com todas as letras que, para ele, “poesia é um fenômeno de linguagem”. É preciso descascar as palavras e fazê-las ter relacionamentos incestuosos. Se não existirem é preciso inventá-las. Se já existem com muito uso, é preciso arejá-las.

Há um comportamento de eternidade nos caramujos.
...
Eles carregam com paciência o início do mundo.

Manoel é um observador das coisas miúdas da vida. Com seus poemas nos ensina a reenxergar o mundo e a valorizar as coisas mais essenciais. Ele acabou de completar 91 anos, mas continua vivendo uma infância poética que comove a (quase) todos que se aproximam de sua poesia. Nunca mais fui a Campo Grande, mas Manoel não sai de minha cabeceira.

17 dezembro 2007

Insignia


[paradisaea rubra]

habito
este mundo

ave del paraíso
sin piernas

borrador
que no posa

nunca
.
[tradução: Adriana de Almeida]

14 dezembro 2007

Penúltimo poema del fútbol



La fijeza de la supremacia degeneraba en danza de friso, de transportes perlados, la expansión desmesurada del juego...


La silueta el jugador C.

Era un apolo
Negro,
Tallado en un tronco de algarrobo
Negro.
Alto, violento sin espasmos,
Como un atleta,
Opresso en la armonía muscular
De su estampa,
Como en un gran espíritu,
Poseía el zancajo sereno
Y la orientación de la gambeta.
Certero y peligroso,
Tenía una tirada a fondo
Que desnudaba toda la pierna
Negra.
(Danza descuartizada)
Y en la danza
Y en la inspiración,
Un refilón de biela
Negra.


[Bernardo Canal Feijóo (Santiago del Estero, 1897 – Buenos Aires, 1982). Foi uma figura central da cultura argentina do século XX. Como poeta publicou os livros Penúltimo poema del fútbol (1924), Dibujos em el suelo (1927), La rueda de la siesta (1930), Sol alto (1932) e La rama ciega (1942). É autor de uma extensa e brilhante produção teatral e ensaística, que inclue títulos como Nan (1932), Pasión y muerte de Silvério Leguizamón (1937), Confines de Occidente (1954) e Tungasuka (1968).]

12 dezembro 2007

Foro de Editores de Publicaciones Independientes


[foto de Andréa del Fuego: Gustavo López, Márcio André, Julio Daio Borges, Marina Kogan e Edson Cruz]

A mesa acima aconteceu em Buenos Aires, dentro do Encuentro de Interrogación organizado pela Fundación Centro de Estudios Brasileños e pelo Itaú Cultural.
Nosso companheiro virtual, e de mesa, Julio Borges (que é muito articulado e pronunciou seu sobrenome, na portaria do Gran Hotel Buenos Aires, de um jeito que me fez inveja), do Digestivo Cultural, gravou (e cedeu gentilmente) todo o papo da mesa. Se você tiver interesse é só clicar aqui. Na mesa também se posicionaram e dialogaram conosco, Rogério Pereira (do Rascunho, que aliás mostrou e nos entregou uma supimpa edição especial do jornal ), Bruno Dorigatti (do Portal Literal), Paula Siganevich (da revista para escuchar VOCAL) e Guadalupe Wernicke (se não estou trocando os nomes e revistas...).
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11 dezembro 2007

brasil colônia




nenhum mulato
negro índio
ninguém tingido
por água salgada
vindo

exercerá função
de ourives mesmo
aquele que liberto
um dia com seus
sapatos a luzir

nem o outro
se conseguiu bem mais
precioso tanto faz
se tem coração
ouro branco

artíficie de metais
nobres há que ser
impecável
sem marcas
cicatrizes
não ungido
sem excesso
de melanina

algo assim próximo
da matéria alva
com que se tinge
o mundo
visão última
de quem
se entrega
à morte

08 dezembro 2007

O Buda, ou aquele que despertou


a última luz do dia já se consome
e o bom médico retornando à sua casa
presencia o veneno a destruir sua prole

ingênuos tomaram aos goles a desgraça
ingeriram um mortífero ungüento
e já sofriam os efeitos de tal traça

o hábil médico se apressa por um momento
em seu femento de ervas variadas
com qualidades que alivie o sofrimento

sendo perfeito em fragrância e na cor dada
de exuberante sabor tão desejável
a evitar a morte prefigurada

alguns aceitam o antídoto amigável
outros recusam-no abraçando-se a loucura
forçam o pai a arquitetar um meio hábil

pra motivá-los e livrá-los da amargura
sem questionarem se fará ou não efeito
pois o que é certo se faz presto e sem lonjura

e logo vê-se florescer o que é bem feito
dizer que a morte o rodeia em viagem
e se sozinhos ficarem neste eito

devem beber sem rodeios da enfermagem
logo depois de sua ausência tão sofrida
manda a seus filhos uma rápida mensagem

a que rondava agora lhe dava guarida
filhos queridos já não poderia tê-los
e do convívio lhe roubava a vida

atormentados pela perda e pouco zelo
vêem o remédio com uma cor tão excelente
e experimentá-lo decidem, então, fazê-lo

a cura vem em tal gesto tão premente
e os nefastos efeitos esvanecem
com pai e filhos a celebrar o fato alegremente.

02 dezembro 2007

Arte



o banheiro
é meu reduto
absoluto

templo onde
passo o tempo
a obrar


[ilustração: Majane Silveira]

30 novembro 2007

Corazón

aquí
en este lugar donde
el aire enrarecido arde
rehago mi inventario
de sombras

aquí
en este lugar como
la hecatombe en mi pecho actúa
dibujo garabatos
en matices

aquí
en este lugar cuando
el patio de mi casa yace
se encuentra la matriz
del universo

aquí
en el corazón de este lugar
con ojos húmedos a encararme
aquel chico que un día
fui



[tradução: Adriana de Almeida]

27 novembro 2007

Cortes



há um rio que nos
separa
dos outros rio
lethos de esquecimento
encalhes
de duplicidade

o mundo é outro
para o ser
segundo a dualidade
de sua atitude
nossa

a margem que nos
encalha
no outro é a mesma
pele que nos irmana

quem vislumbra
o tu
permanece em relação
aquele que comunga
somente o isso
não é não
está só


[ilustração: Majane Silveira]

25 novembro 2007

Tombo



anuros
de etimologia obscura

mergulhos
em tanques imundos

sapos
coaxando ali

tudo
à revelia de mim

apupos n’alma



[quadro de Sabine Liva Berzina | Haiku water]

23 novembro 2007

Escolhas



crianças equilibram
borboletas e planetas
homens enxugam copos
com sua dor

mulheres geram gafanhotos
vozes de soprano ao fundo
o artista recolhe o essencial
um esboço

o profeta berra ao vento
boca em sirenes
o filósofo pensa ao andar
tudo é estilo e concisão

o bêbado balbucia
sem coerência
sirenas, sirenas
abra os olhos errante

o poeta embaralha
tudo do cio ao silêncio
alerta os navegantes
abrolhos com escolhos


[ilustração: Majane Silveira]

22 novembro 2007

As sombras



enquanto o sol gira
e queima
em torno da constelação
Alcione
não aquela dos sambas e pistão
a outra que nos contamina
a todos e a tudo
com seus fótons e energias
sutis nós, os chamados humanos
seguimos entre escombros
a acumular mortes
e assombros

20 novembro 2007

15 novembro 2007

Roberto Piva




A PIEDADE

Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento
abatido na extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da
luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam
cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio
bóia? por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as
estátuas de fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos
pederastas ou barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam
que tenho todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos
pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas
asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
dos meus sonhos

[Confira, também, entrevista quentinha com o Piva na TV CRONÓPIOS]

13 novembro 2007

SOPHIA

 

minha bruxinha querida
a assombrar os dias
luzes insuspeitadas
nas mãozinhas delicadas

a preencher nossas noites
estrelas nunca cintiladas
em céus gregos ou egípcios
perguntas d'o que é isso?

alfabetos sinuosos tatuados
páginas amareladas de minha
vida a balbuciar afetos de sofilha
acepções ignoradas da felicidade

10 novembro 2007

Estado de espírito



há manhãs de sábado
que nem o cheiro
do café
o jornal aberto
sobre a mesa
o sorriso franco
da amada
suprem o oco
do corpo a corpo
com a vida
desperdiçada a cada
dia dado
dádiva imerecida

09 novembro 2007

Gonfotérios B

temos ossos em demasia
gordura que brota pelos ouvidos
escorrendo pelo pescoço desmedido

temos que enxugar nossos acúmulos
moer nossa coluna num triturador de açougueiro

nossa massa de orgulho encefálico será
servida fatiada com rodelas
de tomates fritos

o que sobrar de nosso ego lançaremos num formigueiro faminto e sem escrúpulos

depois é só amarrar linha sem cerol no dedão do pé e preso a árvore mais alta soltar-se aos desvarios dos ventos e tempestades num treinamento catártico de infância

um dia a linha puída pelo destempero se romperá e não saberemos mais nada sobre bancos, cadeiras ou telefones.

a gente é rascunho de gente.


letra e voz: Edson Cruz
música: Pipol
confira em www.cronopios.com.br/site/poesia.asp?id=483

07 novembro 2007

Me encanta


[Praça de Maldonado. Foto: Ignacio Fernández de Palleja]


Uma coisa me chamou muito a atenção em Maldonado, Uruguai. A presença da rede MacDonald's com a placa “Me encanta”. Essa expressão é tão bonita que fiquei meio enojado com o uso espertalhão dela pela rede. O “M” casando bem com “Me”. Depois fiquei sabendo que houve muita resistência dos uruguaios contra a entrada da rede no país. Mas, parece, que não foi suficiente.

Uma grande figura que conheci por lá foi o Ignacio Fernández de Calleja. Ele fala muito bem o português e faz parte da nova geração de escritores e pensadores da literatura e cultura uruguaia. Levou-me, numa noite daquelas, a um programa de rádio comunitário feito por ele e amigos. Um programa supimpa. Li alguns poemas meus e alguns minicontos do Evandro Affonso Ferreira, com tradução simultânea dele, e fundo musical brasileiro.

Ignacio fez uma entrevista com o escritor gaúcho Aldyr Garcia Schlee, que você pode conferir no Cronópios.

Abaixo, a meu pedido, ele faz suas considerações sobre a entrada da rede por lá.




Not Mac or Not Mac

Si tengo un hijo le voy a explicar, a escondidas de la madre, que la “M” grande significa “mierda”. Creo que la cantidad de veces en las que entré a los locales de lo de MacDonald para ir al baño supera la cantidad de ocasiones en la que concurrí a comprar sus productos. La culpa de esto último recae en una mala mujer que, además de gustar de la comida de ahí, no está conforme con quién es y recurre a su padre sólo para sacarle plata. Una chica material, aunque es seguro que Renato Gaúcho no la invitaría a fornicar con ella en pleno Maraca.
¿Ha habido polémica pública o repercusiones sociales sobre la presencia de esta empresa norteamericana? No conozco ningún estudio serio en este país sobre los hábitos de consumo alimenticio. Es decir, no sé qué segmento del mercado acaparan. No sé de estudios sociológicos serios que muestren la opinión del público. Sólo sé que a los niños y adolescentes les interesa. No son idiotas los que diseñan la imagen corporativa: juegos, cajitas felices, Ronald y más. “Me encanta” se repite insistentemente y se pega a nuestro oído, queriendo hacer creer que se dirige al estómago. Es ese tipo de consigna en primera persona que busca que cada consumidor individual se sienta identificado, parte de la cosa. Es el slogan que ataca desde el aire instando a comprar hamburguesas. En un mundo de padres que se sienten culpables, mandan los adolescentes hiperactivos de deseo diverso y mirada volátil. La culpa sostiene un imperio de grasa. Y es quizá por tratarse de una manifestación percibida como imperial que los vidrios de un local situado en el centro de Montevideo fueron apedreados para celebrar la visita de Bush (y ya que estaban, también la emprendieron contra una iglesia brasilera de esas que en Uruguay se han esparcido como hongos tras la lluvia).
“Super Size Me” (“Yo, talle grande”) es un documental en que un tipo decide experimentar consigo mismo y se impone la hercúlea tarea de comer, durante un mes, solamente los productos de la cadena de “M”. Se hace estudios médicos antes de empezar la prueba y muestra su envidiable salud. Durante la película, lo muestran comer y empezar a sentirse mal, incluso a ver resentida su vida sexual. Se entrevista con gente gorda y con adictos a los productos del payaso. Los estudios médicos revelan que aumentó más de diez kilos de peso, su colesterol subió y el hígado anda mal. Queda en evidencia que casi todas las cosas que venden tienen grasa y/o azúcar. Decido tajantemente que yo no consumiré nunca más algo que ellos vendan. Porque eso parece ser la intención del texto: convencernos de las maldades de la comida de “M”. Sin embargo, la “M” aparece tantas veces que parece un comercial de la marca. Empiezo a sospechar que la empresa ha financiado la película como una forma de evitar juicios, como diciendo “todo el mundo sabe que vendemos porquerías, ¿por qué demandarnos entonces?”.
No les compro aunque regalen todos los años la recaudación de un día de ventas a una fundación que se dedica a curar niños con cáncer. Es como apoyar a un narcotraficante que dona su dinero para lograr la paz mundial.