31 dezembro 2007

Samsara



pois tudo se transforma
mesmo o nada que não quer
ser algo vira alguma coisa
que logo vem a ser outra
do feitio que ela a vida
quando se desativa
e a chama passa a se
chamar morte naquele des
equilibrio tênue de quem
precisa e quer renascer

[Video: me (but the eye, it's from the videoclip "When you're falling" from Peter Gabriel.) Music: Phillip Glass, Koyaanisqatsi]

27 dezembro 2007

Um Blues para o Ano Novo



Quando ele toca é melhor você ficar do lado só batendo o pé ou metendo alguns acordes de base. Eu o vi tocando aqui em São Paulo, com seus ampi Fender e outro Marshal em linha. Robben Ford. Esse é o cara! Tem estrada. Já tocou com Miles Davis, ou seja, já fez seu pacto na encruzilhada da música. Toda a negrada do Blues quer tocar com ele. Veja porquê! E olha que essa é light. Para um reveillon adocicado.

22 dezembro 2007

Especiarias [conto de Natal]



Tarefa cruel esta, ter que escrever, já dizia Céline; pode matar um homem, ainda mais um velho como eu. O que seria da vida sem os desejos irrealizáveis? Vida de Papai Noel não é tão fácil quanto aparenta; muito trabalho pra descolar presentes exigentes. Antes das viagens de entrega, viagens mil de busca pelos doze cantos do cosmos, florestas de cogumelos, cidades veladas, Diomira, Zaíra, Zora, Despina, Zirma, Maurília, Fedora, Zenóbia, Eufêmia, Zobeide, Ipásia, Armila, Valdrada, Sofrônia, Eutrópia, Aglaura, Bauci, ufa!, lugares onde já estando lá não percebemos que chegamos; ops..., litoral africano à vista e pimba, estacionar carruagem sem rodas; carruagem de renas não costuma pousar em terra, pois isto coloca duplo problema, sentimental e moral; mas indo ao que importa, uns escravozinhos aqui um pouco de marfim ali, belo contraste, tudo preto no branco, trocadilho indecente e sem senso. O tempo sobrevoa, espaço curva. Pulo no porto de Malaca, entreposto da Indonésia cheirinho gostoso, quantas riquezas, será que o saco agüenta? Tenho que agüentar esses portugueses, o saco também, até o cais de Lisboa senão me pelam; eta cidade que cheira, devia se chamar especiaria; especiaria, belo nome pruma rena, mas simbora, pitadinha de pimenta cor de meu pijama e salto pra Índia bem em cima do algodão ah!, que tecido, sim sim só mais um pouquinho, tecedura de Canderi? Sim sim cabe lá no fundo, bem... nem tão no fundo, no fundo do saco está a iniludível, mas sem medo o saco é grande, então passa pra cá estas rendas de Sourat; humm tá ficando bom, musselinas de Dacar, o que? Esses portugueses sabem o que é bom: broches de Béneres, calicós de Calicut, por Salomão!, na próxima vou trazer minha listinha de palavras sem sentido. Falando em Salomão, lembro de homem que esquecendo a magia por ela foi esquecido; não me deu pelota quando contei que vi minha rena preferida pedindo perdão ao caçador frustrado. Coisa estranha, retrucou. Sim, claro, toda palavra é estranha. As frases então...?, Palavras obscuras caindo do céu, com folgas semânticas feito corpo morto. Não me vele, disse. Não, por júpiter!, ainda não. Se ao menos já fosse meia-noite, hora brasonada de dragões e diabos, com gnomos a embriagarem-se no óleo de minha lâmpada, mas ainda não, temos tempo; algum. Dizem que as formigas já comeram Roma; comerão a tudo que insiste em vicejar. Sua fome incorruptível a nos lembrar que sofremos todos de um grande mal, a desoriginalidade. Eu, em minha carruagem de rangíferes, vislumbro aqui do hemisfério boreal, o círculo vicioso da história. Sabemos que no centro desta prodigiosa cúpula cósmica está escondido um rubi de virtudes mágicas, e aqueles judiciosos, membros de famílias cujo traço mais característico é o recato, não o enxergam. Epa! Papo ficou filosófico demais, especial demais, especiaria, e preciso acabar meu relato; só mais uma pitadinha, de vã filosofia, e prometo encerrar-me. Em meu saco, praticamente tudo está presente; se lhe for destinado relógios, recuse-os; relógios são infernos enfeitados de ouro, que você levará a passear e fará, de tempos em tempos, manutenção e no final perceberá que você é que foi dado ao relógio, e ele é que lhe faz manutenções, cobranças, repreensões. Presente de grego este, eu não daria ao meu melhor inimigo. Pra encurtar a estória vamos ao ponto dileto; deixando de lado a maneira correta de chorar e de amar, atenhamo-nos aos motivos verdadeiros. Todo amor é sagradamente profano e como é quase meia-noite e preenchi a página em branco a mim destinada, iludi a iniludível, não morrerei; ainda.

19 dezembro 2007

O poeta das grandezas do ínfimo




Eu sempre quis conhecer um poeta pessoalmente. É diferente de você lê-los nos livros, ouvir as poesias na sala de aula, ver aquelas fotos em preto-e-branco nas enciclopédias e ficar imaginando como ele seria realmente em carne e osso.

Meu sonho era de ter podido dialogar, pedido dicas, de Manuel Bandeira, ou Carlos Drummond de Andrade. Esses não consegui, mas me encontrei com outros grandes poetas. Hoje vou falar de um bem especial: Manoel de Barros.

Em 1996, juntamente com os amigos Marcelino Freire e Sourak Aranha, em pleno carnaval, fomos até Campo Grande (MS) e batemos em sua porta. Claro que antes ligamos, nos hospedamos em um hotel e marcamos o melhor horário para a visita.

Foi um encantamento. Almoçamos com ele e a esposa. Todo grande homem é gentil. No caso dele, também um grande poeta, a gentileza fazia concorrência com o silêncio.

É um homem simples que fez uma opção, em sua poesia, pelas coisas jogadas fora. Aquilo que a civilização costuma desprezar serve para a poesia, disse ele apertando os olhinhos. Para você ter idéia, um de seus livros chama-se “Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo”; outro ele nomeou de “Livro sobre Nada”; e outro, ainda, “Arranjos para Assobio”. São títulos que já revelam a natureza de seu ser e de sua poesia.

Neles você pode encontrar versos deste tipo:

Meu desagero
é de ser
fascinado por trastes.

Note que a palavra “desagero” não existe. Ou melhor, não existia até ele criá-la. Ele me disse com todas as letras que, para ele, “poesia é um fenômeno de linguagem”. É preciso descascar as palavras e fazê-las ter relacionamentos incestuosos. Se não existirem é preciso inventá-las. Se já existem com muito uso, é preciso arejá-las.

Há um comportamento de eternidade nos caramujos.
...
Eles carregam com paciência o início do mundo.

Manoel é um observador das coisas miúdas da vida. Com seus poemas nos ensina a reenxergar o mundo e a valorizar as coisas mais essenciais. Ele acabou de completar 91 anos, mas continua vivendo uma infância poética que comove a (quase) todos que se aproximam de sua poesia. Nunca mais fui a Campo Grande, mas Manoel não sai de minha cabeceira.

17 dezembro 2007

Insignia


[paradisaea rubra]

habito
este mundo

ave del paraíso
sin piernas

borrador
que no posa

nunca
.
[tradução: Adriana de Almeida]

14 dezembro 2007

Penúltimo poema del fútbol



La fijeza de la supremacia degeneraba en danza de friso, de transportes perlados, la expansión desmesurada del juego...


La silueta el jugador C.

Era un apolo
Negro,
Tallado en un tronco de algarrobo
Negro.
Alto, violento sin espasmos,
Como un atleta,
Opresso en la armonía muscular
De su estampa,
Como en un gran espíritu,
Poseía el zancajo sereno
Y la orientación de la gambeta.
Certero y peligroso,
Tenía una tirada a fondo
Que desnudaba toda la pierna
Negra.
(Danza descuartizada)
Y en la danza
Y en la inspiración,
Un refilón de biela
Negra.


[Bernardo Canal Feijóo (Santiago del Estero, 1897 – Buenos Aires, 1982). Foi uma figura central da cultura argentina do século XX. Como poeta publicou os livros Penúltimo poema del fútbol (1924), Dibujos em el suelo (1927), La rueda de la siesta (1930), Sol alto (1932) e La rama ciega (1942). É autor de uma extensa e brilhante produção teatral e ensaística, que inclue títulos como Nan (1932), Pasión y muerte de Silvério Leguizamón (1937), Confines de Occidente (1954) e Tungasuka (1968).]

12 dezembro 2007

Foro de Editores de Publicaciones Independientes


[foto de Andréa del Fuego: Gustavo López, Márcio André, Julio Daio Borges, Marina Kogan e Edson Cruz]

A mesa acima aconteceu em Buenos Aires, dentro do Encuentro de Interrogación organizado pela Fundación Centro de Estudios Brasileños e pelo Itaú Cultural.
Nosso companheiro virtual, e de mesa, Julio Borges (que é muito articulado e pronunciou seu sobrenome, na portaria do Gran Hotel Buenos Aires, de um jeito que me fez inveja), do Digestivo Cultural, gravou (e cedeu gentilmente) todo o papo da mesa. Se você tiver interesse é só clicar aqui. Na mesa também se posicionaram e dialogaram conosco, Rogério Pereira (do Rascunho, que aliás mostrou e nos entregou uma supimpa edição especial do jornal ), Bruno Dorigatti (do Portal Literal), Paula Siganevich (da revista para escuchar VOCAL) e Guadalupe Wernicke (se não estou trocando os nomes e revistas...).
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11 dezembro 2007

brasil colônia




nenhum mulato
negro índio
ninguém tingido
por água salgada
vindo

exercerá função
de ourives mesmo
aquele que liberto
um dia com seus
sapatos a luzir

nem o outro
se conseguiu bem mais
precioso tanto faz
se tem coração
ouro branco

artíficie de metais
nobres há que ser
impecável
sem marcas
cicatrizes
não ungido
sem excesso
de melanina

algo assim próximo
da matéria alva
com que se tinge
o mundo
visão última
de quem
se entrega
à morte

08 dezembro 2007

O Buda, ou aquele que despertou


a última luz do dia já se consome
e o bom médico retornando à sua casa
presencia o veneno a destruir sua prole

ingênuos tomaram aos goles a desgraça
ingeriram um mortífero ungüento
e já sofriam os efeitos de tal traça

o hábil médico se apressa por um momento
em seu femento de ervas variadas
com qualidades que alivie o sofrimento

sendo perfeito em fragrância e na cor dada
de exuberante sabor tão desejável
a evitar a morte prefigurada

alguns aceitam o antídoto amigável
outros recusam-no abraçando-se a loucura
forçam o pai a arquitetar um meio hábil

pra motivá-los e livrá-los da amargura
sem questionarem se fará ou não efeito
pois o que é certo se faz presto e sem lonjura

e logo vê-se florescer o que é bem feito
dizer que a morte o rodeia em viagem
e se sozinhos ficarem neste eito

devem beber sem rodeios da enfermagem
logo depois de sua ausência tão sofrida
manda a seus filhos uma rápida mensagem

a que rondava agora lhe dava guarida
filhos queridos já não poderia tê-los
e do convívio lhe roubava a vida

atormentados pela perda e pouco zelo
vêem o remédio com uma cor tão excelente
e experimentá-lo decidem, então, fazê-lo

a cura vem em tal gesto tão premente
e os nefastos efeitos esvanecem
com pai e filhos a celebrar o fato alegremente.

02 dezembro 2007

Arte



o banheiro
é meu reduto
absoluto

templo onde
passo o tempo
a obrar


[ilustração: Majane Silveira]

30 novembro 2007

Corazón

aquí
en este lugar donde
el aire enrarecido arde
rehago mi inventario
de sombras

aquí
en este lugar como
la hecatombe en mi pecho actúa
dibujo garabatos
en matices

aquí
en este lugar cuando
el patio de mi casa yace
se encuentra la matriz
del universo

aquí
en el corazón de este lugar
con ojos húmedos a encararme
aquel chico que un día
fui



[tradução: Adriana de Almeida]

27 novembro 2007

Cortes



há um rio que nos
separa
dos outros rio
lethos de esquecimento
encalhes
de duplicidade

o mundo é outro
para o ser
segundo a dualidade
de sua atitude
nossa

a margem que nos
encalha
no outro é a mesma
pele que nos irmana

quem vislumbra
o tu
permanece em relação
aquele que comunga
somente o isso
não é não
está só


[ilustração: Majane Silveira]

25 novembro 2007

Tombo



anuros
de etimologia obscura

mergulhos
em tanques imundos

sapos
coaxando ali

tudo
à revelia de mim

apupos n’alma



[quadro de Sabine Liva Berzina | Haiku water]

23 novembro 2007

Escolhas



crianças equilibram
borboletas e planetas
homens enxugam copos
com sua dor

mulheres geram gafanhotos
vozes de soprano ao fundo
o artista recolhe o essencial
um esboço

o profeta berra ao vento
boca em sirenes
o filósofo pensa ao andar
tudo é estilo e concisão

o bêbado balbucia
sem coerência
sirenas, sirenas
abra os olhos errante

o poeta embaralha
tudo do cio ao silêncio
alerta os navegantes
abrolhos com escolhos


[ilustração: Majane Silveira]

22 novembro 2007

As sombras



enquanto o sol gira
e queima
em torno da constelação
Alcione
não aquela dos sambas e pistão
a outra que nos contamina
a todos e a tudo
com seus fótons e energias
sutis nós, os chamados humanos
seguimos entre escombros
a acumular mortes
e assombros

20 novembro 2007

15 novembro 2007

Roberto Piva




A PIEDADE

Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento
abatido na extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da
luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam
cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio
bóia? por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as
estátuas de fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos
pederastas ou barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam
que tenho todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos
pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas
asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
dos meus sonhos

[Confira, também, entrevista quentinha com o Piva na TV CRONÓPIOS]

13 novembro 2007

SOPHIA

 

minha bruxinha querida
a assombrar os dias
luzes insuspeitadas
nas mãozinhas delicadas

a preencher nossas noites
estrelas nunca cintiladas
em céus gregos ou egípcios
perguntas d'o que é isso?

alfabetos sinuosos tatuados
páginas amareladas de minha
vida a balbuciar afetos de sofilha
acepções ignoradas da felicidade