19 julho 2010

Carvalho à queima roupa




EC.: O que é poesia para você?

Paulo César de CARVALHO: Já que você pergunta assim de bate-pronto, como um direto de direita, quase sem chance pra respirar, a primeira referência que me vem é Santo Agostinho, que não era poeta. Interrogando-se em suas "Confissões" sobre o que é o tempo, o santo – que não era santo – dizia: quando não me perguntam o que é o tempo, eu sei o que é, eu o sinto. Mas quando me pedem para defini-lo... O que a reflexão do “santo” sugere é que o sujeito aí se divide em dois: o que existe no espaço-tempo e o que racionaliza no discurso. Isso para dizer que sua pergunta me cinde, colocando-me na mesma situação: ao mesmo tempo sou o sujeito que escreve o texto poético e o que é convocado a refletir sobre a cria.
Tomando essas noções como ponto de partida pra tentar te responder, quando leio ou escrevo poesia, sei o que é: estou dentro dela. Mas quando me pedem para defini-la... Falar sobre a poesia, nessa perspectiva, é estar fora dela. Isto é, falar de fora, enunciar a partir de outro lugar que não o do discurso poético. Por isso é que falar sobre ela – sobretudo na condição também de criador – dá a sensação, de certa forma, de matá-la, aprisioná-la como borboleta de colecionador em taxionomias críticas (como Wali Salomão dizia, sou míssil, não fóssil!), por-lhe rótulo, colocá-la numa embalagem. Quando se fala da poesia, ela não é: se o beija-flor parar para pensar porque beija a flor, cai...
Por isso prefiro a poesia ao discurso sobre a poesia: o bom texto poético fala por si, na sua própria “língua”, com o seu próprio código. Isso, aliás, me lembra Mallarmé, quando dizia que apresentar um objeto estético em sua imediata evidência é matar três quartos do prazer que reside na descoberta gradual de sua verdadeira natureza - sugerir, eis o sonho! E, por falar em sonho, sonho o sonho de Rimbaud (como um sonho dentro do outro, num discreto charme à Buñuel) para tentar te responder: queria um verbo alquímico acessível a todos os sentidos, para fixar as vertigens, anotar o inexprimível, dizer o inominável. Se fosse possível definir a poesia com a cor das vogais! Mas como traduzir isto que Octávio Paz chama de a mais fascinante orgia dos sentidos?
O discurso sobre a poesia, ao racionalizar procedimentos, revelar os andaimes da construção, mata a sugestão de que fala Mallarmé, enfraquece a potência do sonho: a reflexão sobre o objeto é como um beliscão que desperta o sonhador, leitor ou poeta. É que o discurso sobre a poesia, de certa forma, muitas vezes parece querer revelar a mágica.
Por isso gostaria de aproximar o sujeito que escreve poesia do sujeito que reflete sobre a escrita poética, para tentar alcançar o que Barthes chama de “ciência dramática”, território em que o rigor da reflexão se soma ao calor da emoção, em que a abordagem teórica, crítica, não aborta as subjetividades, não apaga o “eu” (em nome da pretensa objetividade do discurso científico – pelo qual, aliás, nutro grande respeito: os pensadores são fundamentais! Meu bode é contra os acadêmicos de seminários sem sêmen, os colecionadores de coleópteros literários!). Quem me dera alcançar a graça da dicção ensaística barthesiana, que faz poesia falando sobre poesia, diluindo as fronteiras entre os gêneros (sonho leminskiano: vai haver um dia em que tudo o que eu diga seja poesia!)...
Voltando à sua pergunta (divago, como diz Rosa, mas não disperso!): as definições teóricas do fazer poético – O QUE É POESIA? – em geral, em movimento pendular, alternam-se entre as noções de poesia como inspiração e poesia como construção: num lado do campo, a emoção; no outro, a razão. Reivindicando o Nietzsche do "nascimento da tragédia no espírito da música", podemos traduzir assim a questão: de um lado, há a chamada tradição estética dionisíaca, romântica, que defende a criação como um sopro das musas; de outro, a apolínea, clássica, que concebe a obra como um objeto de ourivesaria.
Os poetas, falando de seu ofício, parecem procurar um lugar em um ou outro nicho, aninhando-se deste ou daquele lado da fronteira: há os racionalistas de carteirinha, defensores de uma poesia cerebral, equilibrada, contida, sem emoção, e os subjetivistas descabelados, defensores de uma poética passional, exaltada, comportamental, cotidiana. De um lado, a poesia como construção; de outro, como inspiração. E os poetas se digladiando como numa espécie de guerra santa estética! Eu, de minha parte, prefiro abolir as fronteiras, transitar sem pedágio, devorar e digerir (como bom antropófago aluno de poesia de Oswald de Andrade) o que cada lado tem de interessante para oferecer – afinal, “só me interessa o que não é meu”.
Para ajudar a pensar o problema, lembro-me agora de outro Andrade, companheiro de viagem modernista: Mário de Andrade, em seu ensaio "A escrava que não é Isaura" (que ele apresentou na Semana de 22) tenta equacionar a questão, conjugando os contrários em nome da boa síntese dialética. Em outros termos, reflete tentando encontrar uma espécie de “caminho do meio” entre Apolo e Dionísio, entre a construção e a inspiração. Segundo o bardo modernista, a poesia é um telegrama cifrado que vem da atividade inconsciente para a atividade consciente traduzir. Ela não é só emoção; ela não é só razão. No processo complexo do fazer poético, a inspiração passa por um processo de construção, de elaboração crítico-criativa. Eu vou nessa mesma linha – eu acredito na poesia como inspiração e como construção: creio que esta vem lapidar aquela, matéria bruta; vem dar-lhe acabamento. Como Leminski, advogo a "pororoca", o encontro das águas, o tao do “caminho do meio”: o rigor & o vigor, os caprichos & os relaxos, a construção & a descontração.
Explicando de outra maneira, quero dizer que no meu Panteão cabem vários deuses (mas defender a diversidade não é levantar a bandeira do relativismo - atenção!): não só amo a lição dos concretos, que me deram régua e compasso, ensinando-me que as palavras não são meros vasos para os conteúdos (como fala Augusto de Campos), chamando-me a atenção para a materialidade do signo linguístico, mas também amo a "várzea subdesenvolvida", a poesia marginal, as inscrições nas tabuletas, a poesia-grafite nos muros, as frases de camisetas, os slogans publicitários, as máximas de caminhão, os trocadilhos de mesa de bar, os recados de porta de banheiro...
Gosto mais da conjunção aditiva "e" do que da alternativa "ou": uma soma; a outra exclui. Isso significa que curto mais a adição do que a subtração. Sou da "ética da mistura" (na feliz expressão de Luiz Tatit), contra os valores assépticos da pureza: barroco pós-moderno, sou tropicália, não bossa nova! Acredito no Maiakóvski que fornece a divisa fundamental do concretismo: sem arte revolucionária não há arte revolucionária. Mas acredito também em Roberto Piva, que não acredita em artista experimental sem vida experimental. Não só não acredito na arte pela arte, como também não acredito no Ulisses Tavares que diz que poesia é questão de vida, não de linguagem. Acredito que poesia é questão de vida e de linguagem!  Em matéria de poesia, a vida é uma questão de linguagem, e a linguagem é uma questão de vida! Ah, valha-me Torquato: a poesia é a mãe das manhas e das artimanhas!  Não gosto de fronteiras, de guetos, de muros, de etiquetas, de fórmulas fixas, de escolas: com a bênção de Leminski (meu orixá, santo de cabeça fundamental, meu santo graal!), minha mente psicodélica salta dos trilhos; lógica aristotélica não legarei a meus filhos. Ah, valha-me também Novalis: não te sei o nome, flor azul, só sei que te amo! Enfim, só acredito em poesia de qualidade, qualquer que seja seu nome (com o perdão do pleonasmo: pois, se te chamo poesia, flor azul, é porque tem qualidade - é porque é flor!).
Lembro agora de uma síntese lapidar de Augusto de Campos, talvez a melhor e mais rápida resposta à sua pergunta: poesia/ a fazer/ afasia (com toda a carga de ambiguidade que faz a boa poesia: ela está entre o que o poeta fazia e o que está a fazer, entre a mudez afásica e o que vai dizer). A poesia está no intervalo. Aliás, como diz René Char (o poeta preferido de Picasso): nós não podemos viver a não ser no entreaberto, sobre a linha que separa a luz e a sombra. Poesia como luz & sombra...
Tentando, por minha vez, responder a poesia com poesia - para falar de dentro, não de fora (ou, melhor, no intervalo!)-,  escrevi um poema sintomaticamente intitulado "Plural" (publicado em meu livro toque de letra – editora nhambiquara), espécie de declaração de princípios, epitáfio, testamento poético, que reverbera minha noção de “pororoca”, minha conjugação de vida & linguagem, minha enunciação marcada pela diversidade: 

"meu lar/ em mil falares/ meu luar/ em mil lugares/ tenho um ar/ de muitos ares/ sou mar de muitos mares/ sou muitos/ - não repares!/ sou tantos/ - não compares!/ sou vários/ - não separes!/ sou par/ de muitos pares/ sem apesar/ nem pesares/ meus encantos/ em tantos cantares/ meus prantos/ em vários bares/ sou tantos/ quantos sonhares/ os contrários/ que encontrares/ todos os santos/ em meus altares/ em todos os cantos/ meus calcanhares/ - acredite!/ sou afrodite/ sou ares".

EC.: O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?


Paulo César de CARVALHO: Roger Laporte, num ensaio sobre “intertextualidade”, diz que antes da relação EU-ESCREVER-TEXTO há uma outra que a precede necessariamente: a relação EU-LER-TEXTO. Não acredito em abiogênese: as obras não nascem do nada. Como diz a Análise de Discurso de Pêcheux – conjugando Bakhtin, Freud e Marx –, todo dito se ancora num já-dito. Não tenho a ilusão adâmica da linguagem, a crença num grau zero da escritura. Todo texto brota da costela de outros textos. Creio, com Barthes, na espiral de vozes constitutiva do discurso: quando escrevo, outras vozes se cruzam com a minha, outras enunciações alimentam minha enunciação. A informação poética é fundamental para o fazer poético.
O conselho (como diz Mário, na conferência de 42 sobre a Semana de 22, se não sirvo de conselho, que sirva de lição!) que dou aos jovens poetas, assim, é ler muito: antes da escrita, durante a escrita, depois da escrita. Glosando Haroldo de Campos, o livro me alaga o livro me alarga o livro me alegra... O livro é um mosaico de rendas de ouro e ocelos de pavão... Ler milumapáginas em milumanoites... Ler para acabar com a escritura para começar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura... Ler sobre o ler, ler sobre o escrever, escrever sobre o escrever, sobrescrever, escrever... Ler diferentes autores, diferentes escolas, diferentes estéticas. Ler entendendo as soluções procuradas pelas diferentes vozes poéticas. Ler entendendo cada proposta, sem exigir do poeta aquilo a que ele não se propôs. Ler sem preconceito, com os olhos livres. Ler como um antropófago, digerindo e excretando. Ler para encontrar sua própria dicção. Rilke, aliás, aconselhando seu jovem pupilo na travessia do fazer poético, fala da importância da autenticidade do enunciador, do encontro de uma dicção própria: o poeta deve escrever o que é ditado pela necessidade íntima, não pela exigência exterior. Escrever sem preocupação com modismos, com filiações a escolas, sem professar dogmas. Escrever com rigor & com vigor. Escrever conjugando vida & linguagem. Escrever construindo & descontraindo. Escrever nunca se traindo. Escrever porque não é possível não escrever... Não escrever quando é possível não escrever...
Nesta minha espécie de “carta a um jovem poeta”, lembro que o poeta-samurai Bashô também falava da importância dos mestres (ou seja, das leituras que nutrem a escrita) e da necessidade de sua superação, para a aquisição de uma voz poética própria. Duas máximas lapidares de sua pena-zen para a “cartilha” dos iniciantes: “não siga os mestres, procure o que eles procuraram”; “conheça as regras; depois, jogue-as para cima”. Em outros termos, é necessário descolar-se da foz para encontrar sua voz. Para nascer o escritor, enfim, é preciso sofrer a angústia da influência e libertar-se dela no gesto criador: reconhecer o pai e matá-lo. O poeta, ladrão do fogo, nasce quando devora a esfinge.

EC.: Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?

Paulo César de CARVALHO: A primeira coisa que me chama a atenção em sua pergunta é o número 3: ancestral, mítico, arquetípico, cabalístico... O 3 da Santíssima Trindade; o 3 do céu, da terra e do inferno; o 3 de Hermes Tri Megisto e sua Tábua de Esmeralda; o 3 do ménage a trois; o 3 dos três triângulos; o 3 dos três reis magos; o 3 dos triunviratos; o 3 dos três patetas; o 3 dos três mosqueteiros; o 3 das três graças; o 3 das três parcas; o 3 das três fúrias; o três do power trio; o 3 do Trio Parada Dura; o 3 do Trio Mocotó; o 3 dos Tribalistas; o 3 dos três pedidos do gênio da lâmpada; o 3 do “tri-legal”; o 3 do trivial; o 3 dos “três tristes tigres” e seus “três pratos de trigo”...
O 3 também está na literatura: por exemplo, no ABC de Pound (já no título, sintomaticamente, 3 letras!). O 3 dos três tipos de poeta: o diluidor, o mestre e o inventor. O 3 das três poéticas: a fanopéia, a logopéia e a melopéia.
Você também faz 3 perguntas nesta enquete poética: e na terceira, como num efeito-bumerangue (que tem 3 lados!), volta ao três, pedindo 3 poetas e 3 textos... Ufa! (3 letras!).
Tanto 3, e três é tão pouco! Queria poder escolher 3 inventores (de quebra, 3 bons mestres; e chutar a bunda de 3 diluidores!). Queria poder escolher 3 poetas da melopéia, 3 poetas da fanopéia, 3 poetas da logopéia. 3 craques da poética do som; 3 artífices da poética da imagem; 3 arquitetos da poética do raciocínio. 3 franceses; 3 espanhóis, 3 americanos; 3 ingleses; 3 chilenos, 3 brasileiros. 3 em cascata; 3 em dízima periódica. 3+3+3+3... (as reticências têm três pontos!).
Mas ia ser muita gente, extrapolando muito o que você pede. Então, para chegar a um meio termo, vou escolher 3 brasileiros e 3 estrangeiros. Não os 3 que necessariamente considero os mais importantes, pensando na história da literatura. Não os 3 de que necessariamente gosto mais. Mas os 3 que funcionam como espécies de “santos de cabeça” da minha poética (que fica no intervalo entre a poesia e a letra de música, surfando na pororoca!). Se não são o Tejo, são o rio de minha aldeia... De cá, Oswald de Andrade, Augusto de Campos e Paulo Leminski. De lá (melhor, flexionando rosianamente o advérbio, de lás), Artur Rimbaud, Federico Garcia Lorca e Allen Ginsberg.
Começando pelos de cá, escolhi Oswald pelo “amor/humor”: depois do rio caudaloso do parnasianismo, da afetação neoclássica, do preciosismo vocabular, da restrição temática, uma poética da síntese, uma lição de economia de meios, a incorporação das variantes linguísticas populares (a “contribuição milionária de todos os erros”), a presença do bom humor, a ampliação do eixo temático (a poesia no amor, na dor, na flor, no elevador), a devoração antropofágica da tradição, a reinvenção do Brasil. Na música, Oswald volta, por exemplo, na trip tropicalista (além de influência literária, a capa do disco Tropicália – Panis et Circenses, por exemplo, faz alusão à celebre foto dos modernistas de 22 no Teatro Municipal). Cazuza, no disco Só se for a dois, grava uma adaptação do poema Balada do Esplanada. João Bosco, no disco Dá licença, meu senhor, compõe Pagodespell com trechos dos poemas Relicário e Escapulário. & etc.
Augusto porque “poesia é risco”: a ousadia de dinamitar o ciclo histórico do verso; de implodir a palavra; de propor (como queria Rimbaud) um verbo acessível a todos os sentidos (o “verbivocovisual” do Plano Piloto da Poesia Concreta); de mostrar a dimensão acústica, gráfica e semântica da palavra (Mallarmé, Apollinaire, Cummings...); de ensinar que em poesia o menos é mais (se Le Corbisier fosse poeta...); enfim, de experimentar o experimental (como diria Hélio Oiticica). A poesia de Augusto é um antídoto contra a vazia dicção grandiloquente da poesia bacharelesca (a “discurseira de arrastão” de que reclamava Mário de Andrade), é um dique para conter o blá retórico, um remédio contra o tédio declamatório... Augusto me dá régua e compasso (como aliás já disse a poeta Alice Ruiz, mais um de meus santos de cabeça para escrever/compor): ensina-me maiakovskmente que sem forma revolucionária não há arte revolucionária. Na música, está presente em Pulsar, na bela interpretação de Caetano (um dos textos referenciais para o meu trabalho, que traduz a cor das vogais em mil alturas e durações...), em Cademar, parceria com Tom Zé. & etc & tao. Curiosamente (mas não gratuitamente!), o “amor/humor” de Oswald é poema fundamental para Augusto (e os concretistas). Curiosamente (mas não gratuitamente!), Augusto é influência fundamental para as letras tropicalistas...
Leminski porque “é preciso colocar a poesia numa aventura de massa” (aliás, Oswald, nesta barthesiana “espiral de vozes”, dizia: “a massa ainda vai comer o biscoito fino que fabrico”): o “kamiquase” fez seu primeiro caderno de poesia (para lembrar de novo de Oswald) a partir das lições dos concretos (ele, aliás, se dizia mais concreto do que os concretos, já que havia nascido concreto, e eles se tornaram depois). Mas, além do experimentalismo na poesia, foi poeta experimental na vida, trazendo em seu couro poético as marcas da existência: sua poesia falava da vida, do comportamento, do sexo, das drogas, do rock’n’roll (“tudo o que li me irrita/ quando ouço rita lee”). Isso o aproxima também da dita “poesia marginal” da dita “geração mimeógrafo” (vide seu livro artesanal “não fosse isso era menos / não fosse tanto era quase”). Leminski realiza como ninguém a síntese forma (herança concreta)/ conteúdo (pulsão marginal), numa pororoca entre caprichos & relaxos (título de uma obra que é uma espécie de divisa de seu fazer poético). A sacada que me interessa bem de perto é colocar a poesia numa aventura de massa: para o poeta-samurai, isso se daria por meio das letras de música. E Leminski (que tocava violão) foi gravado por Caetano Veloso (Verdura), por Paulinho Boca de Cantor (Valeu e Se houver céu), pela Cor do Som (Razão)... Foi parceiro de Itamar Assumpção (Custa nada sonhar, Dor elegante, etc), de Arnaldo Antunes (Além alma e UTI), de Carlos Careqa (Alles Plastik), de José Miguel Wisnik, de Edvaldo Santana, de Moraes Moreira. & etc.
Ah, a ditadura do espaço, as inevitáveis coerções da edição, o imperativo moderno da brevidade: só três! Mas meu trabalho também sofre influência de Torquato Neto, de Caetano Veloso, de Alice Ruiz, de Walter Franco, de Arnaldo Antunes...
Bom, vamos agora aos 3 de lá. Rimbaud eu escolhi porque falta “música sábia aos vossos sentidos”: o anjo no exílio (como lhe chamava Verlaine, que, aliás, faz um elogio à música, torcendo o pescoço da eloquência, em seu “Arte Poética” – a propósito, um dos textos referenciais para meu trabalho: “música, acima de tudo música”) transitava da poesia clássica à poesia das tabuletas, dos livros infantis, dos diários... Foi o grande mago visionário da “Alquimia do Verbo” (outro texto referencial para o meu trabalho), que ambicionava um verbo poético para anotar o inexprimível, para fixar as vertigens, traduzindo a cor das vogais (outro texto seu que gostaria de que fosse meu...). Nosso poeta-letrista Vinícius de Moraes o considerava o maior da lírica moderna. Não à toa, na canção Carta ao tom 74, diz “é preciso inventar de novo o amor”, citando o “l’amour est pour reinventé” do “vagabundo genial” (como Mário de Andrade se refere a Rimbaud em A escrava que não é Isaura).
Lorca porque “há um cão no coração” que não pode deixar de ganir: um de seus trabalhos de que mais gosto é o Poeta em Nova Iorque, que para alguns críticos chega a superar os surrealistas. Mas, para minha poesia-letra, para minha poesia-canção, estão mais presentes textos como Bodas de Sangue – escrito para o teatro, adaptado por Carlos Saura para o cinema, entremeado por trechos de canções populares (“a noiva, a branca noiva, hoje donzela, amanhã senhora...”), Romanceiro Gitano (dá quase para ouvir o violão “flamenco” de Paco de Lucia...)... Tocam-me particularmente (“tocar”, verbo musical...) os poemas do Diván del Tamarit: “diván” é uma palavra de origem persa que significa “conjunto de poesias líricas”, em geral de amor (um de meus temas preferidos, apesar de um dos mais batidos, talvez por isso dos mais desafiadores, já que fica mais difícil fugir do lugar-comum. Como diz Caio Fernando Abreu – que, aliás, na chácara de Hilda Hilst, acreditou em trip espírita ter incorporado Lorca –, “o bicho homem não faz outra coisa a não ser pensar no amor”). Neste trabalho, o poeta-cigano experimenta formas poéticas bem musicais, como a casida, um tipo de poesia árabe com uma só rima e métrica (a tradição árabe chegou ao nosso nordeste com os portugueses, influenciando a poesia popular das feiras...), e o gazel,  poema curto usado na poesia persa, que tem entre quatro e quinze dísticos, com retorno frequente a um refrão e exigência de rima dos versos do primeiro dístico entre si, e, depois, com o segundo verso dos outros dísticos, numa estrutura também marcada pela musicalidade.
Por fim, Ginsberg porque “esteja eu louco ou frio/ obcecado por anjos/ ou por máquinas/ o último desejo é o amor”: estes fragmentos constam do poema intitulado sintomaticamente de Canção – caro para mim, que persigo justamente o poema-canção. O bardo beat, herdeiro de Walt Whitman, é o poeta dos “pulmões épicos”, que escrevia ao sabor do jazz uma poesia fortemente marcada pela oralidade (a musicalidade da fala, a descoberta do rap): seu torrencial Uivo, título que remete à musicalidade do grito, foi declamado no famoso recital da Galeria Six, em 1955 (aliás, no “eterno retorno” da “espiral de vozes” desta nossa entrevista, no poema Um supermercado na Califórnia há uma referência a Lorca: “e você, Garcia Lorca, o que fazia lá, no meio das melancias?”). O poema Kaddish também traz a marca da música: dedicado à mãe, é um lamento fúnebre, um canto aos mortos na tradição judaica. Mas a música esteve presente não só na poesia, como também na vida de Ginsberg: no seu aniversário de 50 anos, uma homenagem do The Clash; os 60 comemorou com as dissonâncias do Sonic Youth... Isso sem falar da influência sobre dois dos maiores nomes do poema-canção norte-americano: Lou Reed e seu gutural canto “uivado” (a figura, a propósito, sempre se vestiu de preto – como a Janis Joplin antes de chegar a São Francisco –, reverberando à moda americana o tédio existencialista francês, bem traduzido pelos escritores da trupe de Ginsberg) é autor de canções “beats” como Walk on the Wild Side, crônica sobre a América anti-sonho americano, sobre o fracasso do american way of life, sobre traficantes, drogados, travestis e outros personagens naufragados. Bob Dylan também carrega em suas composições a herança beatnik, como na letra de Desolation Row, por exemplo (Ginsberg e ele deixaram um texto para Kerouac no enterro do autor de On the Road; Ginsberg era louco para transar com Dylan...). Isso sem falar da influência também sobre Jim Morrison, do The Doors, que era pirado também em Rimbaud, como Ginsberg... Só pra terminar a “quadrilha” – pra não dizer que não falamos de Drummond... Só pra não falar também que eu não queria falar também de Joan Brossa, de Boris Vian, de Fernando & outras pessoas...


Paulo César de Carvalho é mais conhecido como Carvalho. Vocalista e letrista da banda Os Babilaques. Bacharel em Direito e mestre em Linguística pela USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo Vestibulares e do CPC-Marcato, co-autor do material de Língua Portuguesa do Sistema Anglo de Ensino, autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de Interpretação de Texto e Redação (Editora CPC – www.cpc.adv.br ou livraria@cpc.adv.br). Foi editor do boletim Texto & Cultura, com o ex-correspondente da Folha de S.Paulo e editor de Política Internacional José Arbex Júnior. Colaborador das revistas Discutindo Língua Portuguesa, Discutindo Literatura, Arte & Informação, Livro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado?. Curador da exposição Linguaviagem: em Português nos entendemos, organizada pelo Museu da Língua Portuguesa para o Itamaraty, a propósito do Congresso dos Países Lusófonos, realizado em Brasília em março de 2010. Tem poemas publicados no livro Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (Landy Editora) e na antologia portuguesa Poezz (Almedina). Em 2009, publicouo Toque de Letra (poesia, Editora Nhambiquara). E-mail: carvalho70@gmail.com

07 julho 2010

A importância das revistas literárias em papel

Há quem acredite serem as revistas literárias tão importantes quanto as obras-primas de uma determinada literatura. Se isso for verdade, é mais do que oportuno pensar e questionar o papel das mesmas no contexto de nossa literatura através da história, e mais ainda, a sua importância na literatura contemporânea.
As revistas, pelo que podemos observar, sempre foram um pólo aglutinador de criadores e pensadores das questões que permeavam a produção e a recepção das obras literárias. Quase todo grande movimento literário digno de nota gerou, e nas primeiras horas sustentou-se numa revista que lhe servia de porta-voz e por meio da qual se articulavam manifestos, poemas, contos, ensaios críticos no calor da hora, fragmentos de romances, etc.

Não haverá como, nesta pequena introdução à questão, analisar os vários períodos históricos de nossa literatura tupiniquim e suas respectivas publicações de luta e afirmação [como vem fazendo de forma sistemática o Luiz Ruffato no jornal Rascunho. Confira]. Basta lembrarmos que o modernismo brasileiro seria impensável sem as publicações das revistas Klaxon (1922-1923); Revista Verde (1928); Revista de Antropofagia (1928-1929); Festa (1927-1929 e 1934-1935); e, mais recentemente, fundamentando o plano piloto do movimento de poesia concreta, as revistas Noigandres (1952-1958) e a Invenção (1962-1964).



Convém ressaltar que estas revistas tinham um engajamento quase que “romântico”, no sentido de que eram feitas na “raça” e “às próprias custas”, sem o benefício das leis de incentivo e de verbas governamentais que hoje custeam grande parte das revistas literárias que conseguem se manter por mais de um ano.

O que gostaríamos de avaliar, nesta reflexão, é como se dá o funcionamento das revistas literárias contemporâneas tendo em vista a imbricação triádica complexa que são as relações entre o autor, a obra e o público?

Por uma questão de foco, centrei-me em duas revistas contemporâneas que são aparentemente distantes uma da outra, tanto em seu projeto editorial e gráfico, quanto em seu posicionamento geopolítico e estético. Digo aparentemente, pois não estou certo de que seus projetos sejam tão díspares assim, mas através delas me foi possível refletir sobre algumas questões.

Falo da revista carioca “Inimigo Rumor” e da cearense “Arraia Pajéurbe” [as duas haviam morrido, mas parece que irão ressuscitar].

As revistas literárias, a meu ver, são um campo privilegiado para a reflexão do fazer literário, no sentido de que - a margem do mercado – podem (e normalmente o fazem) abrir espaço para novos poetas, e para os já estabelecidos, mostrarem seus trabalhos e avaliarem a sua receptividade, pois como disse Valéry, “o homem dificilmente está sozinho”, e de alguma forma estará sempre “mais ou menos consciente do efeito que será produzido” pela sua obra no público leitor ou “consumidor”, para adotarmos a designação emprestada da Economia por Valéry.

Dizem por aí que “há um público cada vez menor de leitores de poesia”. Se há dúvidas de que esta assertiva seja correta, o que nos parece mais evidente é que as editoras bem estabelecidas publicam cada vez menos poesia. O que poderia nos levar a concluir (creio que erroneamente) que há um desinteresse pela produção poética por parte do grande público. Erroneamente, penso eu, pois os autores já estabelecidos pela ‘tradição’ ou pela academia, ou pela crítica literária, continuam a serem reeditados, lidos, comentados, revisados. “Afortunados”, diria eu.

Ou seja, há sim um público leitor de poesia. O que não há é um público de leitores da poesia que se está fazendo hoje com toda a diversidade de dicções e motivações apresentadas.

Passado o momento heróico do estabelecimento do plano piloto da poesia concreta, onde buscava-se “novas condições para novas estruturações da linguagem” chegando-se ao que foi denominado pelos seus engendradores como uma conquista da relação dos “elementos verbivocovisuais”, no dizer de Décio Pignatari, e passado também seu momento de diluição na prática dos novos criadores influenciados por este programa importantíssimo, o que se observa nas revistas contemporâneas mencionadas (entre tantas outras) é a retomada e a eleição do verso como forma predominante da construção poética. De maneira geral, o verso livre -devemos ressaltar -, mas ainda assim o verso.

Ou seja, tal adoção de procedimentos demonstra que o projeto concretista, embora seja notória sua presença e influência na propaganda, na paginação das revistas e de jornais, nas diagramações dos livros, nos ‘slogans’ da TV, veio mais para sanear e “higienizar” as práticas literárias que eram feitas até então, colocando outras idéias e autores em discussão, do que para estabelecer-se como uma nova forma a ser adotada a partir de então. Algo que não foi mantido nem pelos seus próprios criadores.

Porém, temos que concordar com Augusto de Campos em sua introdução à 1ª edição da Teoria da poesia concreta, quando diz:

“O movimento de poesia concreta alterou profundamente o contexto da poesia brasileira. Pôs idéias e autores em circulação. Procedeu a revisões do nosso passado literário. Colocou problemas e propôs opções.
No plano nacional, retomou o diálogo com 22, interrompido por uma contra-reforma convencionalizante e floral. Surgiu com um projeto geral de nova informação estética, inscrito em cheio no horizonte de nossa civilização técnica, situado em nosso tempo, humana e vivencialmente presente. Ofereceu, pela primeira vez, uma totalização crítica da experiência poética estante, armando-se de uma visada e de um propósito coletivos. Enfrentou a questão participante, mostrando que alistamento não significa alienação dos problemas da criação, que conteúdo ideológico revolucionário só redunda em poesia válida quando é veiculado sob forma também revolucionária. Pensou o nacional não em termos exóticos, mas em dimensão crítica.”[1]

Em outras palavras, o movimento concretista nos educou a todos. Mesmo os que se posicionaram diferentemente ou reativamente, adotando outras práticas ou “práxis”, tiveram que, de certa forma, perder a ingenuidade e colocar-se com mais consciência, historicidade e criticidade em seu fazer poético.

Antes de mostrarmos o “plano piloto” das duas publicações em questão, vale citar as reflexões feitas no ‘calor do momento’ em que vivemos, por Nelson de Oliveira em seu livro de 2003, Verdades provisórias. Ao analisar as revistas literárias atuais, em relação às de nosso passado próximo, ele se ressente de um excesso de crítica e ensaios, em detrimento da “criação” propriamente dita.

“A julgar pelo que se vê hoje em dia, a função de uma publicação literária qualquer é basicamente a de criticar e avaliar a produção poética e ficcional. Criticar e avaliar — mais do que apresentar amostras desta produção: contos, poemas, trechos de romance etc.”

Em outro momento ele analisa:

“Dá-se no Brasil do pós-Segunda Guerra o momento áureo das revistas literárias, que durou mais ou menos trinta anos e ocorreu lado a lado com o auge do modernismo tardio tanto na prosa quanto na poesia. Coincidência? Momentos de pico da criatividade literária viriam necessariamente acompanhados de boas publicações críticas, destinadas ao amplo público? Ou uma coisa não tem nada a ver com a outra? Tendo a acatar esta segunda opção: a homologia não é obrigatória. Grandes críticos literários — e grandes publicações literárias — podem existir mesmo quando não há nenhum grande escritor em atividade, e vice-versa. Como disse Anelito de Oliveira, editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, resumindo a questão: “Ausência de literatura é notícia tanto quanto presença de literatura”. § A crítica literária está vivendo, no Brasil, um momento relativamente esquizofrênico. Por um lado, muitos escritores estreantes — entre eles o pernambucano Marcelino Freire, o gaúcho Altair Martins, o carioca Carlito Azevedo e o mineiro Fabrício Marques — têm sido recebidos com salva de palmas por resenhistas e leitores de todos os níveis, dentro e fora das redações, dentro e fora das universidades. Por outro lado, até agora não surgiu ninguém disposto a fazer o balanço do que foi, por exemplo, a literatura brasileira na última década, muito menos uma voz que reunisse e resumisse todas essas salvas de palmas numa fórmula matemática clara, cuja decodificação provasse por A mais B que a literatura brasileira recente vai de vento em popa. O que se ouve, da parte da crítica, é o veredito mais ou menos unânime de que a literatura brasileira nunca esteve tão ruim das pernas. Noutras palavras, continua sendo consensual a afirmação de que depois da geração de prosadores que estourou na década de 70 e dos poetas da geração do mimeógrafo, nada de muito instigante tem acontecido nas letras produzidas neste torrão do Ocidente. Se torcermos um pouco o rumo da discussão, daremos de cara com a seguinte pergunta: E quanto às revistas literárias?”

Nelson segue sua análise da importância das revistas literárias para a literatura, concluindo melancolicamente:

“De tudo isso, o que parece ficar é a esquizofrenia mencionada no início deste artigo. Vencida a péssima fase econômica dos anos 80, a quantidade de publicações especializadas cresce a cada dia. É prematuro ser categórico quanto a isso, mas tudo indica que o tempo da hegemonia da criação, nas grandes publicações literárias, parece que já passou. Até na Internet, onde proliferam as páginas de jovens prosadores e poetas ávidos por mostrar seu trabalho, o número de páginas destinadas à resenha e ao ensaio não é nem um pouco desprezível. Agora é a hora da crítica nas publicações de grande circulação, que estão levando ao pequeno Brasil que as consome ensaios de veteranos como João Alexandre Barbosa e Ivan Teixeira, e da nova geração de críticos, composta por nomes como José Castello e Miguel Sanches Neto.”

Se o que diz Nelson de Oliveira for verdade, encontraremos nas revistas mais textos analíticos e críticos do que a produção dos autores contemporâneos, desconhecidos ou não.
Sua análise certamente é verdadeira em relação às quase inexistentes revistas “literárias” de grande circulação, aquelas que foram encampadas por editoras e vendem em bancas de jornais com distribuição nacional. Se o modelo a ser questionado, então, for o da “Cult” ou da “Bravo” seu raciocínio é totalmente verdadeiro, pois estas revistas dedicam ínfimas páginas à criação.

Seu raciocínio, porém, não é verdadeiro se nos debruçarmos sobre as revistas literárias de circulação e tiragem restrita: as chamadas “nanicas”. Mesmo no caso daquelas que possuem uma boa distribuição garantida (ou mesmo a edição, como se dá com a Inimigo Rumor) por editoras estabelecidas, não é isso que observamos em suas páginas.

No caso das duas revistas que escolhemos para cotejar, a porcentagem de ensaios e de crítica é muito inferior a porcentagem de criação, seja ela poesia, prosa ficcional, “poema em prosa” (que por sinal teve uma edição especialmente dedicada a esta forma criativa, na revista Inimigo Rumor de nº 14), ou mesmo a fotografia que permeia e dialoga o tempo todo nas edições da revista Arraia Pajéurbe.

No começo de meus questionamentos ressaltei a possível disparidade entre estas duas publicações: a carioca Inimigo Rumor e a cearense Arraia Pajéurbe. Ao nos depararmos com as duas revistas essa possível disparidade salta aos olhos devido, inicialmente, ao projeto gráfico tão diferenciado de ambas.

A Inimigo Rumor, que nasceu em 1997 e estacionou no número 20, tem seu projeto gráfico mais associado (até onde tive acesso aos números mais antigos) ao formato livro. Desde o começo, seu projeto já estava ligado a editora 7Letras. A partir do momento que foi encampada, também, pela editora Cosac & Naify, o seu ‘anseio em se tornar um livro’ (vamos colocar desta forma) tornou-se visualmente mais explícito. Seu formato brochura ganhou uma capa dura, a qualidade do papel melhorou e ampliou sua distribuição, chegando a ter uma edição em Portugal que não coincide integralmente com a edição brasileira.

Poderíamos deduzir desta escolha do formato livro, embora se intitulando de revista, uma busca de receptividade mais específica nas camadas leitoras que atribuem um maior “valor” a este formato, em detrimento do formato revista (aquele que é passível de se encontrar em bancas de jornais) que traria consigo, por adequação semântica e estética, um “valor” menos nobre, atribuído também ao conteúdo que o formato abraça.

Em sua edição de nº 16, comemorativa de oito anos de existência, ressalta-se em seu editorial o fato de ter-se mantido fiel, neste tempo todo, às propostas iniciais de seu projeto, a saber:



1) “Abrir espaço para os poetas estreantes” (ou seja, estreantes recém publicados em primeiro livro, ou nunca publicados). A revista durante seus anos de existência publicou mais de cinquenta poetas estreantes.
2) “Divulgar material inédito de poetas e ensaístas brasileiros já estabelecidos” (neste quesito a revista confessa ter assumido “sem qualquer estardalhaço teórico ou qualquer sentimento de culpa, a herança modernista recente, incorporando os poetas concretos, os marginais dos anos 70 (Francisco Alvim, Zuca Sardan, Ana Cristina César, Eudoro Augusto e Cacaso, em especial), além de autores independentes como Ferreira Gullar e Sebastião Uchoa Leite”.)

3) “Disponibilizar poemas e ensaios estrangeiros que aumentem nosso repertório de poesia e crítica em português”.

A proposta consistiria em provocar “turbulências” na “pacificada produção poética brasileira” com o contato/atrito com experiências poéticas estrangeiras.

Neste aspecto, em nenhum momento a revista explicita quais, e de que tipo, seriam estas experiências poéticas estrangeiras. E deixa claro que, num tempo em que, segundo ela, estaríamos distantes “da era das vanguardas e seu dogmatismo doutrinário”, pretende com o amplo espectro de vozes que abriga, manter o “poder de impacto” que seria característico das revistas literárias.

Me parece, nesta questão, que o grande “poder de impacto” das revistas literárias do passado era, mais do que possibilitar um amplo espectro de vozes, conseguir alinhar em suas fileiras vozes afinadas a um projeto estético claro e definido. Neste sentido, as revistas atuais – e isso vale para as duas cotejadas para este texto – seriam somente uma antologia de vozes sem dicção e projeto estético definido.

Por outro lado, a Inimigo Rumor, de maneira geral, cumpre bem o que se propôs. É inegável a amplitude e a qualidade dos textos que abrigou (e abriga) em suas edições. De Glauco Mattoso a Jacques Roubaud, passando pelos concretistas, pelos já citados herdeiros modernistas (o que precisaria ser mais aprofundado e esclarecido, mas que não conseguirei fazer aqui), até aos poetas contemporâneos franceses, argentinos e espanhóis. Em duas edições, pelo menos, a revista disponibilizou, em formato menor e anexo, livros na íntegra de autores não editados ainda por aqui: Tamara Kamenszain, poeta argentina e Leopoldo María Panero, poeta espanhol.

Suas edições, sem dúvida, contribuem para aumentar nosso repertório poético contemporâneo, o que, talvez, seja algo por demais importante de ser feito neste momento chamado por muitos de pós-modernista e pós-utópico.

Já a revista cearense Arraia Pajéurbe, com apenas três números editados, e ainda desconhecida do público consumidor de poesia e de projetos literários veiculados pelas revistas, explicita a intenção de seu projeto editorial (seu plano piloto) da seguinte forma:

“Os artistas brasileiros, os escritores brasileiros, seus poetas de todos os âmbitos e artes estamos mesmo aparentemente por baixo. Fomos postos para fora do proscênio, da assembléia dita democrática. Mas queremos é mesmo estar fora do círculo pois saltamos, com esta revista, dessa geometria. Estamos fora de todos os lados, da esquerda, da direita, do centro e de suas mais que maquiavélicas misturas. Estamos resolutamente de fora. ... Precisamos, portanto, emanar o ímpeto do sonho, fazê-lo matéria e matérias do espírito. Reportagens poéticas, sutis curvaturas de sentido, a foto de ângulo impossível: rediagramar as páginas e as coisas. Transmitir o que está acontecendo e fazer aquilo que não ia acontecer, acontecer no delírio prático da arte. Criticar a ausência e o afastamento da mídia, geral, imposto, tiranizante de toda a literatura, arte e cultura brasileiras. Abrir uma nova fronteira a partir de Fortaleza, Ceará, Nordeste, Brasil, América Latina. De forma nenhuma aderir aos já totalmente desmoralizados padrões e conteúdos da arte, da literatura que se julga dominante. ...”

O projeto foi levado a sério, diria que, quase até as últimas consequências. Embora seja uma revista notoriamente de literatura, abriu-se para outras artes, principalmente a fotografia e a elaboração gráfica.

A partir de um formato cheio de arestas, triangular, a simular uma vela de Mucuripe, torna-se efetivamente uma revista-objeto, com toda materialidade explicitada, da qual não sabemos direito nem como abri-la, muito menos por onde começar a lê-la. 

A diagramação inusitada de suas páginas, aliada a profusão de cores e os ângulos improváveis de suas fotos, tornam a leitura dos textos um exercício de superação, como se o tempo todo ela nos dissesse: “se você acha a leitura de poesia difícil, vamos ver como você se vira agora”.

Em alguns momentos, a meu ver, aquela “estrutura” buscada no plano piloto da poesia concreta se revela, como a apreensão de um ideograma. No processo de composição das páginas, as várias coisas, imagens, textos, reunidos, não produzem uma terceira ou quarta coisa, mas sugerem uma relação fundamental entre elas: o caos magnífico. Aquele tipo de caos, citado por Niestzche, onde podemos perceber uma ‘estrela cintilante’.

É um projeto de exuberância neobarroca (para usar uma palavra do momento), onde as “noções tradicionais de princípio-meio-fim, silogismo” tendem a desaparecer e são superadas por uma outra organização, como queria a poesia concreta, “poético-gestaltiana”, visual e táctil. Não estou querendo dizer com isso que a revista ‘concretize’, ou se paute, pelos anseios da vanguarda concretista, e sim que em muitos momentos a resultante oferecida pela revista soa-me como o mais próximo da vanguarda entre as revistas literárias disponíveis.

Mas, no que se refere aos textos poéticos apresentados pela revista, os versos são mantidos (versos brancos, mas ainda versos), os textos não são explodidos em suas formas, diria, mais convencionais. A inovação na revista se dá, a meu ver, mais no campo gráfico, espacial e visual, do que propriamente literário. Mas, isso não é pouco, pois uma revista que se produz como uma obra (com a força criativa que ela ostenta) gerada fora dos grandes centros de produção, tanto econômico quanto estético, deve ser celebrada e, no caso, relembrada.

Há poesia e há prosa em suas páginas, de autores que não trafegam (em sua grande maioria) no circuito editorial do ‘sul-maravilha’, e brasileiros em ampla maioria.

Para concluir acrescento que, pelos exemplos tomados neste questionamento, devemos assumir que o papel do leitor enquanto consumidor, embora ativo e produtor de sentidos, é sempre mediado pela possibilidade de acesso a obra, e quando o acesso se dá, a boa recepção -ou não- da mesma é sempre colorido, e matizado, pelo repertório acumulado pelo leitor/consumidor.

E se já não estamos mais em época de vanguardas, e seus doutrinamentos, torna-se mais importante ainda a proliferação deste campo privilegiado para reflexões e criações literárias e estéticas que são as revistas.


[1] Campos, A., Campos H., Pignatari, D. “Plano piloto para poesia concreta”. In: Teoria da poesia concreta. São Paulo: duas Cidades, 1975. Pág. 7

24 junho 2010

Un oscuro ramo

JOSÉ SARAMAGO
(1922, Portugal – 2010, Lanzarote)

En Lanzarote de ágave y caliza,
Negó al espejo, su hálito, José.
Ze Saramago, de árida sonrisa,
Tan bolchevique como siempre fue...

¿Ricardo Reis, El Memorial, los ciegos
de este mundo inventado por un topo¿
(para decirlo con ambiguo tropo):
¿Con una maldición o con un ruego?

Ahí está, tras los lentes, en la foto
Que multiplicarán computadoras.
¿Tu desaparición es un exvoto?

Hace frío. Entramos al invierno;
Y las heladas vencen las auroras...
Pero lo que expresaste –Ze- eso, es eterno...


(Washington Benavides ofrece un oscuro ramo
en homenaje póstumo, al gran maestro portugués.
Y decimos –como antes A. Machado-:
“yunques sonad, enmudeced campanas”.-
junio 19 del 2010. Montevideo)

18 junho 2010

José Saramago (memórias e depoimentos de 5 portugueses)
















O regenerador

Por Luis Serguilha

José saramago projectou e vascularizou o sublime da semanturgia. A sua correnteza radical-imagética-fulgurante reactualiza a heterogeneidade das transgressões da língua que proporcionam a potência estética da metamorfose contínua, da dramatização da condição humana. A linguagem de josé saramago surge da força afectiva e da transposição do imaginário subvertendo a totalidade racionalizadora.
José saramago potencializou singularmente a transmigração ibérica e nas encruzilhadas humanas elevou incomensuravelmente a liberdade criadora.
Encontro em josé saramago a vivacidade inovadora da linguagem. Relembro saramago numa transmigração entre-infra caio valério catulo, marçal, horácio, gregório de matos..,....
José saramago dinamizou a antropologia filosófica. A sua intensidade pulsional-vocabular-sintáctica regenerou a literatura portuguesa. Um escritor da ética, corajosamente aberto ao mundo.


Luis Serguilha nasceu em Vila Nova de Famalicão, Portugal. Coordenador de uma Academia de Motricidade-Humana. Poeta e ensaísta, suas obras são: O périplo do cacho<(1998), O outro (1999), Lorosa´e Boca de Sândalo (2001), O externo tatuado da visão (2002), O murmúrio livre do pássaro (2003), Embarcações (2004), A singradura do capinador (2005), Hangares do Vendaval (2007), As processionárias (2008), Roberto Piva e Francisco dos Santos: na sacralidade do deserto, na autofagia idiomática-pictórica, no êxtase místico e na violenta condição humana (2008), KORSO9 2010) estes últimos em edições brasileiras. Seu livro de prosa intitula-se Entre nós, de 2000, ano em que recebeu o Prémio de Literatura Poeta Júlio Brandão. Participou em vários encontros internacionais de literatura e possui textos publicados em diversas revistas de literatura no Brasil, Espanha e em Portugal, além de outros trabalhos traduzidos em língua espanhola, inglesa,francesa,italiana,alemã e catalão. Responsável por uma colecção de poesia contemporânea Brasileira na Editora Cosmorama. Curador do encontro innternacional de literatura e arte PORTUGUESIA

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A minha memória de Saramago
Por José do Carmo Francisco

José Saramago é um «caso» típico em que o autor e o indivíduo sendo a mesma pessoa se separam e tomam caminhos opostos. O autor conquista a pulso um público cada vez mais numeroso; o indivíduo vai perdendo passo a passo muitos amigos e admiradores. O seu livro mais importante para mim foi «Levantado do Chão». Escrito para homenagear José Adelino dos Santos e Germano Vidigal, dois militantes do PCP assassinados pela PIDE na GNR de Montemor-o-Novo, o livro nasceu em casa de João Basuga onde José Saramago viveu perto de 6 meses, ouvindo com atenção e tomando notas das histórias das gentes do Lavre. Menino da Penha de França (Rua Carlos Ribeiro), filho de um subchefe da PSP e de uma doméstica, agradeceu as histórias contadas na dedicatória com os 16 nomes dos homens e mulheres do Lavre. Como no evangelho mas agora no evangelho da Terra, aqui os mortos vão ter uma ressurreição e estar de novo com os vivos no dia levantado e principal – o 25 de Abril de 1974.

Do ponto de partida («O que mais há na terra, é paisagem») ao ponto de chegada («Este sol é de justiça») o livro passa por dentro dos homens e dos dias: «Todos os dias são iguais e nenhum se parece») e prova que, tal como nos outros evangelhos, a morte pode ser salva e resgatada. E a vida triunfar, tal como a alegria, a justiça, a luz, a paz, a lucidez, a virtude e a bondade de intenções. Aqueles homens que andam de noite de bicicleta de «monte» em «monte», a avisar os companheiros, sem luz no volante, continuam na nossa vida. Tal como continuam os 16 da dedicatória entretanto apagada na primeira página das edições recentes do seu livro «Levantado do Chão».


José do Carmo Francisco nasceu em Santa Catarina (Caldas da Rainha), Portugal. Frequentou o Instituto Comercial de Lisboa e o Instituto Britânico. É jornalista – carteira profissional nº 4149. Estreou-se no «Diário Popular» em 1978 e em «A Bola» em 1979. Foi colaborador do «Sporting» desde 1988 («As palavras em jogo») e seu redactor de Janeiro de 1997 a Novembro de 2006. Entre 1992 e 1996 entrevistou na revista «Bola Magazine» figuras nacionais das Artes e das Letras na rubrica «Um cafezinho com». Colabora no mensário «Voz de Alcobaça» com a coluna «O lugar do poema» e no semanário «Gazeta das Caldas» com a rubrica semanal «Um livro por semana» e a coluna quinzenal «Estrada de Macadame». Colabora na revista «Desporto sem Paralelo» e nos jornais «Diário Insular» e «Notícias da Amadora». Colaborou nos jornais «O Mirante», «Diário Popular», «Diário de Lisboa», «República», «O Ponto», «O Remate», «Correio dos Açores», «O distrito de Portalegre» e nas revistas «Ler», «PC Win», «Mulheres», «Revista Alentejana», «Colóquio Letras» e «Seara Nova». Desempenhou funções da direcção da Associação Portuguesa de Escritores e é secretário da Associação Portuguesa de Críticos Literários. É co-autor do livro «Glória e vida de três gigantes» sobre o Sporting C. de Portugal, o Benfica e o F.C.Porto editado em 1995 por «A Bola». É autor dos seguintes livros: «Iniciais» (1981), «Universário» (1982), «Transporte Sentimental» (1987), «Jogos Olímpicos» (1988), «1983 – Um resumo» (1991), «Leme de luz» (1993), «Mesa dos Extravagantes» (1997), «As emboscadas do esquecimento» (1999), «De súbito (2001), «Os guarda-redes morrem ao Domingo» (2002), «O Saco do Adeus» (2003), «Pedro Barbosa, Jesus Correia, Vítor Damas e outros retratos» (2005) e «Mansões Abandonadas» (2007). «Iniciais» venceu em 1980 o prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores atribuído por um júri constituído por Armando Silva Carvalho, Fernando J.B. Martinho e Pedro Támen. Tem poemas, entrevistas e notas de leitura nos sites e blogs «aspirinab.com.», «triplov.com», «escritacriativa.com», «ofogareiro.blogspot.com» «alicerces1.blogspot.com», «casariodoginjal.blogspot.com», «cabradeservico.blogspot.com» e «viagenspelooeste.blogspot.com» E-mail: jcfrancisco@mail.pt

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José Saramago, um lutador solitário
Por Maria Estela Guedes

O que mais aprecio em José Saramago, do lado da literatura, é a sua capacidade metamórfica: ele tanto escreve romances colossais, embrenhados em si mesmos, difíceis de seguir na sua minúcia histórica, como se abre aos leitores ingénuos numa escrita larga e despretensiosa, facílima de acompanhar até pelos mentalmente mais preguiçosos; ele ora escreve ensaio, ora teatro ora romance. A poesia, menor talvez dos seus feitos curriculares, foi a primeira literatura de José Saramago que conheci, ainda estudante na Faculdade de Letras de Lisboa. José Saramago, Ruy Belo, Herberto Helder, Carlos de Oliveira, Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa, eram poetas que eu alinhava uns ao lado dos outros na mesma prateleira.

A sua têmpera é sempre a mesma, mas a personalidade varia consoante a necessidade da obra vertente. Nada daquela monotonia, mono-tonia, o único tom de grandes escritores a quem essa pobreza escamoteamos sob o rótulo de "estilo".


Poucos escritores são dotados desta flexibilidade que ultrapassa a do polígrafo. Poderá haver escritas mais encantatórias do que as dele, ah, sim, lembremos Agustina Bessa-Luís!, mas são mono-escrita, geradora de livros únicos, no sentido de tais autores escreverem sempre o mesmo livro. Saramago não é autor de uma obra única, ele deu à estampa dezenas de obras absolutamente singulares e distintas umas das outras. Toda aquela diferença que levou Fernando Pessoa a gabar-se de ter escrito uma biblioteca.


Do lado da pessoa que foi, e eu mal conheci - lembro-me apenas dos seus olhos curiosos, fortemente concentrados em mim, de uma vez em que nos encontrámos na Associação Portuguesa de Escritores, na Rua de S. Domingos à Lapa, em Lisboa - do lado da pessoa, repito, admirei e admiro ainda a capacidade de luta, a coragem de dizer as verdades mais chãs, que todos sabemos de cor mas calamos por medo, por comodismo, e com isso conseguir o prodígio de gerar polémicas até à beira do caixão, aos 86 ou 87 anos! Ainda no ano passado Saramago era atacado por se ter atrevido a dizer em voz alta o que todos estamos fartos de saber mas fingimos que não, e obriga-se um homem daquela idade a pedir desculpa por ter mandado à merda ou coisa assim, senhores, não são os Papas quem pede desculpa por crimes bem odiosos e nauseabundos? Metamos a mão bem dentro das tripas e sejamos honestos: quem, desse lado ou do outro, merece mais credibilidade?


E o que mais me confrange no perímetro da ação desencadeada por José Saramago é a facilidade com que todos falam dele, dizendo mal ou bem, tanto faz, sem nunca terem entrado numa livraria para comprarem um dos seus livros. Sem nunca o terem lido.



Maria Estela Guedes (1947). Escritora. Membro da Associação Portuguesa de Escritores (APE), do Instituto S. Tomás de Aquino (ISTA), e do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL). Dirige o TriploV (www.triplov.com ), um portal multidisciplinar e multilingue, primacialmente dedicado ao estudo do Naturalismo e à divulgação de literaturas de língua portuguesa e espanhola. Tem publicadas várias centenas de títulos, em revistas e jornais. A maior parte da sua produção recente, e alguns textos antigos mais importantes, encontram-se em linha no TriploV. A sua actividade desdobra-se por diversas áreas: poesia, ficção, teatro, ensaio literário e sobre História, Crítica e Filosofia das Ciências. Dirige duas colecções de cadernos sobre temas do Naturalismo, “Lápis de Carvão” e “Naturarte”, na Apenas Livros Editora (Lisboa). Tem desenvolvido projectos de cooperação com colegas espanhóis do CSIC (Madrid) e de várias entidades científicas brasileiras. Mantinha acordo de cooperação literária entre o TriploV e a revista electrónica “Agulha”, dirigida por Claudio Willer e Floriano Martins. E-mail: estela@triplov.com

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Da hipocrisia como uma das Belas Artes
Por Nicolau Saião

Morreu Saramago e, como sempre, os habituais hipócritas ou interesseiros, vêm-lhe festejar o cadáver. Nunca o apreciaram, mas dizem-se pesarosos. É o habitual. Eu também nunca o apreciei - quer como escritor, quer como pessoa. Como escritor, a despeito dos galardões, achei-o sempre limitado. Como pessoa era envinagrado e pedante (leiam-se as memórias do comunista, mas consistente, Orlando Neves, um dos melhores poetas lusos, e ficar-se-á esclarecido sobre o personagem). Mas nunca o ofendi, como muitos que agora fingem desgosto. Outros, por dever militante, tentam forçá-lo a prestar um último serviço... à "causa". Chamam-lhe homem livre. De facto, foi um estalinista, um apreciador de ditadores (quem esqueceu o elogio a Fidel e ao Stalin, que segundo ele foi um homem de pulso?) e um homem de obediencias cegas.

Mas era um ser humano, que merecia que não lhe babujassem o cadáver com fingimentos.



Nicolau Saião (Monforte do Alentejo - Portalegre, 1946) é poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc. Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995). Tem colaboração diversa na imprensa cultural em vários países: “DiVersos” (Bruxelas), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, “Jornal de Poesia” (Brasil), Mele (Honolulu), Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), TriploV, revista Bíblia, “Saudade”, “Callipolle”, “A cidade”, “Petrínea”, revista “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Jornal de Poetas e trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”… Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões), um dos mais conceituados e ouvidos no ranking do Alentejo. Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007). Com João Garção e R. Ventura coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. Até se aposentar recentemente, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre. E-mail: nicolau19@yahoo.com

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Depoimento
Por Joana Ruas

José Saramago, a quem devo a publicação do meu livro, A Pele dos Séculos na sua editora, a Caminho, assinou e comigo apresentou aos órgãos da comunicação social, com Natália Correia e Sophia de Mello Breyner, a Carta ao Secretário-geral da ONU por ocasião do massacre de Santa Cruz em Timor-Leste. Partilhei com José Saramago algumas tardes nas Feiras do Livro de Lisboa e na Festa do Avante. O seu legado é de facto um dos monumentos literários mais notáveis de toda a nossa história literária. O seu combate voluntário e constante quer na sua vida cívica como militante comunista quer na sua escrita, dirige-se à humanidade, na sua vida real, vida feita de instinto de sobrevivência e de inocente coragem. A obra de José Saramago tem como horizonte o objectivo de mudar as convenções, os preconceitos e maneiras de viver que afectam a atitude moral dos homens na sua vida em sociedade.

José Saramago era um homem fraterno cuja sensibilidade e delicadeza teve, devido à dureza dos combates que travou, de se amparar nas austeras virtudes da coragem, da determinação e da exigência. Foram estes dois componentes ― a de uma sensibilidade cheia de matizes e a da coragem perante agressões e confrontos políticos e ideológicos que surgiram devido à assunção, na sua obra, de temas fracturantes na nossa sociedade ― que enformaram tantos personagens das suas obras e que moldaram um pouco o seu modo de ser perante os outros, enfim, o seu parecer ser.

Para José Saramago não havia povos significantes e povos insignificantes. A sua obra proclama-o assim como o proclama o seu discurso na cerimónia em que lhe foi entregue o Prémio Nobel: «é mais fácil ao homem chegar a Marte do que chegar ao seu semelhante». O escritor José Saramago entendia que o caminho para o nosso semelhante pressupunha uma revolução mundial. A partir deste ponto de vista, para que se alcance uma saudável vida social nas nações, os seus líderes políticos vêm-se não raras vezes coagidos a a ter por vezes que assumir os terríveis deveres, aqueles que muitas vezes nos indignam nos regimes em que se pratica a diversidade económica, diversidade económica intransigentemente combatida através de sucessivos bloqueios por parte do velho mundo. Contudo, a sua sensibilidade, inteligência e coragem constituíram a base sobre a qual se concretizou o milagre da sua existência como escritor, não apenas entre nós escritores, mas entre nós portugueses, entre nós falantes da língua portuguesa, entre nós e o género humano tomado na sua universalidade.


Joana Ruas (Portugal, 1945) publicou os seguintes romances: Corpo Colonial, Centelha, Coimbra, 1981; O Claro Vento do Mar, Bertrand Editora, Lisboa, 1996; A Pele dos Séculos, Editorial Caminho, Lisboa, 2001; A Batalha das Lágrimas, Editora Calendário, 2008. Em prosa publicou Na Guiné com o PAIGC, reportagem escrita nas zonas libertadas e Zona (ficção). Escreveu os ensaios: Amar a Uma só Voz, Colóquio Rilke, Edições Colibri, Lisboa, 1997; A Amante Judia de Stendhal e E Matilde Dembowski, e A Guerra Colonial e a Memória do Futuro, comunicação apresentada no Congresso Internacional sobre a Guerra Colonial. Participou na 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará onde proferiu uma palestra intitulada Aproximar o Distante, Do Estranho ao Familiar — duas experiências: Timor-Leste e Guiné-Bissau. A sua poesia encontra-se dispersa por publicações como NOVA 2 (1975), um magazine dirigido por Herberto Helder; o seu poema Primavera e Sono com música de Paulo Brandão foi incluído, pelo compositor Jorge Peixinho, no 5º Encontro de Música Contemporânea promovido pela Fundação Gulbenkian; Cartas a Ninguém de Lisa Flores e Ingrid Bloser Martins, Vega. Participou nas antologias: Antologia da Poesia Erótica, Universitária Editora; Na Liberdade, Garça Editores; Mulher e Um Poema para Fiama, Editora Labirinto. E-mail: joanaruas@sapo.pt

08 junho 2010

Curso de Letras



Qual o livro mais chato da literatura brasileira? Não vamos perder tempo com os autores mais chatos, pois a lista seria infinda. Nem com os pseudoautores. Nos famigerados cursos de letras que desandam por aí, os alunos [será q ainda os há ou seriam meros esquentadores de bancos. ouvintes, ocos, das palavras instituídas?] são obrigados a ler um monte de livros e autores que são um pé e desviam a atenção do essencial. Mas, como saber o que é essencial em literatura sem ler e desler [pergunta boa. só me ocorreu agora]?

Um curso de Letras, assim em caixa alta, deveria servir para isso. Ou não?

Depois que nosso Mamaluco [claro que me refiro a Sebastião Nunes, mas, aliás, leiam o originalíssimo livro de Luiz Roberto Guedes, O Mamaluco Voador, com projeto gráfico e diagramação primorosa de Tereza Yamashita e Nelson de Oliveira. não tem nada a ver com o que estou falando, mas tudo a ver com o que estou escrevendo] ousou desbancar Machado de Assis de seu trono, o caminho ficou mais fácil [cara peitudo esse Tião. disse com todas as letras q Machado era leitura obrigatória de velhinhas carolas. rumor na arquibancada].

Felizmente não li todos os livros que poderiam ser adequados a esta categoria do liso, plano, sem elevação, rasteiro, sem relevo, sem elegância e maçante [definição de chato. faltou a coceira e a preguiça macunaímica q eles nos geram]. 



Por comparação, ou justaposição, ficou mais fácil ainda. O acaso [êta palavrinha mal compreendida por nós todos. leiam um pouco do budismo. não, não precisa raspar a cabeça, nem se internar em um templo seja em Cotia ou no Himalaia. um buda do século 13 deixou escrito que, vejam só, “até o esbarrar da manga de nossa camisa em outra no meio da rua confusa é regida por relações cármicas (relações não determinadas de causa e efeito), nada tendo a ver com acaso” uau! a rua confusa é por minha conta] possibilitou que eu estivesse lendo o instigante romance de Evandro Affonso Ferreira, Erefuê [o cara é maluco, no bom sentido, já teve vários sebos impecavelmente sem poeira e parece q não gosta muito de vender livros. enxotava aqueles que vinham buscando Coelhos e outros bichos da mesma subespécie literária], e ao mesmo tempo A Escrava Isaura de Bernardo Guimarães [alguém o leu por aí ou só lembra da Lucélia Santos, ou nem isso, talvez, da ex-paquita-qse-atriz, Bianca Rinaldi? confesso q nunca o havia lido e minha memória é da Lucélia].

Tudo bem que a comparação, a rigor, não possa ser feita sem correr o risco de se tornar esdrúxula e até incabível devido as variáveis históricas e sociais. Não vou fazê-la [mesmo porque não saberia como], então, mas confesso aguçou-se meu interesse pela construção da ficção brasileira. 



O romance de Bernardo Guimarães com sua construção melodramática que a telenovela soube aproveitar tão bem, me deixou um pouco irritado pela pieguice dos argumentos e a dissimulação da(s) ideologia(s) por trás dos argumentos. Um romance construído como uma fábula amorosa e ancorado em dados ‘historiográficos’ tão caros ao romantismo tupiniquim em seus primórdios. 



Cheio de ‘boas intenções’ em seu desejo de mostrar ao público de 1875 os crimes da escravidão e as questões de distinção de classe, destila – com uma adjetivação excessiva – preconceitos e valores que não escapam à tentativa de escamoteação: a escrava que é branca, bela, fina, culta e mais pura do que qualquer branca poderá almejar [ops! a palavra coube bem, né?].

A escrava submissa que, apesar de seus dotes, sabe reconhecer seu lugar e suporta resignada o assédio e os maus tratos que surgem de todos os lados. Um primor de chatice e melosidade que parece agradar, brasileiros, portugueses e até chineses.

Cruzes cristãs!!! [ah... se você quer ser escritor, corra dos cursos de letras...]!!

06 junho 2010

Conversas sobre Literatura



Edson Cruz - Começo por uma genealogia que nos aproxima: o poeta Manoel de Barros. Teu livro Biografia de uma Árvore, de 2002, a começar pelo título, parece-me que foi todo autorizado pelo Manoel, além dos pássaros, raízes e frutos. Esta relação amorosa vem desde quando?

Fabrício Carpinejar - Eu tenho paixão pela poesia anônima. Uma poesia que seja somente pouso de rio. Acredito que o rio sabe pousar melhor do que a ave. Biografia de uma árvore tem algumas peculiaridades que o diferenciam da poética do chão de Manoel de Barros: poesia extremamente tensa, que pergunta e não responde, quebra a bússola e não dá um rumo. Não faço poesia para consolar, mas inquietar. O melhor riso acontece quando não o esperamos. Meu desespero é apenas uma forma de rir. Não sou discípulo nem de mim mesmo. Mudo de endereço antes de me repetir. Eu sempre acreditei que o melhor esconderijo que havia em casa era o violino que ninguém tocava. Escondi minha poesia dentro das cordas. Sou um perfeccionista pelas imperfeições. Aprendi a me espreguiçar com um único suspiro. O fogo é um suspiro da água.

EC - Soube de tua tese sobre ele. Você gostaria de colocá-la sob nossos olhos e corações? Qual a nervura que, nela, você amplia?

FC - Meu estudo afirma que Manoel de Barros é um grande teólogo. Ele busca professar sabedoria em sua teologia dos trastes, enumerando o que um homem precisa fazer para ser uma paisagem. O autor procura repassar a pedagogia do ínfimo, ensinar como o leitor deve se comportar para enxergar o poema. Não questiona, não duvida, propõe uma poética do alumbramento, exclamativa. Realiza uma catequese: converter o selvagem em uma voz dócil e culta. Sua poesia tem o formato de conto, com pontuação epistolar. Usei como antítese em meu estudo a poesia de João Cabral. É curioso notar que Cabral dizia ser cerebral e é altamente espontâneo. Manoel diz ser espontâneo e é altamente cerebral. Ainda estamos presos nas falsas aparências.

EC - Em teu livro de 2000, Um Terno de Pássaros ao Sul, nota-se a importância de suas raízes afetivas, principalmente a figura paterna, para sua poesia. Fale-nos um pouco da sua relação com a poesia de Carlos Nejar. Quais seus poemas preferidos?

FC - O pampa é meu pai. O pampa é também pai de meu pai e pai de meu avô. Eu tenho uma ligação fortíssima com a terra e sua exuberância. Sempre prefiro sair pela porta do pátio do que pela porta da frente em minha casa. Passava pelos cheiros da cozinha e absorvia a atmosfera da horta. Misturei essa carga ancestral com minha vida urbana, com a urgência do cotidiano. Minha poesia faz romance em versos. Invento para libertar a mentira do hábito. Uma verdade já decorada não me agrada. Eu organizei uma antologia da poesia de Nejar, chamada Breve História do Mundo, que saiu pela Ediouro. Disponho a obra nejariana por arquétipos e espaços como assoalho, porão, calabouço.

EC - Qual a matéria da poesia?

FC - Tudo é matéria de poesia, principalmente o que não existe. O pó pisado de um pão é matéria de poesia. Uma ave manca é matéria de poesia. Um homem que se esqueceu em um casaco é matéria de poesia. Uma mulher que pisca a boca quando mente é matéria de poesia. É se encontrar onde não estamos. É se perder onde estamos. É conciliar contrários, reunir o imponderável, fazer um esforço de solidariedade para que palavras amuadas possam enfim se cumprimentar. O poema é uma mão tremendo. Seguro no poema, não para aliviar o tremor, mas para ser contagiado por ele. A façanha do verso é desabituar os olhos, mostrar a naturalidade da luz, do erro, sua extinção e vacilo. Uma luz perto de queimar tem a mesma força da escrita.

EC - O que significa hoje o conceito de invenção na poesia e como você se relaciona com ele - se é que isto te interessa?

FC - A grande poesia deve ser invenção para o autor, mas chegar ao leitor apenas como descoberta. Aquilo que se inventa na insônia precisa ter o frescor da descoberta, inclusive para quem escreveu. Requer portanto disciplina e uma dose cavalar de desconfiança. A tradição existe – não para ser reverenciada – como provocação, para ser questionada. Sou uma criança que não tem medo da pergunta banal. É na banalidade que a comoção aparece. O grande problema da poesia: ela é um dom natural e a complicam para parecer difícil. Só o simples permanece. Sobre minha relação com a invenção, não aceito me repetir. Costumo dizer: os poemas desconfiam de quem necessita repeti-los. Eu procuro na invenção um modo de me trair. Ao trair minha memória, estou sendo realmente fiel.

EC - O número quântico de estranheza proposto pela física quântica se aproxima da linguagem poética?

FC - Poderia se chamar até de número ôntico. Acho que se aproxima. Assim como a música é matemática, como a matemática é música, como a poesia é a matemática da música. Guardo um tanto de estranheza para ler depois. Com a escrita, não pretendo esgotar segredos, mas prolongar o mistério. A poesia é a reserva ecológica da linguagem, tudo se junta como ciscos para se elevar em ninho. Entendo um pouco de tudo, o resto deixo para intuição tomar conta. Não sofro por me perder, sinto até prazer em não reconhecer as ruas. Todo o caminho errado passa a ser uma saída.

EC - Como acolher o ser essencial cujo coração não está contaminado pelas demandas do mundo?

FC - Eu quero me contaminar pelas demandas do mundo, pelos ruídos, pela escala cardíaca de uma ave, de um trem, sem exceção. Minha essencialidade é esquecer de mim. Não escrevo para me isolar, mas para me doar. Ficamos muito tempo fechados pensando que estamos a nos proteger. A gente só se protege se repartindo. O melhor escritor é invisível, somente seu texto fica visível. Procuro ser anônimo para desafiar o que não pode ser dito. Minha vantagem é a autocrítica, a corrosão, a ironia, minha maneira de brincar com o desespero para fazê-lo rir, ao invés de ajudá-lo a chorar. A poesia é pura porque não tem medo de se misturar. Ela não classifica, não exclui, não escolhe, não cria preconceitos. Ela é adesão instantânea, a vontade de compreender e não julgar. Desejo entender a minha rua e já estarei entendendo o meu tempo. Critico o idealismo da poesia como erudição, vaidade e dom. Não é a inspiração que nos faz apaixonar, mas a fé de se superar sendo dois. Poesia é adoecer o mundo e curá-lo.

EC - Quais seus escritores de preferência e como se dá a magia da literatura para o Carpinejar leitor?

FC - Eu escrevo meus livros apenas depois de memorizá-los inteiros. Eu fico assobiando versos durante meses, sem cair na chantagem de um papel. Nada de anotar em pedaços, cadernetas, folhas. O livro precisa primeiro sobreviver à memória para depois ser escrito. Esse processo pode demorar anos e muitos poemas se perdem no caminho e não conseguem andar até o final. O que é essencial, permanece. Arrumo os versos em passeios pelas ruas de São Leopoldo, acentuando seu fôlego musical. Quando sento no computador, o livro já desce pronto. Esse método intuitivo colabora para meu projeto de ler minha obra como um único romance versificado. Cada título é um capítulo. Só a memória é capaz de dar distanciamento íntimo. A imaginação é a minha primeira leitora. Dos meus autores prediletos, são tantos que não os reduzo a uma lista. Tudo me influencia, até o que não foi escrito. Aprecio enormemente o chileno Nicanor Parra e sua antipoesia.

(a poesia de Nicanor Parra: http://www.poesia-inter.net/indexnp.htm)

EC - Você, que me parece amante da escola cabralina das facas, lê a poesia feita hoje? Hoje, onde o engenho não tem praça?

FC - Eu não sou amante da escola cabralina. Talvez seja amante das facas (risos). Eu admiro João Cabral e sua poesia sem arestas. Admirar não significa servir, mas respeitar e ter noção de que ele já cumpriu o que sua voz prometia. Ele não precisa de discípulos. Cabral não é uma escola, mas uma prisão. Ninguém consegue imitá-lo sem empobrecer o original. Não recomendo a ninguém, é prisão perpétua. A poesia brasileira contemporânea vive um grande momento. Concordo com Ivan Junqueira e a considero uma das melhores feitas no mundo, sem exagero. Veja apenas Minas Gerais: Ricardo Aleixo, Fabrício Marques, Wilmar Silva, Fernando Fábio, Iacyr Anderson, Edmilson, Prisca, Ângela Leite de Souza, Ana Elisa Ribeiro, etc. Eu citei aleatoriamente um estado, imagina todo o país. Sofremos um complexo de inferioridade diante dos mortos (Drummond, Cabral, Bandeira, Jorge de Lima) e de outros gêneros. O poeta brasileiro anda de cabeça baixa como um cavalo, sem a consciência de sua velocidade. Basta olharmos com mais compreensão e menos ranço. Nossa poética retomou o gosto de colocar as cadeiras na rua, de se comunicar e aprender com as diferenças, de ser febril e presente, de não renunciar a sua época em nome de uma imortalidade duvidosa.




Carpinejar, Fabrício Carpi Nejar, poeta e jornalista, mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS. Nasceu em Caxias do Sul (RS) aos 23 de outubro de 1972. É autor dos livros: As Solas do Sol (Bertrand Brasil, 1998), Um Terno de Pássaros ao Sul (Escrituras Editora, 2000, esgotado) (Bertrand Brasil, 3ª edição, 2008), objeto de referência nos The Book of the Year 2001 da Enciclopédia Britânica, Terceira Sede (Escrituras, 2001), Biografia de uma árvore (Escrituras, 2002), Caixa de Sapatos (Companhia das Letras, 2003), Porto Alegre e o dia em que a cidade fugiu de casa (Alaúde, 2004), Cinco Marias (Bertrand Brasil, 2004), Como no Céu e Livro de Visitas (Bertrand Brasil, 2005), O Amor Esquece de Começar (Bertrand Brasil, 2006), Filhote De Cruz Credo (A GIRAFA EDITORA, 2006), Meu filho, minha filha (Bertrand Brasil, 2007, Canalha! (Bertrand Brasil, 2008) e Diário de um Apaixonado: sintomas de um bem incurável (Mercuryo Jovem, 2008). Blogue: http://carpinejar.blogspot.com/ E-mail: carpinejar@terra.com.br

01 junho 2010

Hans-Joachim Koellreutter: as ideias bem temperadas



Koellreutter chegou ao Brasil em 1937 e por aqui ficou, trazendo consigo uma formação tradicional européia. Foi aluno de Kurt Thomas e Hermann Scherchen e conseguiu aliar o rigor clássico de um Hindemith com as experimentações harmônicas e formais do dodecafonismo. Essas informações chegaram até mim aos poucos. No começo, eu só sabia que ele havia dado aulas para o Tom Jobim e para outro Tom, o Zé.

A lista dos músicos e compositores que foram seus alunos aumentou muito à medida que minhas informações musicais se solidificavam. O histórico grupo Música Viva, Guerra Peixe, Cláudio Santoro, Edino Krieger, Olivier Toni, Severino Araújo, Moacyr Santos, K-chimbinho, Cipó. Todos esses, e muitos mais, foram seus alunos. E agora eu estava ali na sua frente, meio penetra, meio sem saber direito o que estava buscando, muito menos o que iria encontrar. Estavam muitos na sala, mas o silêncio era reverencial.

As certezas que não deixei para trás, ao entrar naquela sala, seriam todas relativizadas pelo velhinho que já havia morado no Japão e na Índia. Da Índia ele contou que, após chegar com a esposa ao hotel, foi direto para uma apresentação de música clássica indiana. Era final de tarde e, depois de muitas horas no avião, ele estava muito cansado. Ouviu durante uma hora. A audiência quase que não se mexia, em transe. Ele não aguentou. Cochichou para a esposa que ia dormir. Ela ficou e só retornou ao hotel na manhã seguinte. O concerto durara a noite toda. Havia sido uma manifestação estética totalmente diferente daquela vivenciada por ela até então.

O primeiro conceito insinuava-se sutilmente: Estética: “Estética é uma parte da filosofia que estuda as condições e os efeitos das atividades artísticas. É um estudo racional e fenomenológico da expressão artística, quer eventuais possibilidades (estética objetiva); quer evento ou diversidade de emoções e sentimentos que suscita no homem (estética subjetiva)”. E complementou dizendo que não existiria uma objetividade absoluta; toda objetividade teria um mínimo de subjetividade.

Para Koellreuter havia dois tipos de estética: a estética relativista e a fenomenológica. Na relativista parte-se da premissa de que os componentes da composição artística não podem ser considerados independentes um do outro. Baseia-se no conceito da física de que o tempo e o espaço são grandezas inter-relativas. Na fenomenológica estuda-se a sensação causada no ouvinte por uma ocorrência musical (que é tudo o que ocorre numa partitura, até mesmo um ruído).

Concluiu o raciocínio dizendo que cada artista tem sua estética pessoal e com ela constrói seu estilo. Um artista que não tem estilo próprio não é um artista. O artista é um aventureiro.

O segundo toque também foi dado sutilmente. A noção de tempo é tudo e, também, não é absoluta. Paradoxal. Noção basilar na música, se ela mudar tudo mudará. O que mudará exatamente? A forma como será criado, como será executado e como será apreendido o discurso musical. Isso mesmo: discurso. Ele foi logo dizendo que embora se costume dizer que a música é uma linguagem, ela em essência não o é. Ela se serve de uma linguagem para criar o seu discurso. Para mim parecia ser a mesma coisa, mas ele insistia que não era.

Pediu para que anotássemos outra definição: “polissemia é um processo de multisignificação onde cada letra é um ícone intersemiótico que explode em inumeráveis significantes”. Falou pausadamente para que pudéssemos anotar. Ele parecia fazer questão de que anotássemos, sabendo que tantas informações que nos passaria necessitariam de tempo para serem digeridas.

Mas o que teria a ver esse conceito aparentemente linguístico com a música? Ele fez que não ouviu e continuou… a música é uma arte que faz uso de uma linguagem, disse, e tascou mais uma definição para ser anotada:

“Arte é a atividade que supõe a criação de sensações, emoções e estados de espírito, em geral de caráter estético, assim como processos sensoriais conscientes que proporcionam ao ser humano o conhecimento e a vivência do mundo externo.”

Ele ligava um conceito no outro. Pensava feito o desenho de um fractal.

Mas, professor, voltemos à linguagem. A música, então, não é uma linguagem? “Não”. E toma outra definição.

“Entende-se por linguagem um sistema de signos estabelecidos naturalmente ou por convenção, que transmite informações ou mensagens de um sistema cibernético (sistemas cibernéticos podem ser orgânicos, sociais, sociológicos, técnicos, ecológicos). Por exemplo, a linguagem dos animais; dos computadores; dos sinais de trânsito; linguagem científica, artística e outras.”

Cacilda, sistema cibernético?

Ele estava dizendo (eu acho) que a música usava um idioma, o idioma musical, e que os idiomas musicais são linguagens específicas. Na estética musical o idioma usa um vocabulário e uma sintaxe. O vocabulário chama-se repertório. E a sintaxe? Não perguntei... me empedrei.

Os idiomas são abraçados pelo o que ele chamou de estilo. Continuou o raciocínio, para mim um tanto nebuloso, dizendo que os estilos se caracterizam pelos idiomas que utilizam. Mas o que seriam estilos? Claro que ele não iria deixar passar um conceito sem destrinchá-lo. Esta, notei, era uma característica de sua forma de pensar e de ensinar. Partia sempre do conceito, fazia um raio-X dele e depois tirava suas consequências lógicas (e ilógicas). Bem alemão, pensei comigo.

Lembrei de uma definição de Hitchcock sobre estilo que não me atrevi a falar em voz alta: “Estilo é plagiar a si mesmo”. Se essa definição fosse verdadeira, então, Jorge Benjor seria o mestre do estilo. Seria um verdadeiro artista. E realmente ele o era, pensei comigo, mas continuei calado.

O velhinho tinha me fisgado e o melhor a fazer era continuar a ouvi-lo. E ele já estava definindo o que seria estilo:

“Entende-se por estilo, um conjunto de características que une e ao mesmo tempo separa a produção artística de países ou e artistas (que são personalidades individuais). Une e separa ao mesmo tempo.”

Para ele havia dois tipos de estilos. Os inovadores e os restauradores. Nesse momento fez questão de frisar que gêneros não devem ser confundidos com estilos. Por exemplo os gêneros da música clássica e da música popular não deveriam ser confundidos com estilos. Agora ele parecia um Ezra Pound pensando a música.

Os estilos inovadores apresentavam sempre um novo repertório e uma nova sintaxe, um novo repertório de signos e sinais. Mas o que era sintaxe, mesmo? E lá vai ele definindo o que é signo e o que é sinal. Eu cansei de anotar. Deixei pra lá…

Os estilos restauradores ou restaurativos eram aqueles que revalorizavam o idioma e a sintaxe tradicionais.

Já era quase meia-noite e o velhinho não parava. Alguém veio lhe avisar que já estavam para apagar as luzes. Ele ficou decepcionado, mas conformou-se. Continuaríamos na próxima semana. E não se esqueçam, disse, questionem tudo, tudo. Ele gostava mesmo desse exercício.

Fui pra casa naquela noite pensando em frases e conceitos enunciados com um sotaque arrastado nos erres. Tudo bem, eu teria uma semana pra digeri-los.

“Não existe erro absoluto em música. Pode haver erro relativo ao estilo da época.”

“Aprendemos as regras tradicionais para poder transgredir ou contrariá-las.”

“Devemos aprender a questionar tudo, até nossas próprias opiniões.”

“O artista deve abrir caminhos e novos modos de pensar.”

“Ao se criar uma obra de arte muda-se o modo de ver toda a sequência da arte até aquele momento.”

Depois dessa aula inaugural, acompanhei seu curso por mais um mês. Ouvi suas composições e o assisti regendo várias de suas peças no auditório do Masp. Em uma delas, a partitura do pianista era uma esfera transparente que carregava algumas sequências de símbolos coloridos, triângulos ou círculos que se mesclavam com outros entrevistos na curva da esfera. Uma loucura.

Eu, que sempre havia sido fascinado pelas melodias, ouvi estarrecido de Koellreuter que nós vivíamos em uma ditadura da melodia.

A rádio Cultura, lembro, fez alguns programas sobre ele que são históricos. Tenho tudo gravado.

Koellreuter faleceu em setembro de 2005 e, hoje, quase não ouvimos mais falar dele. Em época de muita confusão conceitual e sonora como a que vivemos, seu método de ver as coisas e de ensinar faz muita falta:

“1) não há valores absolutos, só relativos;

2) não há coisa errada em arte; o importante é inventar o novo;

3) não acredite em nada que o professor disser, em nada que você ler e em nada que você pensar; pergunte sempre o por quê."