[Amador Ribeiro Neto, Marcelino Freire, André Ricardo Aguiar e Edson Cruz]
Texto lido por Amador Ribeiro Neto em João Pessoa, no Agosto das Letras, na mesa de debate: “Literatura e Novas Mídias”
Nestes tempos de Internet, a pergunta que mais se faz é se o livro deixará de existir. Depois da era das imagens voltamos à era alfabética, nos diz Umberto Eco em seu mais recente livro, intitulado
Não contem com o fim do livro. Nunca se leu e escreveu tanto como agora. O livro, ainda segundo Eco, não desaparecerá. “O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados”. O livro um dia talvez não tenha páginas de papel, mas ele permanecerá como é.
O livro que um dia Mallarmé projetou, depois Borges sonhou – e antes deles, Heródoto quis –, este livro virou realidade. Mas realidade virtual. Este livro é o ciberespaço da infolinguagem.
Para Lucia Santaella, em
Culturas e Artes do Pós-Humano; da cultura das mídias à cibercultura:
“Dos anos 90 para cá, estamos assistindo a uma nova revolução que (...) provavelmente trará consequências antropológicas e socioculturais muito mais profundas do que foram as da revolução industrial e eletrônica, talvez ainda mais profundas do que foram as revoluções neolíticas. Trata-se da revolução digital e da explosão das telecomunicações, trazendo consigo a cibercultura e as comunidades visuais. (...) Na ciberarte (...) as tradicionais divisões de papéis entre emissor e receptor se ampliam sobremaneira, com a sua condição interativa, a tradição das artes expositivas-contemplativas e mesmo das artes participativas”.
O texto eletrônico, por não se fixar em suporte material, como a folha de papel, possibilita o acesso à distância em tempo real. Ou seja, o texto, sem a materialidade do papel, pode ser lido por múltiplos (ou milhares) de leitores ao mesmo tempo, com tais leitores em espaços geográficos diversos.
A biblioteca universal chegou. O grande livro, soma de todos os livros e bibliotecas, tão almejado, está on line. Está no ciberespaço. E o ciberespaço (espaço com inovações da eletrônica, da cibernética, da computação, da informação, da comunicação) chegou rápido – e rapidamente está mudando a ordem econômica, a ordem social, a ordem cultural, etc. Enfim, está mudando a linguagem. Sociedade da informação, era do virtual, vida digital, homem semiótico, hipertexto, infopoesia, e-book são realidades instauradas em nosso tempo.
As escritas hipertextuais estão gerando uma economia na escrita, mudando a língua, a linguagem, a literatura. O ciberespaço ultrapassa a nossa capacidade de imaginação e, é claro, nos dá sentimentos de gozo e medo, ao mesmo tempo. Afinal, o novo assusta. “À mente apavora o que ainda não é mesmo velho”, canta Caetano. Oswald disse: "língua natural e neológica".
Por estas e outras, o novo, o velho, o novelo, o novelho está nos envolvendo em cada linha, em cada palavra, em cada música, em cada pensamento, com esta língua de literaturas, saberes e sabor.
Borges um dia declarou: "Dediquei grande parte de minha vida às letras, e creio que uma forma de felicidade é a leitura".
Literatura: cursor de novos jogos, brincadeiras, armações, engenhos e engenhosidades: a língua proíbe e a literatura libera. Apenas proibição ou apenas liberação geral não dão em nada – ou levam à barbárie. O lance é continuar deixando literatura e língua trocarem seus beijos sem ter conta e sem ter fim.
Literatura: ludismo à mancheia. Exuberância. Pletora sem fim.
Com a mudança do meio de produção, ou da mídia de produção, se assim preferir-se, altera-se o modo de recepção do objeto literário. Walter Benjamin já nos chama a atenção para a nova mudança da postura, também física do leitor, diante do surgimento do jornal – em confronto com o livro.
Da mesma forma a tela do computador impõe, não somente mudança na postura física do leitor, como na assimilação das novas mensagens.
Diante de imagens que movimentam-se associadas, ou não, a sons e cores, o repertório do receptor pede atualização face a esta nova realidade da obra artística.
Mais que objeto cultural – como pontua o semioticista russo Chklóvski – o texto literário é um processo cultural singular, desautomatizador, gerando novas percepções do objeto artístico e do mundo em si.
Em tempos de novos suportes e recursos tecnológicos, a poesia farta-se nas múltiplas possibilidades de criação face às novas mídias. Estudar as representações daí advindas é um desafio aos estudiosos da poesia, bem como aos poetas. Arte-ciência-tecnologia embrincam-se, mais que em outras épocas históricas.
O computador é hoje a grande máquina semiótica, afirma Pedro Barbosa, ensaísta português especializado em ciberliteratura. Na tela do computador desfilam signos dos mais variados matizes, questionando as formas de absorção das novas linguagens. Para Santaella, “qualquer descrição do computador é uma evidência de seu caráter simbólico e cognitivo”. Frente a este universo desafiador e estimulante, a poesia encontra um espaço a mais para as suas sempre renovadoras formas de manifestação.
Para o semioticista português Rui Torres o cibertexto (ou o texto em meio digital) modifica o uso inicial do computador, até então utilizado como máquina de armazenamento. A partir de agora o computador pede um uso criativo. E é neste momento que surge a poesia digital. E, como consequência, altera-se nosso modo de percepção do mundo, gerando uma nova epistemologia.
Ainda segundo Rui Torres, o computador modifica e amplia tanto a leitura como a escrita. Assim, o semioticista português apresenta três posturas abarcando a criatividade literária e o meio digital. São elas: 1. o hipertexto e a hiperficção; 2. o texto animado, interativo e multimídia; 3. o texto gerado por computador. Tais modalidades problematizam a mentalidade analógica e abrem caminhos para novas formas de expressão da literatura – e da poesia, em particular.
O hipertexto é o mais permanente e o mais visível. Desde a organização dos arquivos de bibliotecas que as disponibilizam a distância (é o lado permanente) até a cara e o prefixo da www – world wide web – até o http:// - hipertext transfer protocol (é o lado mais visível). Por isto mesmo o hipertexto é a mais conhecida das modalidades do cibertexto. Diz Rui Torres: “o hipertexto interessa aos estudos literários e culturais no sentido em que ele nos leva a identificar, no tipo de escrita não-linear e sequencial que o caracteriza, a própria noção de literariedade”. E continua: “Por outro lado, o hipertexto permite-nos rearticular, através principalmente da hiperficção, os conceitos de dialogismo e intertextualidade, o primeiro proposto por Bakhtin e o segundo por Julia Kristeva”.
A tendência do hipertexto para a autorreferencialidade (“a tomada de consciência acerca do próprio meio em que se inscreve”) o relaciona com a pós-modernidade. A convergência entre hipertexto e narrativa metaficcional faz-nos repensar as ligações (linkadas), a colagem, a mistura e a combinação tendo em vista o movimento do diálogo e a variação. Dentro da perspectiva rizomática de Deleuze e Guatarri não interessam o centro ou a periferia mas as conexões e a pluralidadade daí advinda. O rizoma é, por definição, anti-hierárquico: todos os pontos que constituem o sistema estão interligados; qualquer ponto de um sistema rizomático pode estar ligado a outros sem obedecer a regras hierárquicas.
Dentro de uma linha não-linear de descentramento, o hipertexto destaca-se por conceder ao leitor o papel de construtor de sentido. Nele o leitor torna-se autor, ou co-autor já que é ele quem manipula a informação através das escolhas que faz.
O texto animado, multimídia, interativo dos blogs, twitters, orkuts e etc., têm feito emergir uma literatura que, mais que em épocas precedentes, toma o leitor e a linguagem como vetores. O princípio norteador de O jogo da amarelinha, os labirintos borgeanos, etc., agora são matéria concreta de uma nova escrita, dos manuscritos de computador. A poesia animada por computador, ao trazer para o universo da criação novos componentes como o efetivo movimento e a interatividade, abre portas e janelas para novos campos da criação. O que é altamente estimulante para a nova literatura – e em especial, para a nova poesia, a poesia digital (ou ciberpoesia, ou infopoesia – já que a terminologia ainda não foi fixada).
Por fim, o computador passa a gerar textos. A inteligência artificial nunca foi tão natural como agora. O computador é uma máquina semiótica por excelência. Gera signos e linguagens. Tanto a partir de programas pré-estabelecidos, como através de programações aleatórias – e portanto inesperadas.
O livro pode não desaparecer, como afirma Eco, mas seu modo de compor já é outro. Sorte da literatura, que se renova depois de renovar tantas mídias, como o cinema, a tv, o vídeo.
Referências bibliográficas:
ECO, Umberto & CARRIÈRE, Jean-Claude. Não contem com o fim do livro. Trad. André Teles. Rio de Janeiro: Record, 2010.
SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano; da cultura das mídias à cibercultura. 2ª ed. S. Paulo: Paulus, 2004.
TORRES, Rui. “Poesia em meio digital: algumas observações”. In: GOUVEIA, Luís Borges & GAIO, Sofia (Org). Sociedade da Informação: balanço e implicações. Porto: Edições da Universidade Fernando Pessoa, 2003.
Amador Ribeiro Neto é autor, em parceria com Roberto Coura, de "imagens & poemas" (ed. UFPB, joão pessoa, 2008). É organizador e co-autor de "muitos – textos sobre caetano veloso" (ed. orobó, montes claros-mg, no prelo). É autor de “Poemail”, livro de poemas, inédito. Também organizou e é co-autor de "literatura na universidade" (ed. UFPB, joão pessoa). É co-autor de "chico buarque do brasil", organizado por rinaldo de fernandes, rio, garamond; de "quartas histórias", organizado por rinaldo de fernandes, rio, garamond e de "capitu mandou flores", organizado por rinaldo de fernandes, s. paulo: geração editorial, 2008. E-mail:
amador.ribeiro@uol.com.br