29 setembro 2010
Cibercultura e Correio das Artes
Estreio no Correio das Artes, suplemento cultural encartado no jornal A União da Paraíba, uma coluna mensal intitulada de CIBERCULTURA. Confira o primeiro texto (acima) e, se quiser receber o PDF da edição do Correio por email, envie uma mensagem para mim [sonartes@gmail.com] ou para seu editor, Astier Basílio [astierbasilio@gmail.com].
28 setembro 2010
Cultivando engenhos
As oficinas literárias vieram pra ficar. São necessárias e em certa medida até imprescindíveis, principalmente se os autores que as procuram têm algum talento.
Sim, talento não se pode aprender. Não se pode dar, nem ensinar. Mas, quando há talento, a magia da literatura pode acontecer com mais eficácia, cultivada pelas trocas, questionamentos, sugestões, senso crítico, escrita consciente, releituras e faíscas emanadas pelo grupo e incentivadas pelo coordenador que, ao final do milagre, desaparece enquanto todos estão se olhando maravilhados.
Parece-me que é isso que o escritor e coordenador das oficinas literárias “Erro mas escrevo”, Marne Lucio Guedes, nos oferece com esta seleta de contos de seus engenhosos oficinandos. Autores talentosos, manejando com graça e sem ingenuidade as ferramentas da criação literária.
O que mais poderíamos pedir? Todos eles já poderiam estar com seus livros de contos na praça. Agora é só uma questão de tempo e de persistência.
Podemos gostar mais da pegada de um autor do que a de outro. Isso é esperado e antologias tendem a realçar, por contraste, tal característica. Neste caso, a fatura está liquidada e o saldo é extremamente positivo.
Carlos Kieffer é um dramaturgo de mão cheia. Escreve com um bisturi entre os dedos e uma consciência dramática rara. Seus contos são os mais coesos do livro.
Livia Lima arrisca-se em busca de sua voz narrativa. Esparrama-se feminina, quase barroca, mesmo quando seu narrador é masculino.
Walter Solon é um garoto que escreve como gente grande. Tem fôlego e imaginação de romancista. Seu conto “Linhagem”, embora ainda calcado no mestre Graciliano Ramos, é uma pequena pérola construída com esmero.
Maria Maximo tece as relações humanas com sutileza em seus contos. “Fendas” talvez seja o melhor resolvido e mostra um caminho de ousadia muito bem-vindo, com seu artifício poético-visual na caracterização do sonho da personagem.
O milagre foi feito. Agora é desaparecer enquanto os leitores folheiam estas páginas. E que edição, hein? Tudo preto no branco. Ou será o contrário?
[Texto escrito para a "orelha" do livro Seiva e Risco, Terracota Editora]
26 setembro 2010
Noites de Autógrafos
“Imagino a inveja que provocariam em qualquer cartunista da revista The New Yorker. ‘Com mil demônios! Por que não tive essa idéia antes?’ Agora é tarde, dude; Reinaldo sacou primeiro. E acertou na mosca.”
Sérgio Augusto, no prefácio do livro, tem razão. Embora eu não seja nonada da New Yorker, muito menos cartunista, foi assim que me senti ao ver o livro do cartunista carioca Reinaldo Figueiredo.
Imaginem a noite de lançamentos de Homero, Shakespeare, Machado de Assis, Julio Cortázar, entre outros grandes. Quem compareceria?
Imagine uma noite de autógrafos na qual Fernando Pessoa recebesse seus heterônimos ansiosos por um autógrafo.
É isso o que fez o cartunista, com o acompanhamento de um pequeno comentário biográfico sobre o autor em questão. Uma delícia.
Vejam com seus próprios olhos, alguns exemplos:
JULIO CORTÁZAR
(1914 – 1984)
Escritor argentino que viveu muito tempo na França. Um dos mestres da chamada literatura fantástica, é autor do romance O Jogo da Amarelinha e do livro de contos Histórias de Cronópios e de Famas. A primeira vez que usou a palavra “cronópio” para definir um tipo especial de criatura foi numa espécie de crônica sobre um concerto de Louis Armstrong, em Paris. O texto está na coletânea A Volta ao Dia em Oitenta Mundos.
***
Editora: Desiderata
Reinaldo Figueiredo foi um dos fundadores do tablóide de humor O Planeta Diário, em 1984, e se tornou famoso como integrante do grupo Casseta & Planeta, no qual interpreta personagens antológicos como Osama, Devagar Franco e Ótima Bernardes. Foi colaborador do Pasquim e já publicou ilustrações em revistas como Chiclete com Banana, Bundas, Jazz+ e Piauí.
E-mail: reinaldofig@gmail.com
23 setembro 2010
Jornal MEMAI e Micropolis
O jornal de Letras e Artes japonesas, MEMAI, lança seu quinto número e completa 1 ano de circulação. Seu nome significa, em japonês, “Vertigem” e constrói pontes híbridas entre o Oriente e o Ocidente.
Nesta edição, com essa capa maravilhosa, podemos encontrar um artigo sobre a gravura japonesa que influenciou pintores como Van Gogh, Manet e Gauguin.
Conheci sua simpática editora, a jornalista Marília Kubota, na Casa das Rosas. Pelo Correio, ela me enviava os números do jornal, antes de aparecer no lançamento do livro “O que é poesia?”. Ela também é haicaista e nos oferece, em primeira mão, um pouquinho de suas micropolis iluminações.
O projeto gráfico do jornal é da artista plástica Sandra Hiromoto. Você pode conferir o site www.jornalmemai.com.br e se quiser assinar ou conhecer na faixa, mande um email para contato@jornalmemai.com.br
Micropolis
Por Marília Kubota
De repente
A luz alumia a casa
Um bando de vagalumes
Névoa na cidade.
Cantam os pneus da bicicleta
o ciclista assobia.
Cantam os pneus da bicicleta
o ciclista assobia.
Passeio no entardecer.
O velho descansa na varanda.
Pantufas vermelhas.
O velho descansa na varanda.
Pantufas vermelhas.
Tarde de calor.
O elefante, a girafa, a moça,
Deslizam em nuvem.
Flores de ipê
Caídas na calçada nova
No coreto discursos velhos.
Na fimbria do dicionário
a fileira de formigas
obstrui a pesquisa
Tarde de calor.
O gato aguarda espetáculo:
a dança do mosquito.
21 setembro 2010
Piratas, não. CORSÁRIOS.
A revista Corsário está novamente on-line, comemorando seu quinto ano de existência, e com projeto engatilhado para uma revista impressa. Os cabras tem até editora e já haviam disponibilizado vários livros em PDF em suas edições anteriores.
O Ceará é realmente um celeiro alternativo (ao pretensioso Sul maravilha, claro) e produtivo do que melhor se vem fazendo em literatura e suas adjacências, no ciberespaço ou não. Não dá pra falar em literatura na internet sem citar o pioneiro Soares Feitosa e seu Jornal de Poesia ou Floriano Martins com sua revista Agulha (que agora hospeda-se nos braços do Jornal de Poesia).
A nau capitaneada pelo poeta e agitador em novas mídias, Mardônio França, não pede licença e sangra sem compaixão os mares bravios da mediocridade internética.
19 setembro 2010
O computador enquanto suporte da nova literatura
[Amador Ribeiro Neto, Marcelino Freire, André Ricardo Aguiar e Edson Cruz]
Texto lido por Amador Ribeiro Neto em João Pessoa, no Agosto das Letras, na mesa de debate: “Literatura e Novas Mídias”
Nestes tempos de Internet, a pergunta que mais se faz é se o livro deixará de existir. Depois da era das imagens voltamos à era alfabética, nos diz Umberto Eco em seu mais recente livro, intitulado Não contem com o fim do livro. Nunca se leu e escreveu tanto como agora. O livro, ainda segundo Eco, não desaparecerá. “O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados”. O livro um dia talvez não tenha páginas de papel, mas ele permanecerá como é.
O livro que um dia Mallarmé projetou, depois Borges sonhou – e antes deles, Heródoto quis –, este livro virou realidade. Mas realidade virtual. Este livro é o ciberespaço da infolinguagem.
Para Lucia Santaella, em Culturas e Artes do Pós-Humano; da cultura das mídias à cibercultura:
“Dos anos 90 para cá, estamos assistindo a uma nova revolução que (...) provavelmente trará consequências antropológicas e socioculturais muito mais profundas do que foram as da revolução industrial e eletrônica, talvez ainda mais profundas do que foram as revoluções neolíticas. Trata-se da revolução digital e da explosão das telecomunicações, trazendo consigo a cibercultura e as comunidades visuais. (...) Na ciberarte (...) as tradicionais divisões de papéis entre emissor e receptor se ampliam sobremaneira, com a sua condição interativa, a tradição das artes expositivas-contemplativas e mesmo das artes participativas”.
O texto eletrônico, por não se fixar em suporte material, como a folha de papel, possibilita o acesso à distância em tempo real. Ou seja, o texto, sem a materialidade do papel, pode ser lido por múltiplos (ou milhares) de leitores ao mesmo tempo, com tais leitores em espaços geográficos diversos.
A biblioteca universal chegou. O grande livro, soma de todos os livros e bibliotecas, tão almejado, está on line. Está no ciberespaço. E o ciberespaço (espaço com inovações da eletrônica, da cibernética, da computação, da informação, da comunicação) chegou rápido – e rapidamente está mudando a ordem econômica, a ordem social, a ordem cultural, etc. Enfim, está mudando a linguagem. Sociedade da informação, era do virtual, vida digital, homem semiótico, hipertexto, infopoesia, e-book são realidades instauradas em nosso tempo.
As escritas hipertextuais estão gerando uma economia na escrita, mudando a língua, a linguagem, a literatura. O ciberespaço ultrapassa a nossa capacidade de imaginação e, é claro, nos dá sentimentos de gozo e medo, ao mesmo tempo. Afinal, o novo assusta. “À mente apavora o que ainda não é mesmo velho”, canta Caetano. Oswald disse: "língua natural e neológica".
Por estas e outras, o novo, o velho, o novelo, o novelho está nos envolvendo em cada linha, em cada palavra, em cada música, em cada pensamento, com esta língua de literaturas, saberes e sabor.
Borges um dia declarou: "Dediquei grande parte de minha vida às letras, e creio que uma forma de felicidade é a leitura".
Literatura: cursor de novos jogos, brincadeiras, armações, engenhos e engenhosidades: a língua proíbe e a literatura libera. Apenas proibição ou apenas liberação geral não dão em nada – ou levam à barbárie. O lance é continuar deixando literatura e língua trocarem seus beijos sem ter conta e sem ter fim.
Literatura: ludismo à mancheia. Exuberância. Pletora sem fim.
Com a mudança do meio de produção, ou da mídia de produção, se assim preferir-se, altera-se o modo de recepção do objeto literário. Walter Benjamin já nos chama a atenção para a nova mudança da postura, também física do leitor, diante do surgimento do jornal – em confronto com o livro.
Da mesma forma a tela do computador impõe, não somente mudança na postura física do leitor, como na assimilação das novas mensagens.
Diante de imagens que movimentam-se associadas, ou não, a sons e cores, o repertório do receptor pede atualização face a esta nova realidade da obra artística.
Mais que objeto cultural – como pontua o semioticista russo Chklóvski – o texto literário é um processo cultural singular, desautomatizador, gerando novas percepções do objeto artístico e do mundo em si.
Em tempos de novos suportes e recursos tecnológicos, a poesia farta-se nas múltiplas possibilidades de criação face às novas mídias. Estudar as representações daí advindas é um desafio aos estudiosos da poesia, bem como aos poetas. Arte-ciência-tecnologia embrincam-se, mais que em outras épocas históricas.
O computador é hoje a grande máquina semiótica, afirma Pedro Barbosa, ensaísta português especializado em ciberliteratura. Na tela do computador desfilam signos dos mais variados matizes, questionando as formas de absorção das novas linguagens. Para Santaella, “qualquer descrição do computador é uma evidência de seu caráter simbólico e cognitivo”. Frente a este universo desafiador e estimulante, a poesia encontra um espaço a mais para as suas sempre renovadoras formas de manifestação.
Para o semioticista português Rui Torres o cibertexto (ou o texto em meio digital) modifica o uso inicial do computador, até então utilizado como máquina de armazenamento. A partir de agora o computador pede um uso criativo. E é neste momento que surge a poesia digital. E, como consequência, altera-se nosso modo de percepção do mundo, gerando uma nova epistemologia.
Ainda segundo Rui Torres, o computador modifica e amplia tanto a leitura como a escrita. Assim, o semioticista português apresenta três posturas abarcando a criatividade literária e o meio digital. São elas: 1. o hipertexto e a hiperficção; 2. o texto animado, interativo e multimídia; 3. o texto gerado por computador. Tais modalidades problematizam a mentalidade analógica e abrem caminhos para novas formas de expressão da literatura – e da poesia, em particular.
O hipertexto é o mais permanente e o mais visível. Desde a organização dos arquivos de bibliotecas que as disponibilizam a distância (é o lado permanente) até a cara e o prefixo da www – world wide web – até o http:// - hipertext transfer protocol (é o lado mais visível). Por isto mesmo o hipertexto é a mais conhecida das modalidades do cibertexto. Diz Rui Torres: “o hipertexto interessa aos estudos literários e culturais no sentido em que ele nos leva a identificar, no tipo de escrita não-linear e sequencial que o caracteriza, a própria noção de literariedade”. E continua: “Por outro lado, o hipertexto permite-nos rearticular, através principalmente da hiperficção, os conceitos de dialogismo e intertextualidade, o primeiro proposto por Bakhtin e o segundo por Julia Kristeva”.
A tendência do hipertexto para a autorreferencialidade (“a tomada de consciência acerca do próprio meio em que se inscreve”) o relaciona com a pós-modernidade. A convergência entre hipertexto e narrativa metaficcional faz-nos repensar as ligações (linkadas), a colagem, a mistura e a combinação tendo em vista o movimento do diálogo e a variação. Dentro da perspectiva rizomática de Deleuze e Guatarri não interessam o centro ou a periferia mas as conexões e a pluralidadade daí advinda. O rizoma é, por definição, anti-hierárquico: todos os pontos que constituem o sistema estão interligados; qualquer ponto de um sistema rizomático pode estar ligado a outros sem obedecer a regras hierárquicas.
Dentro de uma linha não-linear de descentramento, o hipertexto destaca-se por conceder ao leitor o papel de construtor de sentido. Nele o leitor torna-se autor, ou co-autor já que é ele quem manipula a informação através das escolhas que faz.
O texto animado, multimídia, interativo dos blogs, twitters, orkuts e etc., têm feito emergir uma literatura que, mais que em épocas precedentes, toma o leitor e a linguagem como vetores. O princípio norteador de O jogo da amarelinha, os labirintos borgeanos, etc., agora são matéria concreta de uma nova escrita, dos manuscritos de computador. A poesia animada por computador, ao trazer para o universo da criação novos componentes como o efetivo movimento e a interatividade, abre portas e janelas para novos campos da criação. O que é altamente estimulante para a nova literatura – e em especial, para a nova poesia, a poesia digital (ou ciberpoesia, ou infopoesia – já que a terminologia ainda não foi fixada).
Por fim, o computador passa a gerar textos. A inteligência artificial nunca foi tão natural como agora. O computador é uma máquina semiótica por excelência. Gera signos e linguagens. Tanto a partir de programas pré-estabelecidos, como através de programações aleatórias – e portanto inesperadas.
O livro pode não desaparecer, como afirma Eco, mas seu modo de compor já é outro. Sorte da literatura, que se renova depois de renovar tantas mídias, como o cinema, a tv, o vídeo.
Referências bibliográficas:
ECO, Umberto & CARRIÈRE, Jean-Claude. Não contem com o fim do livro. Trad. André Teles. Rio de Janeiro: Record, 2010.
SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano; da cultura das mídias à cibercultura. 2ª ed. S. Paulo: Paulus, 2004.
TORRES, Rui. “Poesia em meio digital: algumas observações”. In: GOUVEIA, Luís Borges & GAIO, Sofia (Org). Sociedade da Informação: balanço e implicações. Porto: Edições da Universidade Fernando Pessoa, 2003.
Amador Ribeiro Neto é autor, em parceria com Roberto Coura, de "imagens & poemas" (ed. UFPB, joão pessoa, 2008). É organizador e co-autor de "muitos – textos sobre caetano veloso" (ed. orobó, montes claros-mg, no prelo). É autor de “Poemail”, livro de poemas, inédito. Também organizou e é co-autor de "literatura na universidade" (ed. UFPB, joão pessoa). É co-autor de "chico buarque do brasil", organizado por rinaldo de fernandes, rio, garamond; de "quartas histórias", organizado por rinaldo de fernandes, rio, garamond e de "capitu mandou flores", organizado por rinaldo de fernandes, s. paulo: geração editorial, 2008. E-mail: amador.ribeiro@uol.com.br
15 setembro 2010
Fogo na bacurinha
Desconcertante este Almodóvar. Ao terminar de ler o livro não sabemos por onde começar a falar sobre ele. Se começamos pelas entranhas, pelo que recobre as entranhas, ou mesmo, pelo que penetrou nas entranhas. Em todo caso, há um calor que emana pelo texto e vai crescendo até se tornar puro fogo. Um fogo que queima as bacurinhas das mulheres madrileñas retratadas, e que se espalha, acabando por consumir a todos como lenhas numa Madri em chamas.
O bacana do livro é a forma direta, sem firulas, e irônica como são narrados os acontecimentos. Acontecimentos às vezes inusitados, que poderiam ser inverossímeis, mas narrados como são, nos parecem histórias mais do que reais. Enredos de um filme de Almodóvar. Um estilo sem pretensão de profundidades, mensagens, ou outras moralidades, e que por isso mesmo encanta e nos dá prazer.
O romance, pelo que nos consta, foi a estreia de Almodóvar no gênero, lá pelos idos de 81, longe ainda da produção cinematográfica pela qual viria a se tornar uma referência do cinema espanhol moderno. O livro esgotou-se rapidamente e, por estas bandas, já está na quinta reimpressão desta coleção que recupera, com bom gosto e estilo, livros raros da literatura underground e folhetinesca: a coleção Babel.
As teorias e postulações críticas que visam compreender o gênero chamado de romance sempre deixaram a desejar, em todos os tempos. Há sempre aquela produção que surge para desbancar as formulações mais elaboradas e fechadas. Produções que exigem dos críticos reformulações de escopo e postulados. Não que Fogo nas Entranhas tenha sido gerado com esta intenção, nem que seja um exemplo acabado de romance esteticamente revolucionário, mas a simplicidade de suas formulações atinge por vezes uma poesia estranha, que muitas vezes obras de maior fôlego, e rebuscamento, ficam longe de atingir.
Parece-me que alguns romances são impermeáveis a um olhar mais tradicional da crítica literária. Toma-se o romance, quase sempre, a sério demais, como se ele se tratasse de um documento de época, uma confissão, ou uma história autêntica, pessoal. Quando a seriedade do olhar não encontra ressonância na obra, descartam-na como sendo irrelevante para a arte literária de uma época.
Acontece, por vezes, que a literatura nas mãos de um ‘artista’ tem sempre um objetivo estético e que - mesmo não compreensível nos parâmetros que estamos acostumados - possui uma coerência interna que se afina e se afirma com o diapasão de quem a produz.
É o que acontece com este pequeno romance de Almodóvar. Um recorte da vida que obedece a propósitos específicos. Revestido de uma linguagem paródica, intensifica nossa relação com a vida e nos faz aceitá-la com toda a carga de magia e absurdo que possa nos acarretar.
A graça deste romance está na forma como ele desenvolveu a estória de Chu Ming Ho. Um chinês que chegou à Espanha nos anos 50 e prosperou, pois era hábil, astuto e artesão. Ou será que prosperou por que era chinês?
Tudo é contado de maneira não linear, como uma história em quadrinhos entremeada de várias tramas paralelas, até chegar ao nó central que as unifica e dá sentido: o testamento do chinês.
Abandonado pelas cinco amantes, que nos são apresentadas com vagar, este próspero industrial de absorventes femininos prepara uma vingança flamejante às suas ex, e por extensão, a todas as mulheres e mesmo a toda a cidade.
O Testamento
“...trabalhei minha vida inteira com e para as mulheres, e nunca cheguei a conhecê-las. Só descobri uma coisa: louras, morenas, ruivas, altas ou baixas, todas são iguais. Umas vadias. Ainda assim, reconheço que devo meus melhores momentos a elas - e os piores também. Mas não me arrependo de nada. Dediquei todos os dias da minha existência a esse milagre que elas guardam no meio das pernas, uma coisa tão delicada que justifica todos os meus esforços. Por isso não quis ir embora sem render-lhes um pequeno tributo: meu último modelo de absorvente, diminuto, transparente, que estimula, tonifica, desinfeta, com vitaminas E e U, cloruto potássico, etc. Utilizável todos os dias do mês, e não apenas no período da menstruação. Como prova de agradecimentos, determinei que durante uma semana todas as clientes possam ter de graça um pacote de absorventes. Depois, o artigo começará a ser vendido normalmente.
Deixo minha indústria para aquelas que foram minhas principais amantes, ou seja: Diana, a orgulhosa; Mara, a cínica; Katy, a abelhuda; Lupe, a hippie; e Raimunda, a freira. Podem vender tudo, ou fazer o que quiserem. Só imponho uma condição: que durante meu enterro, e na presença de um tabelião, as quatro usem um dos meus absorventes último modelo. Acho que tenho direito a esta homenagem póstuma. E fico satisfeito em saber que sejam elas as primeiras a desfrutar de todas as suas vantagens. A que por algum motivo se negar, ficará automaticamente excluída da herança.
Não sinto rancor por nenhuma. Adeus”.
O que se segue a partir daí me lembrou o romance Ensaio sobre a Cegueira de Saramago. Só que Saramago é grave e Almodóvar hilário. Em Almodóvar as mulheres ficam cegas é de vontade de dar depois de usarem este bendito absorvente. As caras ficam crispadas e os olhos selvagens a cata de um macho que possa aplacar o furor uterino que lhes consome. Claro que os homens não dão conta do recado. Alguns até tentam. Outros alegram-se pela oportunidade de tirar a barriga da miséria, ou melhor, o peru. Mas o prazer é fatal, pede seu quinhão de vida em troca.
Instaura-se a peste pós-moderna. O êxtase, o céu e o inferno têm moradas em Madri. O esplendor do caos deita-se e copula com todos. Como apagar esta fogueira que se consome? Como é Almodóvar, a cura não existe, o efeito não se desvanece de uma hora pra outra e tudo volta ao ‘normal’. A chama continua com suas labaredas. Você pode fugir delas, se refugiar, se embebedar, até dormir em paz, mas elas continuam a arder.
Ardem tanto que há relatos e relatos de mulheres e homens que depois de lerem Fogo nas Entranhas saíram por aí com uma vontade danada de dar. Claro que levaram quilos de camisinha na bolsa, pois já não estamos mais em 81, né?
Bibliografia de Almodóvar
Fuego en las entrañas,
Madrid, ed La Cúpula, 1981. El Víbora, colección Onliyu
Site sobre Almodóvar:
09 setembro 2010
Mecanismos Precários
Mecanismos precários é uma coletânea de dezessete poderosos contos sobre a turbulenta existência na metrópole. São narrativas intensas e vigorosas, que contemplam os muitos lados da vida em sociedade: a poesia e a violência, a fraternidade e o medo, o humor e o amor etc.
Do realista ao alegórico, passando pelo subjetivista e pelo nonsense, uma ampla gama de registros literários sustenta essa reunião de vozes narrativas.
Participam do livro alguns dos melhores ficcionistas brasileiros da nova geração (Edson Cruz, Marcelino Freire, Nelson de Oliveira, Luís Marra e Marcelo Maluf) ao lado de jovens promessas não menos talentosas.
Autores: Ábia da Silva Gomes, Alexandre Heredia, Claudio Brites, Edson Cruz, Eduardo Sigrist, Laura Fuentes, Marcelino Freire, Marcos Roma, Nelson de Oliveira, Nelson Lourenço, Patricia Cytrynowicz, Ricardo Delfin, Tiago Araújo, Valéria Piassa Polizzi, Deborah Panachão, Luís Marra e Marcelo Maluf.
Prefácio:
Contos cortantes e perfurantes
A pintura mais famosa de Pablo Picasso retrata uma cidadezinha basca — Guernica y Luno — bombardeada pelos nazistas a pedido dos nacionalistas espanhóis, durante a Guerra Civil.
A grande tela em preto e branco, em estilo primitivista e cubista, mostra corpos mutilados e incendiados, de pessoas e animais. Terrível.
Dizem que um oficial nazista, horrorizado com a feiúra da tela, perguntou ao pintor: “Foi você quem fez isso?”
Picasso respondeu: “Não. Foram vocês.”
Toda a arte e toda a literatura modernas tratam da feiúra do mundo. Essa é sua forma de protesto: denunciar as injustiças e a crueldade, mostrando-as.
Os contos reunidos nesta antologia, fiéis a esse princípio, incomodam, inquietam. Podem até chocar. Mas não culpem os autores por isso. Culpem a própria sociedade.
Mecanismo (substantivo: “combinação de peças que fazem funcionar uma estrutura orgânica ou mecânica”) precário (adjetivo: “que está em más condições e não cumpre a contento seus propósitos”) é tudo o que funciona mal na sociedade. Tudo o que corta e fura, provocando angústia e dor.
Mecanismos precários somos todos nós: tesouras na própria carne.
A função da literatura é revelar isso, por meio do mergulho estético. E assim nos salvar de nós mesmos.
Os organizadores
03 setembro 2010
Revista Celuzlose
A sexta edição da revista Celuzlose
já está pronta e disponível na internet.
Para acessá-la, basta clicar no link abaixo:
NESTA EDIÇÃO
Entrevista
Rodrigo Garcia Lopes
BR.XXI - Literatura Brasileira Contemporânea
Ademir Demarchi
Adriano Lobão Aragão
Beatriz Bajo
Celso de Alencar
Eduardo Jorge
Micheliny Verunsck
Nicole Cristofalo
Wanderson Lima
GEO - Literatura sem Fronteiras
Jesús Ernesto Parra (Venezuela)
Julien Burri (Suíça)
Melcion Mateu (Espanha)
Pedro Granados (Peru)
Caderno Crítico
Breve história da literatura basca - por Fábio Aristimunho Vargas
O que é poesia?
Edson Cruz (Organizador)
André Ricardo Aguiar
Lau Siqueira
Linaldo Guedes
BIO - Vida & Obra
Lorenzo de´ Medici - por Dirceu Villa
LÚCIDA RETINA - Poesia Visual
Guto Lacaz
01 setembro 2010
À beira-mar
[Pedro Salgueiro, Marcelino Freire, companheira do Chico, Chico César, amigo do Chico, Branca Ramil, Vitor Ramil, Edson Cruz e Karla Melo]
Na noite de sábado, em João Pessoa, depois do debate sobre Literatura e Novas Mídias, do lançamento de O que é poesia? e do show de Vitor Ramil, fomos jantar em um quiosque na beira da praia. Choveu nesta noite. Começou durante o show do Vitor Ramil. Aliás, lindo. Voz, violão, letras e postura de palco. O Marcelino e eu tomando cerveja e embevecidos com o show. A estética do frio geometrizada em João Pessoa. Essa cidade quente e com uma luz inacreditável. Foi um choque voltar pra São Paulo. Amanhecer em São Paulo, com sua luz baça e sua poluição monstro.
Apesar de pouco público e de algumas falhas na organização, o evento idealizado pela Funjope, na figura do gentleman André Ricardo Aguiar, foi um sucesso.
Na manhã de sábado, conheci o bairro e a praia do Bessa com o amigo jornalista e parceiro de vários anos, Linaldo Guedes. Linaldo foi me pegar no hotel, apesar de estar se recuperando de uma gripe forte, e regados à água de coco, conversamos sobre a vida, sobre literatura e sua mazelas.
Não almoçei neste dia, pois me senti o mais gordo dos baianos. Com uma pança enorme resfolegando pelas areias de João Pessoa.
No dia anterior, sexta à tarde, já havia reencontrado o mestre Raimundo Carrero em seu diálogo sobre autores e editoras.
À noite, depois do debate, Lau Siqueira nos carregou pra jantar e, antes, nos levou para uma exposição de Abelardo da Hora na Estação Ciência. O trabalho artístico mais incrível que vi nos últimos anos. Uma descoberta pra não ser esquecida. Eu nunca escutara o nome de Abelardo.
Valeu, Lau.
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