A USP já não é mais a mesma. Mas ainda
há vida inteligente lá. E há também humor. Às vezes sarcástico, irônico,
corrosivo, desesperançado, porém, com uma didática lucidez. Meu
amigo Oliveira Barbosa e eu percorremos as catacumbas do prédio da Letras
para entrevistar o professor de literatura brasileira, autodenominado
‘espanador de múmias’, JOÃO ADOLFO HANSEN. Suas aulas estão sempre abarrotadas de
alunos e curiosos, que em silêncio quase reverencial, quase susto, permanecem
por hora e meia sentados ouvindo, ouvindo e ouvindo. É um dos professores mais
interessantes que já tive a boa sorte de acompanhar.
EC – Como o Sr. vê hoje a falência das Humanidades,
das Ciências Humanas no mundo globalizado?
HANSEN - Acho que ela é uma decorrência lógica do estágio atual
do capitalismo, que evidentemente transforma toda a cultura num valor de troca
e mercadoria. Na medida em que estas Letras ainda pretendiam ter uma função
crítica, e na medida que você não tem condições práticas e materiais pra que
essa crítica se realize, as Letras foram totalmente desvalorizadas. Elas só
podem interessar, talvez, como divertimento, passatempo. Eu acho que é lógico,
é um desenvolvimento lógico do capital. Agora, não sei se a gente fica numa
posição de lamentar o leite derramado que se perdeu... Isso acho que não vale a
pena, mas também parece que hoje nós não temos muita clareza sobre o que está
ocorrendo no campo mesmo da cultura e das Letras. Parece que hoje o que vale...
É quase um vale tudo, né? Não sei se eu te respondi?
EC –
Mas como se posicionar nesse meio, como professor de Literatura, como estudante
de Literatura, como alguém que de algum modo se envolve com a Literatura...?
HANSEN – Evidentemente eu não posso dizer o que os outros
devem fazer, eu posso dizer o que eles podem fazer e a partir de minha
experiência que é muito precária e muito particular. Eu, pessoalmente, acredito
que a gente deve resistir contra a barbárie que esta aí. Então nesse sentido as
Letras ainda tem uma função de conhecimento, de crítica, e eu espero sempre que
até de democratização das relações. A gente devia pensar num mundo mais
democrático. Eu penso nisso, que a função de um professor é criticar opinião. É
criticar aquilo que passa por natureza e é só ideologia, entende? Nesse sentido
as Letras, elas são ocasião pra discutir temas da cultura, na medida em que a
Literatura põe em cena todas as questões que importam. A gente vê isso na
grande poesia, quando você ta lendo um Drummond, quando você lê um Murilo
Mendes, ou um grande artista como o Graciliano Ramos, um Guimarães Rosa, um
Machado de Assis, ta tudo ali... Pra quem quiser ver. Tem essa questão, é pra
quem quiser ver. Eu acredito que você faz aquilo que você pode. Às vezes me
sinto como professor, como se eu fosse um arqueólogo que trabalha num museu,
guardando múmias. Na medida em que a experiência do texto literário,
atualmente, não encontra a ressonância nas práticas efetivas da nossa
sociedade. Mas assim mesmo acredito que é possível ainda ler, discutir, fazer,
na medida em que há pessoas, que tem interesse. Não sei se eu te respondi de
novo...
EC –
Sim... Temos uma idéia romântica que a Literatura pode fazer alguma coisa pra
mudar, de alguma forma interferir...
HANSEN – Não, ela não pode. Como eu ia dizer hoje mesmo em
classe, falando do João Cabral, o poeta não pode nada, o escritor não pode
nada. Ele não é padre, não é militar, não é político, e ele não é banqueiro.
Quer dizer, ele não tem acesso, realmente, ao poder efetivo... Mas, no texto
literário, quando o texto literário vale a pena, as normas sociais, os esquemas
de ação verbal estão sempre sendo polemizados, criticados, contraditados. Acho
que a Literatura tem alguma eficácia na medida em que ela evidencia sempre o
arbitrário da cultura, o arbitrário do simbólico, o arbitrário da convenção
social no uso dos signos. Nesse sentido o poeta pode ser eficaz. Talvez pra
alguns... Não diria que ele vai transformar a sociedade. Ele vai transformar,
talvez, modos de ler, modos de entender, o que já é alguma coisa, né? Você acha
que responde, também...?
EC –
É uma resposta... Mas, retomando uma pergunta que eu havia lhe feito em aula: o
que é fazer literatura relevante hoje, e quem a estaria fazendo?
HANSEN – Eu nem lembro como eu lhe respondi...
EC – Porque, uma coisa que sentimos falta aqui na USP
são dos autores contemporâneos... Estudam-se os autores mortos...
HANSEN – … é sempre difícil fazer a história do
presente... Quer dizer, a história sempre está interessada no presente, eu
acho. Você fala do passado interessado no presente, mas fazer a história dos
próprios objetos e das práticas do presente, a gente não tem distanciamento. E
às vezes, não temos uma documentação suficiente, a coisa não ficou sedimentada
pra produzir, por exemplo, um consenso crítico, ainda que fosse polêmico, mas
que fosse crítico. E na medida que você tem uma grande dispersão das práticas
literárias hoje, a gente às vezes, não saberia por onde começar, o que
escolher, etc. Além disso, tem um outro dado que é institucional, é que a
Universidade ao mesmo tempo em que faz pesquisa, ela também tem este sentido de
quase garantir uma memória daquilo que há. Geralmente, a Universidade tem esta
tendência, às vezes muito forte demais, de dar conta só daquilo que ta morto,
daquilo que passou. Você tem também aí, no nosso caso específico, uma questão
institucional de não ter espaço acadêmico para fazer isso. O número de cursos,
por exemplo, na minha área de Literatura Brasileira, não é suficiente pra dar
conta do próprio passado. Nós somos obrigados muita vez, a fazer uma seleção
que exclui, inclusive, épocas inteiras e autores inteiros. Do ponto de vista de
uma história literária, embora sejam autores que não são grandes, mas tem
interesse como coisa cultural. Então você tem várias questões aí. Também falta
iniciativa, provavelmente de professores, falta iniciativa e organização dos
alunos, mas eu acho que seria perfeitamente viável discutir o que se está
fazendo hoje em poesia, ou como prosa, como experiências, inclusive, que estão
abandonando estas classificações e vão indo, por exemplo, pro hipertexto, pra
computador. Seria interessante fazer, quer dizer, de vez em quando aparecem
coisas... A gente sabe que há todo um movimento nas periferias de jovens que
escreve músicas, escrevem poesia falando de sua própria experiência. Mas a
gente sabe muito pouco disso, porque talvez faltasse iniciativa... Mas acho
viável, factível, ler ou discutir o que se faz hoje. Há um suplemento literário
de Curitiba, chamado Rascunho...
EC –
Conhecemos...
HANSEN – Com vários críticos jovens, que estão
tentando fazer isso, discutir a produção contemporânea...
EC –
É!
HANSEN – Eu conheci ali uns rapazes... O Rodrigo, o
Bressane, e que são moços inteligentíssimos, brilhantes e que tão fazendo
coisas muito legais... A gente precisaria de mais iniciativas..., Inclusive
discutir se é na Universidade mesmo que isso deve ser feito, ou se às vezes a
inteligência não está fora da Universidade... (Risos)
EC –
Já que você tocou no Rascunho, que tem o Nelson de Oliveira lá
escrevendo também; tem (tinha) um poeta "atual" com vários livros
editados, o Carpinejar, inclusive uma antologia pela Companhia das Letras...
Como você vê, se é que você acompanha, essa nova geração?
HANSEN – Eu não acompanho muito não. Eu tenho lido
coisas esparsas, dadas à própria natureza do meu trabalho. Como eu tô fazendo
trabalhos ligados lá ao passado, sécs XVI, XVII e XVIII, geralmente, estes
objetos ocupam todo o tempo e meu campo... Eu tenho tentado ler algumas coisas,
e tenho tentado ler sem pré-juízo. Porque acontece muito também que esta
produção nova, às vezes ela é lida por meio de critérios com que a gente lia os
textos modernistas, modernos, de grande invenção. E às vezes, como esta
literatura nova não tem estes critérios, muita vez a crítica é negativa, e
aplica a ela critérios de exclusão ou de desqualificação, dizendo que não tem,
por exemplo, a qualidade de X, Y ou Z. Agora, o problema que a gente tem é de
discutir esta literatura segundo os próprios condicionamentos materiais,
sociais dela, segundo as próprias regras que ela propõe para ela mesma ser lida
hoje. E nesse sentido a gente não tem muito distanciamento e, às vezes, temos
muito a interferência das categorias críticas anteriores, que dão conta de um
João Cabral, ou dão conta de um Marques Rebelo, de um Cyro dos Anjos, até mais
longe, de uma Clarice Lispector, mas que não dão conta, por exemplo, de um
conto do Bressane, percebe? Neste sentido, acho que você tem aí uma questão
teórica, uma questão crítica, que é também uma questão artística e uma questão política.
Quem fala? De onde fala? Como fala? Quais são os condicionamentos, o que está
em jogo? Agora, como é um campo disperso, a própria dispersão produz uma
dificuldade quase que apriorística. O que é que eu vou ler e como é que eu vou
juntar... Você fala ‘Geração 90’, será que é mesmo uma geração 90? Será que
justamente eles não estão estourando a própria idéia de classificação por
década, ou de classificação por estilo. Porque parece que é uma variedade muito
grande de experiências... Você tem desde a experiência que vai recuperar a
poesia concreta, à experiência de gente que está revendo Ezra Pound, os
provençais, tá no computador fazendo holograma, gente que está fazendo uma
prosa realista, naturalista, bruta, falando da favela; ou gente que está fazendo
experiências metafísicas, percebe? Então é difícil... pra mim é difícil.
EC –
Talvez esta seja a característica do que nós chamamos pós-moderno...?
HANSEN – Eu acho que sim. É uma espécie de
característica desse liquidificador que é o mundo contemporâneo.
Fundamentalmente, acho que é uma des-hierarquização do valor, a gente não tem
mais categorias nítidas e precisas pra dizer isso presta, isso não presta.
Porque o próprio conceito de arte e o próprio conceito de literatura faz tempo
que foi pro espaço. A gente não sabe muito bem. Temos uma concepção
tradicional, que vem lá dos gregos, que opõe, o texto é literário quando ele é
de ficção. E a gente opõe a idéia de que existem discursos que falam do real
que não são fictícios. É possível ler um texto literário como se ele fosse um
texto pragmático, um texto que se refere diretamente à realidade, não como
ficção. É possível ler uma instrução de uso de aspirador de pó como se fosse
fictício. Os alemães lá de Constanza, principalmente, o Stiller, eles propuseram
que a questão da discussão da literatura hoje implicaria termos que discutir o
que é o ato de fingir? Não a idéia da ficção já dada como uma evidência, ficção
oposta ao real, mas a idéia de que um texto é literário quando ele pode ser
lido como um texto que representa um ato de fingir. E como os atos de
fingimento variam historicamente, e segundo eles, são muito particulares,
teríamos que definir também em que situação algo pode ser lido como literatura.
Você pensar que hoje os meio de comunicação produzem a realidade o tempo todo.
Você imagina, por exemplo, quando o avião se choca lá nas torres em
nova-iorque, é um acontecimento real, mas a reprodução daquela imagem na
televisão americana incansavelmente, passaram durante dois ou três dias, a cada
segundo passavam, chega um momento que aquilo torna-se ficção, mas que produz
um efeito de realidade e que você não sabe mais qual é o evento real. Se é o
primeiro momento que bateu o avião, ou ele continua batendo sempre, percebe? O
que produz, evidentemente, do ponto de vista norte-americano, é para produzir
uma paranóia que garante o controle do Bush e aí a política guerreira dele. A
coisa também é política. Você teria que ter critérios aí muito teóricos pra
gente discutir. O que é o estado da realidade contemporânea? A gente não sabe
muito bem o que é...
EC –
Mas, o poeta pra fazer um trabalho relevante hoje, ele contestaria o que está
aí, ou ele faz uma viagem interna...?
HANSEN – Não sei. Não sei o que ele teria que fazer...
Quer dizer, ele tem todo um peso de uma gigantesca tradição atrás dele...
EC –
... Que ele tem que dialogar...?
HANSEN – Aqui no Brasil, por exemplo, um poeta ele
tem que pensar que já houve João Cabral, Drummond, Bandeira, Murilo Mendes,
Mario de Andrade, Oswald de Andrade, posso estar esquecendo alguém
importante... Tem que pensar também que houve uma gigantesca redução da poesia,
uma síntese, feita pelo Concretismo. Ele também não pode ser um poeta inculto,
tem que saber o que a crítica literária propôs, discutiu. Tem que ser muito
informado historicamente, ele não pode ser ingênuo. Essa é a primeira coisa,
agora, o que ele vai fazer, isso a gente tem que discutir a partir efetivamente
do poema concreto que ele irá realizar... Do poema concreto não...(Risos)...Do
poema particular, porque muitos ainda estão fazendo poesia concreta. Tenho a
impressão que você teria que discutir de novo os condicionamentos da prática. E
que são sociais. O que condiciona a prática desse poeta? O que ele põe em cena
quando ele escreve? Que material social ele transforma? E que sentido ele dá a
forma que ele produz? Aí você já tem alguns elementos pra se começar a
discutir. Agora, evidentemente, a gente também faz parte desta tradição e
quando você lê um poeta hoje, você tem na cabeça um Drummond, Mallarmé, uma
tradição longuíssima, você tem Virgílio e Homero na cabeça. Então quando você
vai ler, você fala: o que esse cara ta propondo? A gente tem muito uma idéia
modernista, moderna, de que a poesia deveria ser o novo, a cada momento o novo.
Num mundo administrado como o nosso e que vive um presente contínuo da troca, a
gente deveria perguntar se existe condição de aparecer o novo. Ou se a própria
idéia de novo não é a reposição contínua da própria estrutura de troca
mercantil que a gente vive. Se o novo já não ta controlado previamente pela
estrutura do capital. Agora você vai perceber que muitos artistas vão ficar uma
espécie de técnicos numa pequena técnica. Por exemplo, nas artes plásticas, que
acabou a pintura, e só tem essas bobagens destas instalações – você entra numa
sala escura com uma televisão ligada, tem um fio de vara de pescar que te bate
no rosto e um ruído – e isto é arte, quer dizer, uma indefinição total e que
chateou... (silêncio)... Muitos artistas cansados disso estão voltando a uma pequena
técnica, estão fazendo de novo, xilogravura, estão retomando pincel, estão
propondo a serigrafia, tão fazendo...
EC -...Sonetos.
HANSEN – É, sonetos... Até sonetos...
EC – o Glauco Mattoso...
HANSEN – O Glauco faz, né? Mas o Glauco é satírico,
paródico, e o Glauco tem um humor magnífico, né? Então ele faz com um sentido
muito divertido, a geléia de barroco, aquelas coisas dele... O Glauco é
divertido e é bom o que ele faz, eu acho muito bom... Ele é muito agudo e
irreverente. Acho que o poeta precisa ser irreverente hoje, senão ele fica
esmagado com o peso da tradição, o nome do pai...
EC –
E o Manoel de Barros, o que acha?
HANSEN – Eu acho singular, interessante, uma coisa assim
que vem, pequena, uma espécie de...
EC –
Ínfimo...
HANSEN -... De experiência do ínfimo, de experiência
do micro e que faz valer uma experiência de vida muito intensa dele, com a
planta, o bicho, a terra. Ele é uma voz autônoma, quer dizer, é um poeta culto,
mas você não precisa dizer: ah, isso me lembra Drummond. Não, você pode dizer:
isso me lembra Manoel de Barros.
EC –
É. Ele tem uma voz própria.
HANSEN – Ele tem uma voz própria.
EC – E isso é raro. Talvez seja esse o desafio...
HANSEN – Isso é muito raro. Talvez, como dizia o
Mário de Andrade, o poeta brasileiro publica muito cedo, né? Devia ser... Não
deve ser proibido adolescente fazer poesia, de modo algum, deve até ser
incentivado, mas ele devia ser proibido de publicar. Ele devia fazer o teste do
Horácio, quer dizer, guardar na gaveta nove anos, e daí quando reler, se não
causar vergonha, presta. (risos) Entende? É que eles são muito açodados, muito
afoitos. É que também tem uma ideologia aqui...
EC –
Também porque é rápida... Edite...
HANSEN – Sim. E tem esta ideologia também da
comunicação a toda força, e até de um certo narcisismo, do prestígio: eu quero
ser reconhecido como poeta, né? O que é uma bobagem. O Guimarães Rosa que
dizia, quando o Guteloris perguntou pra ele: o que você acha de ser o gênio da
Literatura Brasileira. Ele falou, gênio? Não. Trabalho. Trabalho. Trabalho.
Trabalho. E mais Trabalho. Ele repete cinco vezes. E Rosa fala isso com
autoridade, né? Percebe? Eu penso assim. Tô brincando um pouco é evidente, mas
eu penso assim...
EC – E a poesia serve pra quê?
HANSEN – Pra nada! (risos) Poesia é totalmente inútil.
Mas, justamente num mundo utilitarista como o nosso, burguês, essa inutilidade
dela é que vale. Ela tem a virtude do inútil, percebe? Isso que é legal.
EC –
Um inutensílio...
HANSEN – É. Ela é um inutensílio, neste sentido. Não
serve pra nada, mas é justamente esse nada que é fundamental. Porque ele pode
ser contraposto ao mundo regido pelo dinheiro, como o nosso, em que tudo, mas
tudo mesmo, é pensado como valor de troca. A poesia é uma das últimas coisas em
que o valor de troca não apita. Embora a gente saiba, também, que ela é um
presunto. Como dizia o João Cabral, ela é fezes, ela é um resto. Mas acho que não
serve pra nada...
EC – Em suas aulas, pelo seu jeito de expor seus
pensamentos, sua ironia... Fico pensando que para quem tem 18, 19 anos parece
que você puxa o tapete e não apresenta nada no fim do túnel...
HANSEN – Sim. Ótimo, né? É isso, eu não sou padre. Você
concorda? Eu acho imoral também, você fornecer pras pessoas receitas de vida.
Eu não posso dizer pras pessoas, vocês devem fazer isso. Os intelectuais
brasileiros tentaram por muito tempo, esta idéia de que eles iam organizar a
massa, fornecer consciência pra massa. Isso eu acho que não é possível. Já
basta isso, puxar o tapete. Se a gente, efetivamente, puxa. Porque a gente
também não passa de um professor, que fala umas coisas, que às vezes são
ouvidas, às vezes não...
EC –
Às vezes são gravadas...
HANSEN – Mas eu não tenho nenhuma pretensão de melhorar
ninguém. Também não de piorar, mas não tenho pretensão, não. Acredito que as
boas intenções são punidas; necessariamente punidas. Eu acredito muito
fortemente nisso. É uma ocasião de um jogo, mas de um jogo sério e você tem que
ser honesto com os alunos, você tem que expor aquilo que há sobre aquela
questão que está debatendo, ao mesmo tempo não fazer a brincadeira de ser um
avestruz. Porque acreditar que este é o melhor dos mundos possíveis... Ele não
é.
EC – Mas você tem esperança?
HANSEN – Não sei. Eu não sei... Já estou velho... Sim, mas
você sempre tem alguma esperança. Basta pensar que eu continuo vivo, eu não me
matei. Eu sempre espero, o melhor. Mas aqueles objetos de esperança que eu
tinha, de quando era moço, eles se tornaram historicamente inviáveis. Não
existem mais... Eu não sei. Sim... A gente tem que ter esperança tem que
afirmar a esperança mesmo quando não há razão nenhuma pra ter. Agora, o mundo
de hoje é muito ruim, como sempre foi, mas ele é... Basta você abrir um jornal,
ligar a televisão, estar vivendo pra perceber que ele é terrível... É terrível.
E que tudo que há parece que desmente qualquer hipótese de esperança, mas
apesar de tudo há movimento. Eu acredito que as coisas mudem. E a gente tem que
mudar, e tem que viver prum mundo onde as coisas mudem. Isso já oferece... Um
princípio. Talvez eu não tenha nenhum fundamento pra justificar isso que estou
dizendo. Bom... Acho que é isso.
EC – Se você tivesse que indicar cinco obras, ou
autores, pra quem estiver começando na Literatura, quais vocês indicaria?
HANSEN – Eu proporia que lesse a Bíblia. Eu proporia
que lesse Homero. Na medida em que essas duas grandes tradições, como Auerbach
mostrava, elas dão origem a toda a Literatura do ocidente. O poeta Auden também
falava isso. Dizia que, se um dia ele desse um curso, ele faria os alunos
durante dois anos ler a Bíblia e Homero. Porque na hipótese dele, tudo que vem
depois retoma estes dois grandes textos. Feito isso, você teria que discutir se
você vai ler a Literatura de sua língua, ou se você vai ler Literatura que
fosse, assim, universal. Eu leria Shakespeare, que tem uma visão muito nítida
do homem. Uma visão desencantada, crítica, dura. Eu leria também Kafka. Eu acho
que Kafka vê o mundo moderno, o mundo contemporâneo. Leria também um autor
nosso. Ficaria em dúvida entre o Machado de Assis e o Guimarães Rosas. Estou
pensando em prosadores. Evidentemente na poesia, é difícil, porque você tem
poetas assim, monstruosos. Um Drummond é toda uma Literatura. Eliot é um grande
poeta também. Os italianos: Salvatore Quasímodo, Montale, Ungaretti. Você teria
que eleger uma tradição poética. Tem várias tradições, né? Talvez, a gente
fosse buscar aquele texto que nos fala mais diretamente a experiência de vida
porque sintetiza todo o mundo dele, o tempo dele. Você vê, eu podia ter falado
do Cervantes, do ‘Quixote’, mas eu pensava na idéia de uma formação do leitor:
A Bíblia, o Homero, Shakespeare, como uma síntese de tudo que é antigo e depois
eu pulava pro Kafka e leria algum grande poeta moderno. E aí eu tenho dúvida
entre o Drummond, Eliot...
EC –
Baudelaire?
HANSEN – Não, eu não diria Baudelaire. Eu leria
Baudelaire, como um poeta que é um sismógrafo, uma espécie de indicador da
modernidade chegando. É um grande poeta, mas eu acho que não leria Baudelaire,
eu proporia poetas ainda mais amplos, eu proporia Drummond, por exemplo. Se eu
tivesse que levar pruma ilha, eu levaria os dois, mas se tivesse que escolher
seria difícil, mas eu levaria Drummond. São só opiniões...
EC –
Hoje praticamente você tem quase tudo disponível na internet...
HANSEN – Tem tudo... Agora, quem lê? Esta que é a questão.
(Risos) Quem é o superolho..., Porque precisa ter o olho de um Deus pra poder
ler toda essa informação. A gente talvez devesse ser mais lento... A gente ta
numa sociedade da velocidade, a gente devia... Ralentando, desacelerar um
pouco.
OB –
Então a crítica literária está fadada ao fracasso?
HANSEN – Em que sentido?
OB –
Por não conseguir...
HANSEN – Sim. A crítica não existe mais... Como
instituição. Você tem o resenhador, o marqueteiro tipo Folha de São Paulo...
Você não acha? Você não tem mais a instituição crítica... No Brasil. Um Wilson
Martins, um Álvaro Lins, Antonio Candido, que escreviam profissionalmente no
jornal. Ou trabalhava na Universidade... Não tem isso mais.
EC –
Interessante falar isso passando por estes corredores cheios de história...
(Caminhávamos pelos corredores onde ficam as salas dos professores. Antigamente
chamavam-se gabinetes e ainda se pode ver o nome de alguns espécimes já
extintos, e outros em vias de pregados nas portas: Alfredo Bosi; Massaud
Moises; Davi Arrigucci Júnior; Ina Camargo Costa; Ligia Chiappini Moraes Leite;
Regina Lucia Pontieri; Ariovaldo Jose Vidal; Marcus Vinicius Mazzari; Antonio
Dimas; Jose Antonio Pasta; Alcides Villaça; Luiz Roncari; José Miguel Wisnik;
Augusto Massi; João Adolfo Hansen; Roberto Zular, Jorge M. B. de Almeida).
HANSEN – Pois é!
João Adolfo Hansen (Cosmópolis, 1942) é professor de Literatura
Brasileira na Universidade de São Paulo-USP. Pesquisador na área de literatura,
crítico literário, ensaísta e historiador, Hansen é o nome mais importante
dentre os estudiosos de Letras Coloniais e certamente um dos mais importantes
críticos literários do Brasil ainda em atividade na universidade (2009).
Recebeu o Prêmio Jabuti, na categoria Estudos Literários, pelo livro A
Sátira e o Engenho. Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII.