23 fevereiro 2010
22 fevereiro 2010
09 fevereiro 2010
Rosácea de Proust
Na língua e no pensamento gregos havia duas formas de se encarar e vivenciar o tempo. O que eles chamavam de Chronos, gerou a palavra cronológico, e carregava o sentido de passagem do tempo, sequencial e quantitativo. O outro termo era Kairos, o tempo qualitativo, aquele que não pode ser medido e que nos faz sentir um século passar em um instante.
Qualquer narrativa, em qualquer arte, tem que trabalhar com a questão do tempo e, no limite, criar o seu próprio tempo. Há aquelas que primam pelo uso essencial do tempo, como a música, o cinema, os quadrinhos e a literatura.
Um romance, por exemplo, construído de forma linear, com começo, meio e fim e os fatos e peripécias desenvolvendo-se um após outro, flerta com Chronos em sua tessitura. Mas há aqueles que instauram Kairos em seu tecido ficcional e na fruição que nos possibilitam.
O escritor francês, Marcel Proust, foi um mestre do tempo na perspectiva revelada pelo conceito grego de Kairos. É o escritor que, talvez, melhor tenha conseguido retratar a passagem do tempo vivido e rememorado no romance moderno.
Sua monumental obra, Em Busca do tempo Perdido, foi elaborada em sete romances que se entrelaçam, formando um todo harmônico e musical feito uma sinfonia. A metáfora da música é mais do que adequada quando falamos em tecer o tempo com o grau de refinamento e destreza que Proust realizou.
A sinfonia de Proust foi composta em sete movimentos: No Caminho de Swann, A Sombra das Raparigas em Flor, O Caminho de Guermantes, Sodoma e Gomorra, A Prisioneira; A Fugitiva e O Tempo Redescoberto.
Ficamos sabendo, lendo suas anotações, que o último capítulo de O Tempo Redescoberto foi escrito imediatamente após o primeiro capítulo de No Caminho de Swann o que, por si só, demonstra que o romance não foi concebido linearmente, pois a matéria central entre os dois foi escrita depois.
Proust buscou representar por intermédio do narrador, indiferente à cronologia e à organização lógica, as suas próprias questões existenciais. O narrador, que é o personagem principal, coloca o problema de uma vocação que se debate até tomar consciência de si mesma no último livro do romance.
Mas a forma como ele fez isso é que ainda faz toda a diferença. E sabemos que em arte a forma conta mais do que o conteúdo. Em Proust a narrativa é vivenciada no presente e o tempo que nos mostra não é apenas retrospectivo (foi um dos primeiros a usar a técnica de flashbacks na literatura), mas também prospectivo.
O tempo em Proust está ligado, intimamente, com a memória e, mais especificamente, com a memória involuntária, que é o afloramento à consciência de determinada lembrança a partir de uma sensação análoga à outra experimentada anteriormente.
Por exemplo, quando o narrador ouve uma sonata, no momento em que sua amada já o desprezava, sente voltar o tempo em que era amado por ela. Não só o tempo, mas as sensações prazerosas daqueles instantes já perdidos.
Ou quando saboreia uma madeleine (um biscoito fino) molhada no chá e sente uma profunda alegria ao relembrar da cidadezinha onde passava férias e de toda a infância, da atmosfera de todo o período de seu passado aflorado na consciência, neste exato instante, pelo gosto do biscoito em sua boca.
A questão do tempo, então, não é apenas uma questão de se estabelecer a proporção entre a importância do evento e o tempo destinado ao seu tratamento. No romance, a duração percebida está relacionada à sintaxe. Os voos estilísticos e as digressões retardam, por exemplo, o fluxo da narrativa. E neste aspecto, o romance de Proust é um verdadeiro marco narrativo. Proust cria e recria o tempo com maestria, gerando um ritmo extremamente lento, que parece dissolver a ação.
Sua narrativa envolve uma temporalidade tríplice: o tempo da história, o tempo do discurso e o tempo de produção do discurso.
O tempo da história pode abranger uma vida toda. O tempo do discurso compreende o tempo necessário para se ler o romance. O tempo de produção do discurso é como esta história é contada no tempo, ou seja, esta vida toda pode ser contada em um dia, ou toda a infância aflorando a partir de um sabor rememorado.
O tempo buscado por Proust é aquele que não existe mais em nós, mas que continua a viver oculto em um sabor, uma fragrância, uma imagem, as torres de uma igreja. Tempo recuperado pelo conteúdo que emerge à consciência.
Muito se falou da relação da obra de Proust com as ideias e reflexões do filósofo Henri Bergson. Não se pode negar em Proust, a influência bergsoniana na apreensão do tempo como “duração” fora do encadeamento sucessivo dos fatos. Mas, não seria totalmente verdadeiro conceituar o romance proustiniano como uma adequação literária da filosofia de Henri Bergson, como muitos o fazem.
Ele conheceu a filosofia de Bergson mais tarde do que se imagina e negou categoricamente em entrevista a existência de uma relação direta entre a sua obra e as teorias do filósofo.
Mesmo no quesito memória, o denominador comum entre Bergson e Proust está na crítica de ambos às limitações da memória ligada à inteligência. Bergson considera que a totalidade do passado é conservada, desde o despertar da consciência. Para Proust, a memória aparece como um abismo, de onde só um pequeno número de lembranças é resgatado. Mas a julgar pelo caudal de sua obra, o que para ele é pequeno, em nós é quase afogamento.
Há quem identifique no estilo de escrita de Proust, cheio de idas e vindas, com avanços e recuos alternados e simétricos, frases e períodos longuíssimos, uma correspondência aos impulsos de uma respiração que luta para vencer a falta de ar, pelo fato dele ter sido asmático desde criança. Até já nomearam esse estilo de “rosácea de Proust”.
O fato é que, depois de Proust, a importância do enredo e as narrativas tradicionais com começo, meio e fim, foram abaladas irremediavelmente. O tempo é o senhor de tudo. Tambor de todos os ritmos. E ele aguarda que todos possam usufruir do biscoito fino, a madeleine, que Proust nos ofertou.
[Texto escrito e reelaborado com outro título para a edição nº 3 da baiana Revista Lícia]
24 janeiro 2010
Um disco raro: Clube da Esquina 2
Nesse disco duplo, produção muito difícil de ser repetida nos dias bicudos do mercado fonográfico atual, um verdadeiro rosário de belas e marcantes canções, parcerias cristalizadas, novos talentos e grandes nomes da MPB se fizeram presentes — Chico Buarque de Hollanda, Elis Regina e Gonzaguinha, entre outros. Como esquecer de “Nascente” — uma das músicas mais tocadas do disco —, parceria de Flávio Venturini e Murilo Antunes, uma pequena pérola da música popular brasileira de todos os tempos? E o que falar da música “Cancion por la unidad de Latino América”, composição de Pablo Milanês adaptada por Chico, cantada por Milton e o próprio Chico Buarque no disco?
Vivíamos no país um momento de esperança pelo que ficou conhecido de “distensão lenta e gradual” de um regime que havia paralisado a todos e a tudo. Era o momento de, por um lado, fazer um balanço das vivências e ganhos até então e, por outro, abrir-se a novos caminhos que exigiam serem percorridos.
Milton chamou seus dois principais letristas, Fernando Brant e Márcio Borges, e os instruiu a contabilizar em cima de uma mesma melodia tudo o que eles haviam vivenciado desde o Clube da Esquina inaugural. O resultado é a música, com duas letras, “O que foi feito devera/O que foi feito de Vera”. O que havia sido feito de nós? O que havia sido feito do Brasil? O que havia sido feito de nossos sonhos de meninos? De certa forma o disco todo é uma resposta abrangente para essas perguntas. Uma resposta que apontava para a certeza de que “outros outubros virão, outras manhãs plenas de sol e de luz”.
[Texto para edição especial do site do Museu Clube da Esquina. Confira fotos e depoimentos sobre o disco em http://www.museudapessoa.net/clube/expo_clube2/]
19 janeiro 2010
Os caminhos da poesia contemporânea brasileira: dificuldades e acertos
Diante da incrível quantidade de poetas que surgem a cada dia, com seus modos particulares de escrita, cada vez mais elaboradas e conscientes; da efervescência de grupos e coletivos literários espalhados pelo país; da feliz facilidade hoje em se veicular uma publicação, seja por meio eletrônico, seja por meio impresso; da liberdade de poder ser o seu próprio agente literário; e do número crescente de editoras que se voltam a esse que é o mais frágil dos itens de mercado, eis que se revelam outros desafios – antes ocultos ou adormecidos – para os quais não nos preparamos adequadamente. O momento do pós-orgia preconizado por Baudrillard e adiado pelos nefelibatos do pós-real – o pós-tudo glorificado ou criticado em seus extremos por meio milhão de especuladores –, descamba então na exigência de novos caminhos – ou bem mais que isso, de se enxergar passagens ao largo de todas as rotas. O que nos move não é mais a poesia para todos, isso parece ter se cumprido de maneira adequada: todos fazem poesia. O problema agora é compreender porque ninguém lê poesia. Atribuir o problema à qualidade das escolas, à insuficiência das políticas de leitura ou às tendências mercadológicas não contempla à questão, uma vez que independente disso tudo, nunca esteve se fazendo tanta poesia. Talvez não haja uma resposta, mas não porque faltem explicações ou quem a queira responder, mas simplesmente porque ainda não foi formulada a pergunta adequada.
O projeto hegemônico lançou no mundo uma maneira eficaz, mas não necessariamente correta ou durável, de propor uma pergunta válida. A solução que ele dá para tanto excesso, cava um abismo ainda mais profundo, pois, se nos encontramos em um tal buraco, ele é a pá com a qual o cavamos. É na fundação excessiva de disciplinas e especializações que nos perdemos tentando encontrar a nós mesmos. Os estudos culturais, por exemplo, dão conta das diferenças simplesmente assimilando-as ao projeto dominante. Neles, os valores antigos são transferidos para ambientes periféricos, travestindo o mesmo e o de sempre com uma aura de marginalidade, inovação e rebeldia. É sabido que somente a descentralização não é suficiente para tocar o excêntrico. Em oposição à isso, encontramos os conservadores a la Harold Bloom, que ficam montando peças vitorianas sobre grandes teatros em ruínas. De um modo ou de outro, em um mundo que parece ter só se esmerado no aparo das arestas, a tática mais eficaz para a contemplação das diferenças tem sido a de torná-las sistematicamente identitárias. Com isso a contemporaneidade acaba sendo uma potência que gera energia em direções opostas: o mesmo que prepara para uma sindicância de reivindicações nos joga cada vez mais num processo maquinal.
A verdade, é que temos visto um uso leviano dos conceitos de “identidade” e “diferença” – ora se defendendo um, ora outro, de acordo com as conveniências –, sem que se leve em conta o mais relevante e o que de fato sempre moveu os pensadores do real: a tensão entre ambos. Pois, se por um lado evidenciar as diferenças na literatura é essencial, por outro é preciso criar uma consciência comum da literatura, para que não terminemos nas microinstitucionalizações da poesia e na guetização da literatura. O nosso desafio é alcançar aquilo que nunca esteve para ser alcançado e só podemos fazê-lo pulando fora do círculo vicioso, largando a pá e correndo para além do horizonte de eventos desse buraco fundo o suficiente para nos fazer desistir antes de tentar. Poderíamos começar com novas questões. Eis algumas delas: será que todos precisam de poesia? Será que ao que chamamos poesia – essa poesia de poetas e a maneira que ela se desenvolveu no século xx –, não se esconde a farsa de um protomercado que nem ao menos chegou a ser formulado? Será que o poético pode ser vendido? Será que ele é exclusividade dos grupos ou instituições que se formaram em sua defesa? Será que ele pode passivamente ser adequado e subclassificado em uma forma manifesta como a do poema, por exemplo?
Sim, o poema é um dos ritos da poesia, mas não o único, nunca o foi. Mesmo as formas mais ordinárias de projeção no real resguardam o poético – isso sempre se soube, mesmo depois de adormecida tal consciência – e, portanto, o poético pertence a todos, leia-se poemas ou não. O que se precisa é saber desvendar o poético nessas formas ordinárias – até certo ponto isto esteve na mão do cantor e a verdade nua e crua é que não está mais: não se precisa mais de poetas, ou pelo menos, não como supomos. E, talvez, a grande resposta à charada seja bem simples: é que todos – fazedores de poemas ou não – desejam ser, de alguma forma e mais do que nunca, seu próprio poeta, como fuga ao desencanto que se abate em todas as instâncias da realidade institucionalizante. Talvez (e isso é sempre um talvez) o poema não esteja mais cumprindo o seu papel de levar a poesia ao leitor, de fazê-los identificar no ordinário o que os poetas também enxergam. Mas tudo isso é menos triste para a poesia que para o poeta. Todo término e desesperança resguarda a possibilidade de um novo começo, ainda que seja para outros que não nós. Para isso é preciso que seus agentes sejam substituídos ou se movam segundos novos ethos.
Para recuperar esta força geratriz e propor novos começos, o poeta deverá enfrentar seus próprios medos e frases feitas. Ele não pode mais ser nem o cantor e nem o excluído. Seu poema não é mais uma edificação, mas uma picareta. Ele deve erguer-se na direção oposta da grande máquina de polarizações. Para além do pós-orgia, chegamos ao pós-chernobyl, e o poeta já não deveria se preocupar com posicionamentos diante de blocos ideologizantes. O que se espera dele é um movimento que vá contra aquilo que ele sempre acreditou: a centralização em si mesmo – visto que o grande mal hoje é o excesso cada vez maior das individualizações –, em direção ao rompimento de todo e qualquer obstáculo de acesso aos topos.
Se todas as ciências são ciências do espaço, a poesia, fundação do espaço, deve ser a cons-ciência de seus acessos – e para isso o poeta deve pertencer a um fluxo ininterrupto de trânsito entre os topos, sem restrições impostas uns pelos outros. Falamos sempre de topos ontológicos, de uma geografia mais profunda que aquela calculada entre regiões politicamente delimitadas; uma biotecnologia da alma que se revela em estados de ser no mundo; todos autênticos e que devem ser respeitados e contemplados em suas diferenças. E é fato que até agora nós, poetas, perdemos muito tempo com questões menores, bloqueando os caminhos, emperrando o movimento e mantendo a poesia distante de sua urgência. Diante da escassez dos meios, nos preocupamos com a ocupação dos topos para dali dominar e excluir, criando mecanismos de defesa uns contra os outros e emperrando o movimento para uma realização poética plena. Há poetas, por exemplo, que fingem ignorar outros, enquanto elegem seus amigos para as resenhas e antologias e isso inibe o surgimento do novo, do surpreendente, da diferença; pior: dá margem a criação de gerações de poetas cínicos. Todos somos excluídos em alguma escala e não podemos – enquanto poetas – compactuar com qualquer forma de exclusão, seja por meio da institucionalização, do controle dos canais ou da reserva dos meios. Sim, somos, por natureza, diferentes! Sim, essa é a nossa maior identidade – a única permanência. A tensão entre fixos e fluxos do levantamento de nossa topologia, os erros ou acertos no título desta mesa, revelam-se aí.
O desafio para o poeta é ainda maior, é a democratização do trânsito entre os topos, a movimentação entre estados, em prol de uma topopoiésis, i.e.: a restituição da poética ao espaço. Em nossa topopoiésis, as diferenças não são excludentes e as identidades não são niveladoras. As diversas realidades são concomitantes, realidades opostas e contraditórias coabitam, consubstanciam e determinam o real, não por eliminação ou assimilação, mas em suas diferenças radicais. O fluxo de passagem de um topos a outro, pressupõe sempre a própria dimensão do outro. O outro é uma dimensão a mais em nosso sistema sensorial. Por isso ser poeta será, entre outras coisas, calar-se em meio ao falatório, ter o dom do silêncio diante do outro (poeta ou leitor); ser a recolha em meio ao excesso.
Só nesse estada utópico (οὐ+τόπος, sem lugar), se faz o vislumbre do trânsito entre todos os topos, rompendo as fronteiras em direção a uma entropia. As diferenças só se mostram importantes quando confrontadas. Isoladas ou em identificação dialética, elas se anulam. Por exemplo, a potência geradora subsistente aos encontros propiciados nessa mesa e os frutos que dela podem surgir é mais importante que a diferença entre cada um de seus componentes isoladamente. Essas diferenças são sim relevantes quando confrontadas umas com as outras, possibilitando tensões criadoras de novos caminhos, de outros desígnios e de maneiras plurais de ver. O debate e suas possíveis formas de lapidação do pensamento é o que fertiliza e fomenta novos mundos a serem explorados pela poesia. Esse confronto traz muito mais vantagens que a disputa vazia ou a articulação de novos redutos. É somente nesse estágio de sabedoria dos poetas que se prevê o leitor autossuficiente, aquele que pode, atravessando diversos topos, erguer não um paideuma, mas uma topologia, uma vez que ele será o coautor de todo os livros. Pois bem, é esse leitor que salvará a poesia.
[Texto lido pelo poeta Márcio-André na mesa de diálogo sobre o lançamento do livro "O que é poesia?", na Casa das Rosas]
15 janeiro 2010
Eis a questão
anterior a fala é o ritmo
anterior ao ritmo está o pulso
anterior ao pulso é a onda
anterior a onda está o movimento
anterior ao movimento é a mudança
anterior a mudança está o ato
anterior ao ato é a potência
anterior a potência está o desejo
anterior ao desejo é o humano
anterior ao humano está o ser
anterior ao ser é a existência
anterior a existência está a possibilidade
anterior a possibilidade é o impossível
anterior ao impossível está a arte
anterior a arte é a barbárie.
05 janeiro 2010
Reynaldo Bessa à queima-roupa
1) O que é poesia para você?
Prefiro começar citando um poeta brasileiro, Moacir Amâncio: “Ao tentar dizer, desdigo o não dito” Agora vamos lá. Já me sinto pisando o cadafalso: Poesia é o hino de uma nação inexistente. O buraco da fechadura que dá pra outro buraco de outra fechadura que dá pra outro buraco e outros tantos buracos. Poesia é o que paira entre o que foi captado (por um grande poeta, obviamente!) e o que vai ser escrito: Um vacilo, e já era o que ia ser dito. É como um tiro que parte de uma esquina deserta, bem no meio do peito. É como uma beldade caminhando solitária ao longe, dentro da escuridão e exalando um bom perfume que vez ou outra nos chega trazido pelo vento, mas é certo que nunca conheceremos essa beldade. A poesia nunca nasceu e, portanto nunca morre. Não dê ouvidos aos vaticinadores. Poesia é como o fígado de Prometeu. Poesia não é a Fênix, mas sim as cinzas de si mesma. Um homem se atira do décimo quinto andar: O que está entre o salto e o impacto é poesia. É o que oscila entre o que você foi, é e será. Mas esqueça tudo o que eu acabei de dizer. Poesia é. Apenas deixemo-la na varanda do infinito, esparramada em sua espreguiçadeira.
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Que só há uma única oportunidade de se escrever a própria história, portanto não a desperdice contando a história dos outros. Borges dizia que o escritor é o leitor que escreve, mas não sei se um poeta se faz lendo muito, mas se você não é verdadeiramente um poeta, no final não terá perdido nada, ou seja, terá lido muito, isso é bom. Então, leia muito, mas só o que é bom (se você está lendo esse artigo, é porque sabe separar o bom do resto, não?) depois leia tudo de novo e se possível toque algum instrumento, de preferência um alaúde, uma cítara ou uma harpa, nunca um berimbau. Por diversos ângulos, tente dizer a mesmíssima coisa, a exaustão, e no final assoe o nariz com o resultado. Nunca se sinta pronto. Um poeta pronto é um poeta morto. E pra reforçar isso tudo, cito Quintana: Um poeta satisfeito não satisfaz. Depois saia pra dar algumas voltas, fazer amor e tomar uns tragos. Divirta-se, principalmente isso.
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?
Ah! Pessoa com suas desassossegadas semeaduras. Murilo Mendes e sua precisão com o dedo em riste, Gullar, ah! Gullar e seus Poemas Sujos com as páginas coladas umas nas outras de tanta poesia. Quintana com seus “desaforismos” e puta merda, Bukowski que me alertou para a poesia sob as saias das mulheres, nos balcões de botecos ensebados, na música de Mozart ou numa briga de rua. Mas tem mais. Pound, Verlaine, Rimbaud, Baudelaire, (não há como fugir desses. Tente?) Manoel imprescindível de Barros, Cacaso, Drummond. E ai tem uma geração de malucos geniais que leio e que depois, maravilhado vou tomar umas brejas com eles e falar sobre seus livros: Ademir Assunção, Carpinejar, Chacal, Edson Cruz, Frederico Barbosa, Nicolas Behr, Wilmar Silva, Ricardo Aleixo, Ricardo Corona, Ricardo Silvestrin, Victor Paes, Marcio-André, mas tem a prosa também: Reinaldo Moraes, Fante (“1933...foi um ano ruim” é meu predileto) , Kerouac, Henry Miller, Bukowski, Mirisola, Céline, Bataille, Philip Roth...(Complexo de Portnoy é um esporro de poesia...e mais...) blá, blá, blá,
Mas acho que perdi o fio da meada. Qual foi a primeira pergunta mesmo?
Reynaldo Bessa é cantor, compositor, violonista e poeta. Nasceu em Mossoró-RN e está radicado em São Paulo há vinte anos. Já lançou cinco cds. O mais recente é “Com os dentes...” músicas suas sobre poemas de diversos autores brasileiros que vai de Alphonsus de Guimaraens à Carpinejar, passando por Leminski e Drummond. Bessa tem poemas e contos publicados em diversas revistas e suplementos literários espalhados pelo país e exterior. Em 2008 lançou seu primeiro livro “Outros Barulhos” poemas. Este entrou na lista dos livros finalistas do Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2009 e venceu o 51º Prêmio Jabuti na categoria poesia. Site: www.reynaldobessa.com.br E-mail: contato@reynaldobessa.com.br
23 dezembro 2009
De onde vem o Papai Noel
Uma vez, na França, na cidade de Dijon, em 1951, tentaram acabar com o mito do Papai Noel. As autoridades eclesiásticas acharam que o velhinho estava muito comercial. Convocaram 250 crianças para enforcá-lo em praça pública. O resultado foi, ao contrário, uma verdadeira rebelião. A população ressuscitou Noel entronizando-o no imaginário popular. O antropólogo Lévi-Strauss chegou até a escrever um ensaio sobre esse episódio. Se um dos maiores pensadores do nosso tempo se deteve a analisar isto, é sinal que a figura de Noel deve ter alguma importância.
Há duas origens do mito do Papai Noel. A mais conhecida a gente sabe: está ligada a São Nicolau, um santo de origem grega, que salvou marinheiros na tempestade, libertou moças prisioneiras e ficou famoso por ressuscitar crianças. Sua imagem de bom velhinho vem daí. A célebre obra “A lenda dourada”, que conta a vidas dos primeiros santos da igreja, dedica-lhe várias páginas.
Mas há uma outra origem dessa figura, que antecede ao cristianismo e que escapou ao próprio Lévi-Strauss. E aí o Papai Noel não é nada bonzinho. O mito do velhinho que, em pleno inverno europeu, gratifica as crianças trazendo presentes em um saco às costas é, na verdade, a forma como o imaginário cristão resolveu reformular um mito arcaico que era o avesso do Papai Noel.
Trata-se de um personagem que tinha também o nome de Nicolas. Ele vinha `a frente de uma horda de mascarados estalando seu chicote, fazendo soar os sinos dependurados em sua roupa e, assim, iam assaltando povoados e obrigando os moradores a celebrarem com eles suas orgias. Traziam consigo também sacos para o sequestro de crianças. Isto ocorria exatamente no solstício de inverno, época que a igreja, posteriormente, escolheu para fixar o nascimento de Cristo.
Há na memória, tanto dos povos nórdicos quanto dos franceses, belgas e alemães, referências à essa horda de cavaleiros perversos. Na região de Lorraine, existe a figura do Pai com Chicote que, ambiguamente, remete tanto ao bárbaro que vinha chicoteando seus cavalos, quanto ao Papai Noel que vem docemente “chicoteando” suas renas. Coincidentemente, na biografia de São Nicolau o chicote também aparece, mas de forma invertida, pois ele que é martirizado com um chicote. Na Alemanha, a figura do “Klaubauf” - um velho com um saco para recolher crianças - remete ambiguamente para a mesma lenda. E, na Inglaterra, esse vestígio da figura pré-cristã de Nicolau, aparece no nome do diabo que é chamado de “velho Nick”.
É fascinante como o imaginário acomoda nossos temores e expectativas elaborando personagens que podem ter até suas qualidade trocadas. Assim como na tradição cristã se construía igrejas com nomes de santos, onde antes havia um templo a Apolo, Minerva etc., também as lendas de outra época passaram por um tratamento ideológico.
Ainda bem que Papai Noel se transformou em algo bom. Já chega sermos vitimados o ano inteiro por uma série variada de saqueadores que não vêm de fora, mas que vivem no mesmo país que a gente.
[Crônica de Natal enviada por Affonso Romano de Sant'Anna]
22 dezembro 2009
Rubem Fonseca e o Papai Noel
Amigos,
como vocês devem saber, Rubem Fonseca mudou de editora e acaba de lançar pela Agir, O Seminarista.
A assessora de imprensa da Agir me perguntou se eu queria receber o livro para uma possível resenha no Cronópios. Sem entrar em detalhes, nem atualizá-la sobre o embróglio cronopiano, falei que gostaria de receber o livro sim.
Estou na página 99 e lá pela 76 o romance pareceu desandar. Até então estava adorando. Escrita direta, seca, sem firulas e muitas citações em latim. Sigo a leitura torcendo pra que a metade final do livro me surpreenda.
No entanto, como é véspera de Natal, o começo do livro me pareceu espetacular. Vejam só:
“Sou conhecido como o Especialista, contratado para serviços específicos. O Despachante diz quem é o freguês, me dá as coordenadas e eu faço o serviço. Antes de entrar no que interessa – Kirsten, Ziff, D.S., Sangue de Boi – eu vou contar como foram alguns dos meus serviços.
O último foi na véspera do Natal. O Despachante deu-me um endereço e disse onde encontrar o freguês, que estava dando uma festa para um monte de gente. Bastava chegar com um embrulho de papel colorido que eu entrava na casa. O Despachante era um cara magro e alto, muito branco, louro, e estava sempre de terno preto, camisa branca, gravata e óculos escuros. Ele me pagava bem.
‘O freguês está vestido de Papai Noel e tem uma berruga no rosto ao lado direito do nariz.'
Sempre odiei, desde criança, esses papais-noéis fazendo Ô! Ô! Ô! Sei que o ódio é um surto de insanidade, como disse Horácio, Ira furor brevis est, mas ninguém está livre dele. Vesti uma roupa alinhada, peguei uma caixa vazia e fiz um enorme embrulho de presente. Coloquei sob a camisa a minha Beretta com silenciador e toquei a campainha da casa do freguês.
Por sorte minha quem abriu a porta foi o Papai Noel. ‘Entra, entra’, ele disse, ‘feliz Natal!’
‘Faz Ô! Ô! Ô! pra mim’, pedi, enquanto constatava a berruga ao lado do nariz.
‘Ô! Ô! Ô!’, ele fez. Dei um tiro na sua cabeça. Sempre dou um tiro na cabeça. Com esses coletes novos à prova de bala, aquela técnica de atirar no terceiro botão da camisa para furar o coração pode não funcionar.”
Animador, não?
21 dezembro 2009
A música é a musa de todos nós
Podemos ter uma ideia do caráter de um povo, de um momento histórico e de um ser humano pela música que ele pratica e ouve. A música não só revela os sentimentos e emoções íntimas do ser humano, mas também os gera e os transforma.
Neste sentido torna-se valioso o conhecimento do material utilizado pelos músicos e compositores, mesmo que não o manipulemos como músicos; pois certamente somos mais influenciados pelas sonoridades que nos cercam do que gostaríamos de admitir.
A música pode nos levar a possibilidades de experiências jamais tentadas. Em todas as culturas antigas do mundo, a música existiu em função do ritual, do serviço a alguma divindade, da expansão da consciência e das mais profundas experiências humanas. Os ritos e cultos xamanísticos, os rituais da África ou da América do Sul, do Extremo Oriente, trabalham com um conhecimento - que podemos chamar de inconsciente - de uma força primordial, ou lei, desencadeada através de manifestações sonoras e rítmicas.
Esse conhecimento, por si só, já seria interessante para nós ocidentais ou ocidentalizados. Poderíamos, e isso só cabe a nós, não só deixar essa energia agir de forma mágica, mas também experimentá-la conscientemente, tornando-a mais presente, a nosso dispor e com isso tornando-nos seres mais perfeitos, íntegros. Em suma, mais seres humanos.
Nas civilizações da antiguidade, o som organizado inteligentemente representava a mais elevada de todas as artes, e a música, a mais importante das ciências, o caminho mais poderoso à iluminação religiosa e a base de um governo estável e harmonioso. A música vigorosamente agia sobre o caráter do homem.
Hoje, nós modernos ou pós-modernos, pós-tudo, ex-tudo (como diz Augusto de Campos), não estudamos, não mudamos, emudecemos e o pior: ficamos surdos.
quando não ouvimos
a própria voz
desafinamos.
Não consideramos mais o som audível um reflexo terreno de uma atividade vibratória, que se dá além do mundo físico, mais fundamental e mais próximo do âmago das coisas.
Inaudível ao ouvido humano, essa atividade vibratória cósmica é a origem e a base de tudo que foi e continua a ser gerado no universo.
Além da música, a expressão do discurso era considerada um reflexo no mundo da matéria dos tons cósmicos. Esses tons cósmicos eram chamados pelos egípcios de «o verbo» ou «o verbo dos deuses»; pelos gregos de «a música das esferas».
As palavras, ouvidas por este diapasão, possuem um poder encantatório imenso. Já disse Louis F. Céline que o trabalho com as palavras pode matar um homem. Se pode matá-lo pode também salvá-lo, digo. Os arranjos são infinitos, aprendamos a escolher.
No princípio, então, sempre esteve o som, o verbo, a palavra, o ritmo, o logos. Como na música, assim na vida, já ouvimos. Diga-me qual a palavra e te direi quem és.
Os poetas, a meu ver, têm a função de recuperar este poder encantatório das palavras, tão corroídas pelos clichês. A função do músico, por outro lado, é colocar ordem no caos. Os ruídos são muitos e a afinação e a harmonia (esta deusa/ artesã que cria as formas mortais) parecem ser as buscas mais adequadas para o momento histórico que vivemos, depois de termos sido estilhaçados por duas guerras mundiais, duas bombas atômicas e experiências estéticas que reverberaram o caos e a desordem.
De partes bem ajustadas assenhora-se o sábio do Todo.
Os ouvidos não têm pálpebras.
Conta-se que Villa-Lobos, quando questionado sobre como conseguia compor com tantos ruídos externos (janela aberta aos sons da urbe ensandecida), respondeu com simplicidade: «meu filho, o ouvido externo não tem nada a ver com o ouvido interno».
É nosso ouvido interno que urge ser aprimorado e utilizado para a reconstrução do mundo e de uma vida mais plena. Tarefa difícil, mas necessária. Precisaremos de cardumes de bons músicos e poetas.
18 dezembro 2009
Por onde anda o Evandro Affonso Ferreira, catrâmbias?
CATRÂMBIAS!
Diacho ando meio angurriado metade descrente metade arrufadiço totalmente afuazado apre há algo de podre no reino da dinamarca-mídia-literária em que vivemos; dois anos atrás escrevi livrinho de minicontos huifa baba-ovo daqueles louvaminhas cousalousa de todos os tipos-naipes quejandos; gostei claro; sou escritor; pobre-diabo estólido hã careço deles tapinhas nas costas; mas convenhamos dito-cujo puh muita-abelha-pouco-mel diriam amigos malandros dantanho eh-eh; oportuno dizer tertuliamente que elas vespas também fazem favos; retomando assunto digo-repito estou estupidificado com o digamos desprezo amplo-total-irrestrito deles jornalões de todos os quadrantes brasilísticos ao livro CERTEZA DO AGORA de Juliano Garcia Pessanha – autor que contraria meu (como direi?) malthusianismo literário: população-escritor e texto-consistência crescem em proporções diferentes; bangalafumenga aqui nada-neca-neres talento nenhum para costuras ensaísticas; pena; senão escreveria texto à la Carpeaux dizendo a flux: o numem de Juliano é um numem tremendum; a religião de Juliano não é a religião fácil dos bem-pensantes, a quem o seu Deus garante todas as ordens do mundo; o Deus de Juliano faz estremecer os fundamentos do céu e da terra; pena; estou anos-luz dele Otto Maria; mas Juliano Pessanha não; vejamos: Engana-se quem diz que o horror é inominável, o horror só é inominável para quem só conhece as palavras dóceis, para quem só conhece as palavras meios-termos, mas o horror é dizível na hipótese em que você foi visto por um olho-Auschwitz e você, tendo percebido que estava sendo visto-e-dito por um olho-boca-Auschwitz e você, simultaneamente, assistiu tudo isso acontecer. Com uma voz-frieza-de-objeto você pode descrever-mimetizar o que assistiu enquanto era visto e no-me-a-do como algo exterminável; li muito muito mesmo nos últimos tempos; mas não sei escrever sobre livros; Hermann Broch Gontcharov Bruno Schulz Lobo Antunes Jens Peter Jacobsen Hilda Hilst Manganelli mais tantos outros escritores que não vieram ao mundo para agradar a ortodoxia; sabiam-sabem que viver é garimpar pechisbeque hã são os áditos schopenhauerianos da vida; mas diacho nenhum deles me comoveu tanto feito ele Juliano Pessanha; nenhum deles havia sido literalmente taquicárdico; sim páginas tantas toque toque toque arre lá! Coração recauchutado pimba! Exigiu incontinenti auxílio dele Isordil; susto daqueles; finalmente entendia porque Tirésias perdeu a vista por ter olhado Atena; tarde toda quieto dentro de casa andando a furta-passo; vez em quando eh-eh olhava a revezes azabumbado CERTEZA DO AGORA fechado sobre criado-mudo me espreitando heiddegerianamente; abri não apre incor never more; dois dias depois sim enfrentei altivo livro-quase-letal dele magnífico Juliano Garcia Pessanha; huifa; texto traz nelas entrelinhas loucura simulada à la Ulisses aquele que semeava pedra em vez de trigo; texto dele transmigra verbo-presente-eclesiástico pro pretérito; nada havia de novo debaixo do Sol; texto dele Juliano deixa claro-claríssimo-da-silva que não há ensalmos que dê jeito nela insensatez humana; CERTEZA DO AGORA é comovente; é magistral; é devastador; diacho se eu soubesse escrever feito ele Carpeaux terminaria assim: uma vez Heidegger fez uma tentativa de traduzir seu pensamento citando versos de Hölderlin; ele se reconhecia no poeta; Juliano se reconhece no filósofo.
(Trecho do livro Zaratempô, editora 34, 2005, de Evandro Affonso Ferreira)
16 dezembro 2009
Caiu na rede começou
Sem dúvida nenhuma, uma das questões que o advento da internet veio problematizar e questionar, é a noção de autoria. Essa palavrinha/conceito só passou a existir de fato na literatura, se não estou enganado, a partir do século XIX. Antigamente, pelo menos na chamada Idade Média latina, tínhamos uma noção de “autoridade” que estava relacionada diretamente ao discurso, e não à figura de um indivíduo propriamente dito.
No romantismo é que se gera a idéia de um indivíduo artístico, a figura do “gênio” e a do “marginal”. Como propõe Foucault, em sua palestra para a Sociedade Francesa de Filosofia (em 1969), mereceria um estudo mais pormenorizado saber “como é que o autor se individualizou numa cultura como a nossa, que estatuto lhe foi atribuído, a partir de que momento, por exemplo, se iniciaram as pesquisas sobre a autenticidade e atribuição [de autoria], em que sistema de valorização foi o autor julgado, em que momento se começou a contar a vida dos autores de preferência à dos heróis, como é que se instaurou essa categoria fundamental da crítica que é ‘o-homem-e-a-obra’...”
Se não continuo enganado em meu raciocínio, creio que foi o próprio Foucault quem demonstrou que a noção de autoria interessava ao poder estabelecido, a igreja etc., pois com ela se podia melhor aferir as penas e culpas de determinados discursos transgressores.
E eu, nessa pequena reflexão, invisto-me da autoridade e do discurso de Foucault para valorizar a autoria de meu texto, recheado de citações, e quem sabe me livrar das penalidades cabíveis a minha inapetência intelectual, ou, o mais importante, seduzir o incauto leitor aos argumentos de “meu” discurso. Mas, mesmo assim, leitor cúmplice, assinarei meu nome no final, ou no começo como podes bem notar.
Em todo caso, anote bem o que dizia o grande Michel: “Assim que se instaurou um regime de propriedade para os textos, assim que se promulgaram regras estritas sobre os direitos de autor, sobre as relações autores-editores, sobre os direitos de reprodução, etc, – isto é, no final do século XVIII e no início do século XIX –, foi nesse momento que a possibilidade de transgressão própria do ato de escrever adquiriu progressivamente a aura de um imperativo típico da literatura. ...”
Você pode notar, prezado, que eu ainda me dou ao trabalho de colocar aspas (pois sou “intelectualmente honesto”) aos discursos que me aproprio, mesmo você, talvez, não sabendo se a ordem dos fatores, ou da fatura, apresentada poderia mudar drasticamente o produto.
Para finalizar o rosário de citações de Valery-Foucault, anote mais essa – mas me dê o crédito também, pois eu também penso assim, talvez, não com as mesmas palavras, claro – de nosso filósofo de última hora: “...os discursos ‘literários’ já não podem ser recebidos se não forem dotados da função autor: perguntar-se-á a qualquer texto de poesia ou de ficção de onde é que veio, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de que projeto. O sentido que lhe conferirmos, o estatuto ou o valor que lhe reconhecermos dependem da forma como respondermos a estas questões.”
Percebeu, mon chéri, o que isso significa? Se ainda não, então, leia rapidinho o texto de outro grande autor plagiado e diluído mundialmente, o Borges de Pierre Menard. Aquele texto fundamental onde Borges prova que o autor do Quixote não foi o fidalgo Cervantes.
Agora que já enchi bastante a lingüiça desta página em branco, devo dizer que esse palavrório todo é para sugerir a leitura do livro Caiu na rede acabou, de Cora Ronai. O livro já é antigo (aos padrões velozes dos novos tempos), mas o tema atualíssimo.
Ela tenta entender e analisar a inocência, ou a cara-de-pau de muitos que repassam textos, na internet, como se fossem seus, ou de autores consagrados, omitindo, ou rasurando, a autoria real do texto.
Dê uma conferida aqui.
11 dezembro 2009
Poetas à queima-roupa
Ainda que todas as artes tenham a sua especificidade e complexidade, os escritores — e, particularmente, os poetas — acreditam que a sua seja a mais complexa e inescrutável de todas. Bafejados pelas musas, os escritores são os seres mais suscetíveis do planeta. E os poetas, minha turma preferida, são a essência cintilante do que denominamos escritor. E dá-lhe suscetibilidade, pois eles carregam a responsabilidade, ou a pretensão, de serem as antenas da raça. E, cá pra nós, muitos realmente o são.
Se você é peitudo o suficiente e formula uma questão simples como esta: “o que é literatura?”, eles (os escritores) respondem como fazia Louis Armstrong quando lhe perguntavam o que é jazz: “Se você não sabe o que é jazz, então não vale a pena eu tentar explicar”. E ficamos por isso mesmo.
Pergunte a um poeta cioso de seu ofício: o que é poesia? Tem que ser à queima-roupa. Sacar rapidamente e desaparecer enquanto ele estiver perplexo e abalado. Antes de ele se recompor do primeiro balaço, volte e dê mais alguns tiros sem misericórdia para garantir o serviço: o que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?, e, cite-nos três poetas e três textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Se Paulo Leminski estivesse vivo ele responderia (como de fato o fez, homenageando o poeta Manoel de Barros que em seu poema “Sabiá com trevas” diz: “o poema é antes de tudo um inutensílio”), sem pestanejar, com um golpe de caratê: “a poesia é um inestimável inutensílio”. E continuaria: “fazemos as coisas úteis para ter acesso a estes dons absolutos e finais.” Kiai! E não daria chance para as duas próximas perguntas.
Felizmente, estamos em época de internet e cibercultura. Pudemos enviar as afrontas por e-mail e aguardar, protegidos e ansiosos, as respostas. Se viessem. E elas vieram.
O projeto originou-se com essas reflexões quase pueris no intuito de satisfazer a curiosidade de estudantes, oficineiros e iniciantes no trabalho apurado com a palavra. O resultado seria (e foi) postado no blogue sambaquis.blogspot.com. Mas, afinal de contas, quem é que não se fez essas perguntas em algum momento, ou que não gostaria de saber como seu poeta dileto as responderia?
Alguns poetas silenciaram olimpicamente. Outros consideraram a primeira pergunta quase ofensiva. Mas, para minha surpresa, muitos poetas com quilometragem e obra consolidada responderam de forma generosa e corajosa.
À medida que as respostas e comentários foram chegando, percebemos que estávamos compondo um calidoscópio reflexivo do fazer poético contemporâneo, em sua imensa variedade de perspectivas e de fazeres.
Para adequação ao tamanho da edição, tivemos que deixar várias respostas de fora desta amostragem. O que nos leva a pensar na possibilidade de um segundo volume, pois respostas instigantes continuam a chegar.
Esperamos que as reflexões compiladas neste livro satisfaçam e reverberem no leitor sensível aos mistérios da criação poética (e no poeta que inicia sua trajetória) mas, principalmente que os libere para continuar a pesquisar, questionar e a tentar novos caminhos, pois, no âmbito da criação literária não há verdades absolutas. As musas, várias em suas manifestações, agradecem.
Se todo poema atualiza uma possível teoria da criação, o poeta quando instado a refletir sobre o (seu) fazer poético apresenta-nos, de bandeja, aspectos fundamentais de sua práxis, de sua poiésis, de seu paideuma, enfim, de sua índole poética.
A poesia é de longe, pelo menos para os poetas, a linguagem de maior potência de significação (“a mais condensada forma de expressão verbal”, dizia Pound), e não é de espantar a variedade de percepções, de leituras, de idiossincrasias, de práticas que permeiam a poética contemporânea e, evidente, a sua recepção. Tão diversas como o são os próprios seres e seus interesses.
Roland Barthes foi um dos teóricos que caracterizaram a linguagem poética como sendo um desvio consciente e sistemático da norma linguística. Podemos acrescentar que não só da norma linguística. A linguagem poética prima por desviar-se de qualquer tipo de normalidade, de adequação social, histórica, mercadológica e existencial. Pelo menos o que costumamos chamar — os envolvidos com o fazer poético — de poesia digna de nota.
O escritor norte-americano Randall Jarrel dizia de forma jocosa que um poeta poderá amanhã de manhã acordar famoso por ter escrito uma novela ou matado sua esposa, mas não por ter escrito um poema. Ele não contava com a possibilidade de um poeta acordar famoso por ter escrito uma canção. E menos ainda com a possibilidade desta canção ter resultado em um bom poema.
Como diz o poeta, filósofo e compositor popular Antonio Cicero, em suas respostas, citando Montaigne: “é mais fácil produzir poesia do que conhecê-la”. Bem, produzir boa poesia não nos parece ser tão fácil assim. Mas isso é história para outro projeto.
[Texto de apresentação do livro "O que é poesia?", de Edson Cruz, editado pela Confraria do Vento/Calibán]