Já contei em minha
coluna no Cronópios como me enfiei numa sala de aula do flautista e professor alemão (ou será que era suíço?) - que morou até o fim de seus dias no Brasil ensinando e influenciando dezenas de músicos, compositores, maestros e professores –
Hans-Joachim Koellreutter.
Era um velhinho muito inspirador, e insistia o tempo todo que precisávamos questionar a tudo e a todos: principalmente aos professores.
Ele dizia que a função do artista é transmitir, informar, através de sua arte, as grandes idéias do momento em que vive. E as grandes idéias, os pilares da cultura do nosso querido século 20 (aliás, as aulas anotadas aconteceram no século passado… he he), foram: o conceito de tempo; a superação do dualismo e a superação da causalidade.
Tempo, para ele, era a questão central. É fácil de entender o porquê, pois trata-se de um músico e na música esse é o xis da questão. Se o conceito de tempo muda, tudo mudará na música. E sabemos (ou pensamos que sabemos, mas não colocamos em nosso dia-a-dia) que depois de Einstein e de Niels Bohr a noção de tempo como um fluxo constante do passado infinito até o futuro infinito não existe mais.
O tempo deixa de ser um fator puramente físico para ser uma forma de percepção, ou seja, o tempo não pode ser critério de avaliação porque ele muda de pessoa para pessoa. Os fenômenos do tempo como os da cor dependem da percepção. Esse redimensionamento do conceito de tempo, para ele, é o tema da música da segunda metade do século 20.
A música reproduz a visão do novo mundo. E nesse novo mundo, com essa nova percepção de tempo, tudo é movimento. No universo não há referenciais fixos, portanto, não se pode querer uma percepção rigorosamente objetiva.
Por outro lado, fomos educados dualisticamente e a música composta na segunda metade do século 20 procura superar esses dualismos. O dualismo é consequência do dualismo que fazemos entre tempo e espaço. Na realidade não existe essa divisão e sim um continuum.
Na música tradicional, ou seja, em 99,999% do que ouvimos supõe-se a existência de consonância versus dissonância; tempo forte versus tempo fraco; modo maior versus modo menor. A nova música transcende esses dualismos. Os contrários são complementares.
Para
Koellreutter, a superação dos contrários talvez seja um dos problemas mais urgentes para se construir uma cultura mais humanista. É difícil para nós, mas ainda chegará o momentuum onde não sentiremos mais diferença entre a vida e a morte, a melodia e o acorde, a tônica e a dominante, o bem e o mal, a transcendência e a imanência. Teremos uma forma de pensar e de agir que relacionará os contrários, na formação de um todo.
Na arte, a estética relativista será a base da criação e da fruição artística.
A estética relativista já é a base da composição musical contemporânea. Ela não considera, em princípio, alturas e intervalos absolutos, mas graduações e tendências. Não trata mais de acordes e sim de graus de densidade. Não trata de ritmos e andamentos determinados, mas de graus de velocidade. De mudanças de andamento, de tendências, enfim.
Mas o fato é que nossa cabeça e percepção ainda estão, e agem de acordo, em estágios bem anteriores a esses conhecimentos. Ainda pensamos e ouvimos de forma linear, com começo meio e fim. E ficamos incomodados quando nos é feita outra proposta. Inclusive pela arte, pela música. Ou deveria dizer, inclusive pela vida. Nos defendemos como podemos desses desconfortos. Por isso não ouvimos música contemporânea (que aliás já é música do século passado), ou pior, não sabemos como ouví-la. Não aprendemos. Não queremos.
O que Koellreutter revelava é que os cientistas e os artistas deixaram de ser observadores do mundo e passaram a ser co-autores. E nesse processo de co-autoria a preparação dos espíritos e das mentes para a apreensão de um mundo novo (que alias é velhíssimo, sempre esteve aqui, nossa percepção e compreensão é que foram embotadas) é uma função importantíssima da arte e da ciência.
[Exemplos de escuta para assimilar as idéias de Koellreutter: “Pranam”, de Gacinto Scelsi; “Anaklasis”, de Penderecki; “Tschel”, para sax tenor, de Hespor; “Acronon”, de H. J. Koellreutter]