[Carlos Felipe Moisés expõe
sua reflexão sobre a poesia contemporânea brasileira, sob os olhares atentos e
quase assustados de Márcio-André e Lúcia Santaella.]
Foto by Giorgio Rocha
Perto do final da primeira
década do século xxi, a poesia brasileira vive um momento esplêndido,
excepcional. Nos últimos 10, 15 anos surgiram no país mais poetas do que nos 30
ou 40 anteriores. Quantidade não é qualidade, sem dúvida, mas no caso creio que
já é, em si, um dado relevante. A fartura de poetas em atividade, hoje, no
país, é indício de uma efervescência, uma ebulição, uma sede, um apetite voraz
por poesia, sem precedentes. E, na minha avaliação, a qualidade tem sido
proporcional. Não tenho lembrança de outro momento em que houvesse, entre nós,
tanta poesia de boa qualidade como nos anos recentes. Nossos poetas, hoje, já
nascem maliciosos, já estreiam com um notável domínio de ofício, uma
considerável bagagem literária.
Antes, prevalecia a figura do
poeta ingênuo, falsamente ingênuo, que acreditava em inspiração ou no improviso
mais ou menos lírico-sentimental. Hoje prevalece o poeta que sabe o que faz, e
é capaz de defendê-lo, não com base no direito que cada um tem de dizer o que
quer, mas com base em argumentos e exemplos concretos, extraídos de uma sólida
tradição, já hoje, de 80 anos. Os poetas surgidos mais recentemente tomam como
referência os grandes mestres do passado, para os quais poesia para valer é
aquela que tem, entranhado nos próprios versos, o necessário espírito crítico,
a consciência crítica da poesia como forma de conhecimento.
Antes, os poetas olhavam para
trás e enxergavam outro poeta, algum que tivesse feito sucesso nos anos
anteriores; hoje, enxergam toda a tradição que os precedeu, remontando aos
pioneiros dos anos 20-30, que aí estão, presentes e vivos, como nunca. A poesia
brasileira, hoje, é uma poesia que tem consciência de sua história, que até
recentemente era uma história linear, feita de “ismos”, “gerações” ou grupos de
pressão, que iam se justapondo, em sucessão cronológica, e cada qual dava por
superado e obsoleto tudo o que tinha acontecido antes. Hoje, essa história é o
que sempre foi: movimentos espiralados, que incessantemente retomam o ponto de
partida, ou seja, os grandes veios abertos pelos pioneiros dos anos 20-30, cada
vez mais atuais.
O resultado é a pluralidade, a
convivência de tendências variadas, não em nome do protocolar “respeito” às
diferenças, ou em nome do politicamente correto, mas em razão da efetiva
diversidade das matrizes que formam a nossa tradição.
Antes, tínhamos dois ou três
suplementos literários, duas ou três revistas, uma ou outra editora que
publicava alguma poesia, de modo que era possível, de um lado, um grupo de
pressão mais persistente impor o seu gosto aos demais; de outro, era possível
acompanhar com segurança o que estava acontecendo – ou era possível fingir ou
até mesmo achar que era isso era tudo.
Hoje, essa ilusão não é mais
possível. Não porque já não se façam mais suplementos literários como
antigamente, mas porque revistas, no papel ou na grande rede, agora temos
dezenas, a cada ano; livros, centenas, a cada cinco ou seis anos. E já não
temos mais como acompanhar o que está acontecendo. Hoje, poetas de todas as
idades dependem muito mais uns dos outros, todos empenhados no propósito comum
de levar adiante uma rica tradição em poesia que, finalmente, 80 anos depois,
atinge a sua plena maturidade.
* * *
Passados uns dias desse
memorável encontro na Casa das Rosas, cuja tônica foi, na avaliação de todos, a
tolerância entre facções outrora litigantes, ocorreu-me que eu poderia ter ido
mais direto ao ponto se, em vez de optar por esse arrazoado mais ou menos
impessoal, eu tivesse apelado, como diria Fernando Pessoa, para “a covardia do
exemplo” (um só bastaria), acompanhado de um depoimento pessoal. O exemplo
poderia ser este:
Ora, a alegria, este pavão
vermelho, está morando em meu quintal agora. Vem pousar como um sol
em meu joelho, quando é estridente em meu quintal a aurora. Clarim de
lacre, este pavão vermelho sobrepuja os pavões que estão lá fora. É uma festa
de púrpura, e o assemelho a uma chama do lábaro da aurora. É o próprio doge a
se mirar no espelho. E a cor vermelha chega a ser sonora neste pavão pomposo e
de chavelho. Pavões lilases possuí outrora. Depois que amei este pavão
vermelho, os meus outros pavões foram-se embora.
A maioria dos presentes talvez
não soubesse identificar o autor; muitos talvez não fizessem ideia de quem foi
Sosígenes Costa (Belmonte, 1901 - Rio de Janeiro, 1968).
Idos de 70, tarde ensolarada – ao
entrar no escritório que José Paulo Paes ocupava na sede da Editora Cultrix,
que ele dirigia com mão de mestre, saudei-o, quase histriônico, com a primeira
estrofe do soneto acima, o 29º dos “Sonetos pavônicos”, que sei de cor, desde
que os li pela primeira vez, no início dos 60, na edição original da Obra
poética, pela Editora Leitura. José Paulo ficou surpreso ao ver que um
jovem poeta, em São Paulo, não só conhecia como admirava Sosígenes Costa, a
ponto de sabê-lo de cor.
Conversamos longamente sobre
poetas brasileiros miseravelmente esquecidos – alguns de vez em quando
lembrados, outros esquecidos para sempre. Conversamos também sobre os que
tiveram o seu momento de glória e logo migraram para o limbo dos que nunca
existiram. Menos de vinte anos depois da auspiciosa e tardia estreia, em 1959,
ali tínhamos Sosígenes Costa, outra vez, um ilustre desconhecido. Zé Paulo
confidenciou-me estar pesquisando, fazia algum tempo, a obra invulgar do poeta
de Belmonte. O resultado foi, uns anos depois, a reedição revista e ampliada de
sua Obra poética, preparada por José Paulo Paes (Cultrix, 1978 –
exatos dez anos após a morte de Sosígenes). O circuito dos admiradores do poeta
baiano, então, ampliou-se consideravelmente, mas hoje, 2009, meros trinta anos
depois, esgotada a reedição, morto há mais de dez anos o próprio Zé Paulo – o
poeta da zona do cacau volta a ser deslembrado.
Mas continua a ser o meu
exemplo, um dos muitos possíveis, de poesia brasileira, hoje. Exemplo de quê?
De que todos podemos orgulhar-nos de uma das mais ricas, férteis e variadas
tradições poéticas do Ocidente, no século xx. Tão rica e tão fértil que
nos damos ao luxo de, periodicamente, esquecer alguns dos melhores – esquecimento
coletivo, já se vê. Cada um de nós tem o seu deslembrado Sosígenes (são
tantos!), mas coletivamente é que são elas. É que estamos todos tramados na
irrisória concepção de história literária que arruma tudo em blocos ou “ismos”
ou “gerações” – essa enganosa sucessão linear de falsos “programas”, onde os
vários Sosígenes, conhecidos de todos, não têm lugar.
Não há como escapar: a situação
“atual” da poesia brasileira (assim tem sido, há décadas) só poderá ser
corretamente avaliada quando for, um dia, encarada à luz de um processo
histórico, longo já de 80 anos, que tem pouco a ver com a linearidade dos
“ismos” ou das doutrinas dominantes, artificialmente forjadas nos bastidores,
mas incondizentes com a multifacetada riqueza dos versos propriamente ditos.
Então nos daremos conta do
“coração selvagem” que pulsa no bojo da nossa tradição poética. A imagem aqui
lembrada (essa do “coração selvagem”) rege toda a trajetória de Clarice
Lispector, mas não diz respeito à poesia. Clarice nem de longe pensava no apagado
e esquecido ofício de poetar. No entanto, diz.
Talvez seja o caso de perguntar:
passaremos a vida, como Clarice, sempre “perto do coração selvagem”, acampados
nas suas imediações? Ou ousaremos um dia entrar na sua posse, para que nossa
poesia – coletivamente – ecoe o variado e heterogêneo batecum desse coração que
desde sempre nos anima?
[Depoimento de Carlos
Felipe Moisés no debate coordenado por Edson Cruz (São Paulo, Casa
das Rosas, 5/12/2009), que contou com a participação dos poetas
Affonso Romano de Sant’Anna, Carlito Azevedo, Márcio-André, Nicolas Behr e
Ricardo Silvestrin.]