24 março 2009
Ana Maria Ramiro à queima-roupa
1) O que é poesia para você?
O estado permanente de tensão individual que se resolve aparentemente com a escrita, a procura angustiante daquilo que se esconde e se esvai e que, por essa mesma razão, dá sentido a essa busca, ao processo poético. Para mim, três palavras-chave têm sido a base para o fazer poético: pulsão, concisão e descoberta (um novo olhar sobre a linguagem) e, claro, muita reescrita.
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Acho fundamental ler muito, dos clássicos (aqueles que permanecem "novos") aos contemporâneos, estabelecer um paideuma, mas também acho necessário um certo distanciamento do cânon e do campo literário, que muitas vezes acaba criando uma amarra condicionante, um instrumento de padronização. Os poetas não devem nunca deixar de lado a idéia de reformular constantemente a própria linguagem, e isso serve para todos, iniciantes ou não. A poesia, como aspecto da linguagem, é matéria viva e ninguém passa uma vida inteira fazendo, falando, escrevendo as mesmas coisas. Ser fiel a um leitmotiv, mas com possibilidade de desvios. Reinventar-se.
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Minha inclinação para a poesia se iniciou na adolescência e me lembro que a leitura de Alberto Moravia e de Baudelaire (As Flores do mal) me apresentou uma escrita enérgica, anímica, além de expandir a minha compreensão para a existência de uma estrutura textual. A partir daí, outras leituras foram fundamentais: Uma temporada no inferno, do Rimbaud, A Divina Comédia (mais tarde li na versão original e o prazer foi redobrado ao descobrir como a linguagem arcaica contextualiza historicamente a obra de Dante, mas ao mesmo tempo é uma surpresa estética para o leitor contemporâneo), O livro das horas, do Rilke, muito da obra do Pessoa, do Drummond, alguns poemas específicos de Cecília Meireles, João Cabral e os concretistas. Mais tarde descobri poetas ingleses, franceses, irlandeses, americanos, mexicanos, sul-americanos, poetas orientais... e sigo nessas descobertas. Devo mencionar ainda algumas obras e autores singulares, sui generis, tanto da poesia como da ficção e, nesse sentido, seriam muitos os exemplos, desde o Popol Vuh, passando por Sóror Juana Inés de La Cruz, E. A. Poe, Joyce, Clarice Lispector, a poesia em dialeto de Pasolini, os orikis de Antonio Risério... Todas essas leituras me provocaram em determinado aspecto e momento, me incitaram a dissecá-las, mais do que outras tantas, e de alguma forma se tornaram um palimpsesto, o amálgama que utilizo quando penso em poesia.
Ana Maria Ramiro nasceu em São Paulo (1972). Publicou os livros Menina-Poesia (1999) e Desejos de Gaia (2007). Em 2006, organizou e traduziu a plaquete Para Fazer um Talismã, com poemas de cinco autoras argentinas: Alejandra Pizarnik, Elizabeth Azcona Cranwell, Dolores Etchecopar e Olga Orozco. Participou da antologia 8 femmes (2007) e da Antologia de poesia brasileira do início do terceiro milênio (2008), lançada em Portugal. Tem poemas, traduções e ensaios publicados nas revistas literárias Zunái, Critério, Coyote, Grumo, entre outras. Publica na internet o blog Folhas de Girapemba, no endereço http://girapemba.blogspot.com. Email: ana.ramiro@uol.com.br
22 março 2009
Jorge Tufic à queima-roupa
1) O que é poesia para você?
Deve ser o substrato da primeira manhã do universo, algo que teria se fixado em minha retina nos albores de minha infância em Sena Madureira-Ac, lá pelos idos de 1935. Um cenário bucólico onde o rio, a mata, os igapés, violões à distância e o desafio dos cantadores nordestinos, soldados da borracha, tanto me deslumbravam quanto acenavam desafios que somente anos depois eu viria a aceitar, compondo o meu primeiro soneto. É um sentimento forte demais para uma criança que ainda não tinha amigos nem brinquedos.
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Um iniciante no fazer poético deve perseguir os bons livros de poesia. Devorá-los em silêncio, de preferência contido diante de qualquer impulso ou chamado para os primeiros rascunhos, tarefa essa que deve ficar para quando dispor de muito papel para ser gasto. A ilusão de texto definitivo é um dos véus de Maia nessa fase de busca de estilo e de linguagem.
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Minha escolha de três poetas-modelos recai sobre Jorge de Lima, Manuel Bandeira e Ferreira Gullar. O primeiro pela sua exuberância e riqueza de metáforas, o segundo pela simplicidade e o terceiro pela extrema economia verbal, sem abdicar do discurso lírico e da participação social.
Jorge Tufic nasceu em Sena Madureira, Acre, a 13 de agosto de 1930. Viveu em Manaus durante 46 anos, dali saindo para morar em Fortaleza, em 10 de dezembro de 1991. É autor da letra do Hino do Amazonas, entre vários livros de poesia, ficção e ensaio, perfazendo os 50 títulos publicados. Pertence a várias entidades, entre as quais a Academia Amazonense de Letras, Academia Acreana de Letras e a Academia de Letras e Artes do Nordeste, sendo, além disso, detentor de inúmeros prêmios literários, com destaque ao Curso de Arte Poética, prêmio nacional da Academia Mineira de Letras para o ano de 2003. É Comendador da Ordem do Mérito Cultural do Estado do Amazonas, Cidadão Honorário de Fortaleza e colaborador do portal Cronópios da Internet. Foi objeto de uma primorosa reportagem do jornalista Jacques Menassa no jornal libanês Al Naher, já divulgado e traduzido para 80 idiomas. E-mail: jorgetufic@hotmail.com
20 março 2009
Marcos Siscar à queima-roupa
1) O que é poesia para você?
Há um certo desconforto dos poetas em responder à questão “o que é poesia?”. A pergunta não é mais complicada do que outras. O problema é que a poesia não gosta muito de definições, e isso tem a ver com a história de sua constituição como discurso e como saber sobre o mundo, de modo distinto da filosofia, da religião ou, mais recentemente, da ciência.
Por isso, respostas especulativas, místicas ou sistêmicas, por mais interessantes que possam parecer, soam sempre como meia-verdade. Comento os paralelos, arriscando algumas hipóteses sobre o modo como a poesia reivindica sua diferença:
- Gosto de imaginar, dentro da formulação filosófica do problema, que a poesia é a tentativa de manter o paradoxo, ou seja, aquilo que a filosofia tenta resolver a todo custo. O papel básico do filósofo é evitar o paradoxo, é dar um sentido coerente para aquilo que se apresenta contraditoriamente. Saber que não se sabe (Platão) é apenas uma estratégia do saber e, no fundo, um problema que a filosofia tem o cuidado de justificar, de manter sob controle. Para o poeta, o paradoxo não traz inconveniente (Octavio Paz). É possível dizer que a ambição da poesia é manter o paradoxo como tal, dando-lhe forma e formulação.
- Já o discurso religioso valoriza o mistério, verticaliza a vertigem do conhecimento permanecendo, via de regra, dogmático. Se a poesia se aproxima da reivindicação do mistério, rejeita claramente o dogmatismo. O poeta é mais comumente agnóstico (Drummond), ou inicialmente profanador (Baudelaire). Mantendo o “mistério” (hoje diríamos a alteridade), mas recusando a necessidade de dar-lhe um fundamento, subvertendo o que foi separado e trazendo-o para o uso do profano (Agamben), a poesia seria um tipo de “profanação”.
- Com a poesia sobre a mesa de dissecação, pode-se chegar a algumas conclusões em relação aos seus “dispositivos”. A herança científica nos legou uma visão do poético que passa sobretudo pela via da lingüística (Jakobson, formalistas russos) e é capaz de nos oferecer definições de procedimentos e mecânicas poéticas. Como toda fonte de definições, ela vale tanto pelo que descreve quanto pelo que acaba por normatizar. Daí a idéia pedagógica que lhe é associada (por exemplo, nos discursos do make it new). Entretanto, a poesia resiste à idéia de reiteração de formas e valores, valoriza a experiência única.
É difícil responder “o que é poesia?” sem constatar essa disputa entre discursos. Acho que dá para dizer que discurso poético aspira ao paradoxo do conhecimento da ignorância, que não deixa de estar ligado com a pulsão da alteridade (acaso, mistério, etc.). Essa experiência de constituição de identidade não deixa de ter sintonia com o modo pelo qual a poesia aborda questões psicológicas (“afeto”), cosmológicas (ou “ecológicas”) e sociológicas (“comunidade”).
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Se aceitamos essa perspectiva do discurso poético, então o poeta só se realiza plenamente se levar o mais longe possível os seus pontos de partida, ou seja, os dados de sua própria experiência: o que sabe, o que faz, o que lê, o que deseja. Até o ponto em que essas coisas mostram seus pontos cegos, suas contradições. Há muitos tipos de prática de poesia, mas a que mais me interessa é essa radicalidade, essa capacidade de assumir a dificuldade, ainda que por meio da formulação mais simples.
Um poeta iniciante é sempre um poeta inteiro já que, como todo poeta ele ainda está por vir, por reconhecer-se. Ele está sempre em processo e isso significa, no fundo, que sua tarefa é a incessante transformação do lugar de onde vem.
Acho que o maior perigo hoje para um poeta é acreditar no marketing, no estilo de fachada, no reconhecimento vazio, como algo que substitui a tarefa de fazer-se poeta. Claro, o marketing existe, sempre existiu. Mas o pior dos mundos, para a poesia, é aquele em que o marketing encontra em si mesmo sua justificativa.
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Tomando um atalho, eu citaria três autores que estão destacados em epígrafe no meu próximo livro de poemas.
Carlos Drummond de Andrade. Trata-se de um poeta que fica mais interessante se lido fora da habitual ortodoxia crítica. Claro Enigma (1951) é um dos pontos altos da fragilidade e da irritação da poesia de Drummond. Esses dois “defeitos”, aliás contraditórios, são combinados e se tornam qualidades poéticas.
Haroldo de Campos. Para mim, Galáxias (1984) é um livro de grande liberdade de linguagem e de “respiração”, que negocia de modo muito pessoal com os excessos joyceanos, sem o engessamento de escola que o temperamento “aventureiro” de Haroldo ajudou a evitar.
Michel Deguy. Gisants (1985). Os “jacentes” do título são ao mesmo tempo figura do humano, da história, da poesia. É um ponto alto da poesia de Deguy, do modo espantosamente coerente e sensível com que flagra a metafísica nos gestos mais simples do cotidiano, dando-lhes sentido histórico.
Marcos Siscar é poeta, tradutor e professor de literatura na Unesp. Publicou os livros de poemas Não se Diz (1999), Tome seu café e saia (2001), Metade da Arte (2003, finalista do Jabuti) e O Roubo do Silêncio (2006, prêmio Goyaz e finalista do Portugal Telecom). Tem livros traduzidos na Argentina (No se Dice, 2003) e na França (Le Rapt du Silence, 2007, e a antologia Prends ton café et va-t-em, a ser lançada em 2009). É tradutor de Tristan Corbière, Michel Deguy, Jacques Roubaud, entre outros. Em 2005, foi poeta residente em La Rochelle, França. Prepara atualmente a edição de seu próximo livro Interior via Satélite, pela Ateliê Editorial. E-mail: siscar@ibilce.unesp.br
18 março 2009
Criação literária na pós-graduação
Com módulos [romance, conto, poesia, roteiro, teatro, infanto-juvenil, crônica e blogue] coordenados por professores escritores, um curso — em nível de pós-graduação — para formação de escritores.
A coordenação geral está a cargo do escritor Nelson de Oliveira e de Claudio Brites e contará com Marcelino Freire, Nelson de Oliveira, Paulo Ferraz, Marne Lucio Guedes, Marcelo Maluf, Fernando Marques, Luís Marra e Edson Cruz entre os professores convidados.
Informações e inscrições: www.labmind.com.br
16 março 2009
Sylvio Back à queima-roupa
[foto: Guilherme Gonçalves]
1) O que é poesia para você?
Poesia é a mais imponderável das criações do espírito humano. E a única totalmente imprevisível. “O poema não é um ato compulsório”, ensina W.H. Auden. Uma espécie de bricolagem holística do que fomos, somos e seremos, daí esse caráter profético ancorado, como se fosse uma segunda pele, em nosso e no inconsciente coletivo. Talvez uma “brisa mediúnica” que sopra sobre e dentro de você e do seu intelecto quando ela bem entende. Poema é como suicídio, você não premedita, simplesmente comete! Por isso, todo poema é uma obra completa. Na sua invenção, implodem tanto o passado quanto o devir. Só a palavra é presente, a dádiva sobrevivente. Em cada poema a imersão formal e a exorcização moral são tamanhas que ele sempre soa o último. Como se a musa jamais fosse voltar à cena do crime.
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Tempos atrás fui interpelado por um neo-poeta que me fez essa pergunta. De cara pensei em dizer que, antes de tudo, há que se ter talento e amar a poesia. O que são verdades incontornáveis. Mas, insuficientes. Na hora tive uma iluminação, pois nunca havia elocubrado sobre o tema. Disse-lhe algo mais ou menos assim: leia e releia muita poesia de qualidade, de todos os tempos, brasileira e estrangeira, essa, se possível, na língua do criador, caso não, traduzidos, com o original ao lado para conferir o "tamanho" da traição. "Traduzir é poetar às avessas", assim chama-se o livreto com poemas do americano Langston Hughes que verti para o português. Portanto, mente, olhos e ouvidos atentos! A partir de então, numa auto-crítica implacável, avalie até que ponto ficou influenciado por esses e outros poetas de sua preferência. Se pressentir que em um e outro poema ou verso existe identificação, isso ainda não é dicção própria, ou seja, não é a "sua" poesia, nem poesia, se rigorosos formos. E poesia é antes de tudo, rigor em todos os sentidos! Certo dia, passados, sei lá, os anos, passada a vida, passados os poemas, você surpreender nos seus versos uma inaudita estranheza, uma negação absurda de tudo que você pensa seja poesia, como se "aquilo" não parece coisa sua, algo que não lembra nada do que você leu ou escreveu, e sente um misto de medo e felicidade, é bem provável que a "sua" poesia o tenha fulminado.
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Muitas vezes o poema chega antes do poeta. No meu caso, eu cheguei fora de hora, maximizando a chamada "angústia da influência" (Bloom). Ainda que a estante de poesia seja maior do que a de livros de cinema, só ousei poetar já homem maduro com uma filmografia de trinta títulos. Leitor voraz desde a juventude, escrevi os primeiros versos aos 48, sem nunca antes ter cometido nenhum poema, nem por desfastio ou artimanha amorosa.
movie junkie
sou um reles
traficante de
fotogramas
antes fazendo fita
do que viver sem
Viveca Lindfors
movies não
há mais timing
livre-se deles
do cowboy que fui
restam furtivas
ínfância e infâmia
a bala na lua
Méliès de olho
a dor irisada
queimei o filme
queimei o poema
queimei se amei
Em fins de 1984 fui literalmente invadido por uma cadadupa de inesperados versos sofridos e doridos, frutos de um incontornável drama existencial. Logo vieram Drummond e Mallarmé, advertindo que pensamentos & sentimentos não bastam, que é preciso penetrar "... surdamente no reino das palavras" (CDA), que um poema é feito de palavras, não de idéias. Para agravar a conflagração, foram chegando, imbricados, versos e estrofes inoculados pelas chamadas "palavras do antro". Fiquei perplexo e assustado. Ato contínuo, porém, procurei não apará-las da contundência de suas hipérboles erótico-fesceninas, do seu "amor & humor" (Oswald de Andrade), eivados de viço e isentos de vício. E dei-lhes passagem. Até hoje: dos sete livros publicados, quatro remetem-se, justamente, a esse gomo nobre da poética, o verso fescenino, também rotulado de pornográfico e poemas de sacanagem. Entretanto, grife dos maiores, tanto do Ocidente como do Oriente e d'África, do Egito, Grécia, Roma e China antigos à atualidade.
Foi então que me dei conta, leitor contumaz de Catulo, Juvenal, Ovídio, Marcial, Bocage, das medievais "Cantigas d'escarnho e de mal dizer", de Aretino, Gregório, Apollinaire, António Botto, Boris Vian, Hilda Hilst, Bernardo Guimarães, Whitman, Kafávis, Verlaine, Affonso Ávila, etc., o quão tinha sido refém do preconceito contra o verso licencioso. Ou seja, de expressões obscenas, daquele "baixo calão" aceito na prosa, no teatro, no cinema, mas proscrito na poesia. "Não existe palavra impura para o poeta", escreveu Manoel de Barros, ao ler meu livrinho de estréia, "O caderno erótico de Sylvio Back". A poesia empurece qualquer palavra.
ablução do grelo
tantos vorazes ofícios
bocas e salivas assaz
tanta porra que jorre
sacia vícios e ardores
tantos orifícios há pra
aplacar dedos e dildos
tanta ablução do grelo
o caralho é prisioneiro
Dado esse assincrônico despertar para o poema (são apenas vinte e dois anos escrevendo e publicando), fica difícil enunciar o paideuma fundador do meu estro. Embora fácil rememorar os primeiros leitores: coube à tríade de poetas paranaenses, Paulo Leminski, Alice Ruiz e Sérgio Rubens Sossélla, nos idos dos anos 1980, o aval e curso aos versos inaugurais, eles tão surpresos quanto eu. Até que ponto fui inoculado pelo seu poemário, só o tempo dirá. Na seqüência, criadores e criaturas, antes deles, iam, foram e voltaram ao longo de, no mínimo quatro décadas, todos embaralhados a uma trintena de filmes dos mais variados torques estéticos, políticos e morais. Como se poema e cinema dormissem juntos e jamais tivessem trocado algum afago. Os fotogramas, na verdade, sempre embutiram epigramas. "O poema/antevê/o cinema" (álbum d'alma, em "Moedas de Luz").
Nessa voragem, só me resta homenagear, de forma randômica, poetas e poemas que, feito um eterno iniciante (vá-te, Back!), os leio e releio, descubro novos (como Laura Riding), deliciando-lhes a alma e a beleza com primevos pureza e encantamento. Sem que nenhum deles, propriamente, fosse ou é, o azimute dos fesceninos e que tais (o erotismo é o DNA de todo poema), sinto-me o receptáculo privilegiado dos influxos difusos e confusos, esmaecidos e quase todos prescritos ao longo do tempo, oriundos do inimitável fabbro de um, entre tantos (além dos citados), Bandeira, Issa, João Cabral, Auden, Celan, Sá-Carneiro, cummings, Murilo, Dickinson, Augusto de Campos, Bashô, Álvares de Azevedo, Rilke, Helena Kolody, Keats, Jorge de Lima, Paz, Wang Wei, Cecília Meirelles, Mallarmé, Eliot, Cruz e Souza, etcetera, etcetera, etcetera. Quem sabe não seja de todo impertinente o título do meu novo livro: "Isto ainda é poesia?"
Eurus
sopre este poema
da página enxote
pro nume que dá
a lume sopre aqu
eloutro suma com
todos e deixe o tí
tulo sumo do que
do verbo fora po
esia viés que ag
ora seria não és
Sylvio Back é cineasta, poeta, roteirista e escritor. Filho de imigrantes, pai húngaro e mãe alemã, é natural de Blumenau (SC). Ex-jornalista e crítico de cinema, autodidata, iniciou-se na direção cinematográfica em 1962, tendo escrito, dirigido e produzido até hoje 36 filmes, entre curtas, médias e dez longas-metragens, esses, a saber: "Lance Maior" (1968), "A Guerra dos Pelados" (1971), "Aleluia, Gretchen" (1976), "Revolução de 30" (1980), "República Guarani" (1982), "Guerra do Brasil" (1987), "Rádio Auriverde" (1991), "Yndio do Brasil" (1995), "Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro" (1999) e "Lost Zweig" (2003).
Publicou vinte livros entre poesia, ensaios e os roteiros dos filmes, "Lance Maior", "Aleluia, Gretchen", "República Guarani", "Sete Quedas", "Vida e Sangue de Polaco", "O Auto-Retrato de Bakun", "Guerra do Brasil", "Rádio Auriverde", "Yndio do Brasil", "Zweig: A Morte em Cena", "Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro" (tetralíngüe), "Lost Zweig" (bilíngüe) e "A Guerra dos Pelados".
Obra poética: "O caderno erótico de Sylvio Back" (Tipografia do Fundo de Ouro Preto, Minas Gerais, 1986); "Moedas de Luz" (Max Limonad, São Paulo, 1988); "A Vinha do Desejo" (Geração Editorial, SP, 1994); "Yndio do Brasil" (Poemas de Filme) (Nonada, MG, 1995); "boudoir" (7Letras, Rio de Janeiro, 1999); "Eurus" (7Letras, RJ, 2004); "Traduzir é poetar às avessas" (Langston Hughes traduzido) (Memorial da América Latina, SP, 2005), "Eurus" bilíngüe (português-inglês) (Ibis Libris, RJ, 2006); "kinopoems" (@-book) (Cronópios Pocket Books, SP, 2006); e "As mulheres gozam pelo ouvido" (Editora Demônio Negro, SP, 2007). E-mail: sylvioback@gmail.com
14 março 2009
José do Carmo Francisco à queima-roupa
1) O que é poesia para você?
A poesia é para mim a resposta possível ao absurdo da vida, o sentido do que não tem sentido, a resposta precária e nunca definitiva às grandes interrogações. Metade canção, metade filosofia, é assim que eu vejo a poesia.
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
O principiante deve ler tudo o que diz respeito à poesia. Todos começamos por ser «leitores», eu comecei por ler Cesário Verde com dez anos. Só publiquei o meu primeiro poema adulto aos 27 anos em 1978 no «Diário Popular».
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Três poetas são Cesário Verde com «Cristalizações», Carlos de Oliveira com «Sobre o lado esquerdo» e Ruy Belo com «Aquele grande rio Eufrates». Manuel Bandeira e outros poetas igualmente importantes foram surgindo depois de 1978. E ainda não parei nas minhas leituras e nas minhas descobertas.
José do Carmo Francisco nasceu a 13 de Fevereiro de 1951 em Santa Catarina (Caldas da Rainha), Portugal. Frequentou o Instituto Comercial de Lisboa e o Instituto Britânico. Foi bancário entre Setembro de 1966 e Novembro de 1996. É juiz social no Tribunal de Menores desde 1993. É jornalista – carteira profissional nº 4149. Estreou-se no «Diário Popular» em 1978 e em «A Bola» em 1979. Foi colaborador do «Sporting» desde 1988 («As palavras em jogo») e seu redactor de Janeiro de 1997 a Novembro de 2006. Entre 1992 e 1996 entrevistou na revista «Bola Magazine» figuras nacionais das Artes e das Letras na rubrica «Um cafezinho com». Colabora no mensário «Voz de Alcobaça» com a coluna «O lugar do poema» e no semanário «Gazeta das Caldas» com a rubrica semanal «Um livro por semana» e a coluna quinzenal «Estrada de Macadame». Colabora na revista «Desporto sem Paralelo» e nos jornais «Diário Insular» e «Notícias da Amadora». Colaborou nos jornais «O Mirante», «Diário Popular», «Diário de Lisboa», «República», «O Ponto», «O Remate», «Correio dos Açores», «O distrito de Portalegre» e nas revistas «Ler», «PC Win», «Mulheres», «Revista Alentejana», «Colóquio Letras» e «Seara Nova». Desempenhou funções da direcção da Associação Portuguesa de Escritores e é secretário da Associação Portuguesa de Críticos Literários. Organizou duas antologias para o Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas: «O Trabalho – antologia poética» e «O Desporto na Poesia Portuguesa». É co-autor do livro «Glória e vida de três gigantes» sobre o Sporting C. de Portugal, o Benfica e o F.C.Porto editado em 1995 por «A Bola». É autor dos seguintes livros: «Iniciais» (1981), «Universário» (1982), «Transporte Sentimental» (1987), «Jogos Olímpicos» (1988), «1983 – Um resumo» (1991), «Leme de luz» (1993), «Mesa dos Extravagantes» (1997), «As emboscadas do esquecimento» (1999), «De súbito (2001), «Os guarda-redes morrem ao Domingo» (2002), «O Saco do Adeus» (2003), «Pedro Barbosa, Jesus Correia, Vítor Damas e outros retratos» (2005) e «Mansões Abandonadas» (2007). «Iniciais» venceu em 1980 o prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores atribuído por um júri constituído por Armando Silva Carvalho, Fernando J.B. Martinho e Pedro Támen. Em 2006 foi publicada uma versão da tese de mestrado de Ruy Ventura («José do Carmo Francisco - uma aproximação») nos 25 anos da sua obra poética. O Júri (Clara Rocha, Silvina Rodrigues Lopes e António Cândido Franco) atribuiu à tese («Representações da Memória e do Quotidiano na poesia de José do Carmo Francisco») a classificação de «Bom com distinção». O poema «Café contigo» está gravado num CD de José Cid. O Jornal «ABC» de 15-11-2008 dedicou-lhe uma página no seu Suplemento Cultural. Tem poemas, entrevistas e notas de leitura nos sites e blogs «aspirinab.com.», «triplov.com», «escritacriativa.com», «ofogareiro.blogspot.com» «alicerces1.blogspot.com», «casariodoginjal.blogspot.com», «cabradeservico.blogspot.com» e «viagenspelooeste.blogspot.com» E-mail: jcfrancisco@mail.pt
12 março 2009
Felipe Fortuna à queima-roupa
1) O que é poesia para você?
Eis uma pergunta que deve ocorrer para todo poeta. Às vezes parece ingênua, às vezes parece a única pergunta a responder... Em qualquer momento, porém, penso que poesia é transformação e transfiguração. Uma palavra no verso transforma todas as palavras e todo o verso. Transfiguram-se o poema e o leitor.
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Se tivessem dito para mim o que deveria perseguir...
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Carlos Drummond de Andrade, ao escrever Claro Enigma, atingiu um momento altíssimo da lírica brasileira moderna. Depois dele, somente João Cabral de Melo Neto chegou lá, com Serial e Duas Águas. Nos dois poetas, o mais impactante é o modelar da palavra: como escrever de modo diferente os versos "a máquina do mundo se entreabriu / para quem de a romper já se esquivava / e só de o ter pensado se carpia"? Como imaginar um ovo diferentemente de "sem possuir um dentro e um fora, / tal como as pedras, sem miolo: / e só miolo: o dentro e o fora / integralmente no contorno"? Para ficar na língua portuguesa, Fernando Pessoa (Álvaro de Canpos) de "Tabacaria" é um assombro, pois se tem a impressão de que o poema não poderia ser diferente, por ser essencial.
Felipe Fortuna nasceu no Rio de Janeiro, em 1963. Mestre em Literatura Brasileira (PUC/RJ), é poeta e ensaísta, e vem colaborando regularmente na imprensa brasileira. Publicou Ou Vice-Versa (1986), Atrito (1992) e Estante (1997), poemas; A Escola da Sedução (1991) e A Próxima Leitura (2002), crítica literária; Curvas, Ladeiras - Bairro de Santa Teresa (1997) e Visibilidade (2000), ensaios. Traduziu a obra integral da poeta francesa Louise Labé no volume Amor e Loucura (1995). Diplomata, atualmente trabalha em Londres. Em 2005, publicou um novo livro de poemas, juntamente com os três anteriores, no volume Em Seu Lugar (Editora Francisco Alves). E-mail: felipefortuna@felipefortuna.com Biobibliografia em www.felipefortuna.com e http://pt.wikipedia.org/wiki/Felipe_fortuna
10 março 2009
André Vallias à queima-roupa
[foto: rainer von eichenbaum]
1) O que é poesia para você?
um curvar-se (re)pro/pulsante sobre as raízes da linguagem | o fazer dos gregos (poiésis), o arar dos romanos (versus) | o nadi contra suberna de arnaut, o rove over de hopkins | o rever de augusto, o ror de age, o ro de azeredo | a máquina não-trivial de heinz, a mariée mise à nu de marcel | o e começo aqui e meço aqui este começo de haroldo | a autopoiese de humberto, o organismo de décio, os metálogos de gregory | o commodius vicus of recirculation de jay ay ay jay | a faca de cabral, o cavalo de odisseu, a navalha de william, a ars de llull | a frase de zé lino, o zen de pedro xisto, a ave de wlademir | o albatroz de baudelaire, voyelles de rimbaud, o möwe de un rien | o ícaro de brueghel, o áporo de carlos, o cacto de manuel | os kenningar de borges, os babilaques de waly, o I, too, dislike it de marianne | o herbário de emily, os travessões de elizabeth, a smith corona de edward, as vírgulas de estlin | o soneto de sá, a fita métrica de miranda, o eros de omar, as safos de fontes | les êtres lettres de leirner, as letras de mira, as lenoras de lenora | los cuatro puntos cardenales son tres: el norte y el sur de huidobro | o mundo de fuller, a fera de flusser | o marisco em ostracismo de joão, o avalovara de osman, a oda a marx de joan | o trobar clus de marcabru, o graffito de murilo, o silêncio de celan | josé e seus irmãos de mann, a aesthetica in nuce de hamann | o atta troll de heinrich, o tatuturema de sousândrade | a memória de hölderlin, o melro de trakl, a aranha de redon | o madrigal de gesualdo, a suíte de sebastian, as mobílias de satie | a ursonate de kurt, o urtod de stramm | os mortos de groys, o anjo de benjamin | o cred'io ch'ei credette ch'io credesse de dante | a escalada de francesco, o naufrágio de luís, o epitáfio de tristan | a ève, sans trêve de jules, a salomé de moreau, l'ève future de villiers | as pessoas de pessoa, as personae de pound | a princesa de brancusi, a origem de courbet, o coup de stéphane | o escudo de arquíloco, o machado de assis, a rapsódia de mário | o dedo de aderaldo, o dado de aderaldo, o dia de aderaldo | o polifemo de góngora, a graça do graça, a história de carpeaux | o gil engendra em gil rouxinol de joaquim, é tão triste cair de nelson e guilherme | a guariroba de gilberto, o cérebro de cícero, os olhos de adriana, o colírio de simão | o cinema falado de caetano, a ilustração da arte de antonio, os diagramas de lizárraga, os grides de gerty | o pelé calado é um poeta de romário | o tractatus de ludwig, os retratos de gertrude, o inferno de faustino | o golfinho de ossip, a anna de amedeo, a estrela de velimir, a forma de vladimir, o fogo de marina | roteiros roteiros roteiros roteiros roteiros roteiros roteiros roteiros roteiros de oswald | amor/humor (eterno roteiro)
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
educar os cinco sentidos (marx via haroldo), educar os tantos sentidos, educar todos os sentidos | que tudo é uma questão de tato | que a verdade é a aparência, que o mistério é a forma, e aquilo que o homem tem de mais profundo é sua pele (gide/valéry) | aprender línguas, aprender códigos e línguas | verter, transpor, intraduzir, transcriar, outraduzir | que todo poetar é traduzir (tsvetáieva) | saltar no ar | que o macaco que ficou no galho a onça comeu | estudar, estudar, estudar | que pra falar errado é preciso saber falar errado (adoniran) | errar e errar | que os sete pecados capitais são dois: preguiça e impaciência (k) | arriscar | que poesia é risco (augusto)
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
cito, dentre os não tantos mas também não poucos que conheci, três que influiram/influem decisivamente, por ordem decrescente de aparição na linha do tempo:
1) augusto de campos: cujo “expoemas”, belíssimo álbum serigráfico impresso por omar guedes, lançou-me à feitura de poemas visuais; mas de quem só vim me aproximar quando acabara de organizar a exposição “p0es1s – digitale dichtkunst”, em 1992, quando ambos já tripulávamos o bateau îvre da era digital; mestre insuperável da tradução-arte; a sua poesia e ensaística são-me fonte inesgotável de estímulo e inspiração; – o ethos do poeta.
2) age de carvalho: que tive a felicidade de conhecer na alemanha, em 1990; que me introduziu à luminosa belém de mário faustino, benedito nunes, haroldo maranhão, max martins e robert stock; que me fez ler paul celan e carlos drummond; cuja obra, tão diversa e próxima, eu admiro mais e mais; irmão em poesia e design; leitor atento (miglior fabbro) de tudo que eu faço; – a clausura do poeta/poema.
3) haroldo de campos: que em 1985 recebeu com paciência desmesurada o jovem que lhe trazia a “intrepretação visual” em serigrafia de uma de suas transcriações de heráclito – panta rhei / tudo riocorrente –, retribuindo com exemplares autografados da revista “invenção” e com uma conversa oceânica; cuja vasta criação (poesia, tradução e teoria) eu vou sempre rememorar; – a enteléquia incendiada.
destaco três textos essenciais, que recomendo com entusiasmo a todo poeta lato sensu:
a) “a árvore do conhecimento” de humberto maturana e francisco varela: obra-prima dos cientistas chilenos que disseminaram o conceito de “autopoiese” pelo mundo; e um alerta: que a tosca edição brasileira não afugente o leitor! – trata-se de um dos mais claros e bem-articulados ensaios científicos já escritos: da organização do ser vivo ao “linguajar” que descreve a organização do ser vivo; as bases de uma biologia da linguagem e da ética.
b) “a letra e a voz” de paul zumthor: o clássico sobre a criação nomádica, iletrada e performática dos trovadores e jograis da idade média é a melhor introdução que eu conheço ao fazer poético no multimidiático e interativo universo das tecnologias digitais; assim como tudo mais que esse mestre suiço escreveu e jerusa pires ferreira traduziu.
c) “língua e realidade” de vilém flusser: um bate-bola primoroso com os craques wittgenstein e heidegger; seu originalíssimo globo-diagrama – dividindo, entre os extremos do silêncio autêntico e inautêntico, a linguagem em: nada (es), oração, poesia, conversação, conversa fiada, salada de palavras, balbuciar e nada (man) – já justifica a leitura desse livro absolutamente fascinante.
[diagrama de flusser redesenhado por a. v.]
andré vallias é poeta, designer gráfico e produtor de mídia interativa. nasceu em são paulo, em 1963, onde se formou em direito pela usp. vem publicando regularmente seus poemas em exposições, antologias e revistas (impressas e on line), dos quais alguns podem ser vistos no site www.andrevallias.com e na revista eletrônica que edita com o poeta e ensaísta eucanaã ferraz, errática: www.erratica.com.br
08 março 2009
Ademir Assunção à queima-roupa
1) O que é poesia para você?
É saber usar a língua para extrair gemidos, uivos e palavras obscenas das mulheres mais vagabundas.
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Encarar a vida como um leão (ou leoa), e não como um cordeirinho. Não ter medo de tomar porrada. Ler o que os outros já escreveram (de preferência, os mais radicais). E descobrir seu próprio caminho.
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Allen Ginsberg, Paulo Leminski e Rodrigo Garcia Lopes. Poderia citar mais uns 20 ou 50. "Poetas" ou não. Como Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Mário Bortolotto, Laurie Anderson, Augusto de Campos, Patti Smith, Torquato Neto, Marcos Losnak, Frank Zappa, Meredith Monk, Arnaut Daniel, Roberto Piva, Claudio Daniel, Marcabru, Sérgio Leone, Francis Ford Coppola, Van Gogh, Sylvia Plath, Jimmi Hendrix...
Três poemas: “Uivo” (Ginsberg), “Sintonia para Pressa e Presságio” (Leminski), “Zeitgeist” (Rodrigo). Em vez de justificar minhas escolhas, prefiro reproduzir os poemas. Cada um que tire suas conclusões.
UIVO (Allen Ginsberg)
Eu vi as melhores cabeças* da minha geração destruídas pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa, "hipsters" com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite, que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando sobre os tetos das cidades contemplando jazz, que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e viram anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados das casas de cômodos, ue passaram por universidades com os olhos frios e radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de William Blake entre os estudiosos da guerra, que foram expulsos das universidades por serem loucos e publicarem odes obscenas nas janelas do crânio, que se refugiaram em quartos de paredes de pintura descascada em roupa de baixo queimando seu dinheiro em cestas de papel, escutando o Terror através da parede, que foram detidos em suas barbas públicas voltando por Laredo com um cinturão de marijuana para Nova York, que comeram fogo em hotéis mal-pintados ou beberam terebentina em Paradise Alley, morreram ou flagelaram seus torsos noite após noite com sonhos, com drogas, com pesadelos na vigília, álcool e caralhos e intermináveis orgias, incomparáveis ruas cegas sem saída de nuvem trêmula e clarão na mente pulando nos postes dos pólos de Canadá & Paterson, iluminando completamente o mundo imóvel do Tempo intermediário...
(fragmento inicial – tradução de Cláudio Willer)
* Em sua tradução, Willer usa “expoentes”. Eu prefiro “cabeças”, que, na gíria, pode ser utilizada tanto para o masculino quanto para o feminino.
SINTONIA PARA PRESSA E PRESSÁGIO (Paulo Leminski)
Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Sôo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.
Eis a voz, eis o deus, eis a fala
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.
ZEITGEIST (Rodrigo Garcia Lopes)
Nocauteando celebridades disfarçadas de pingüins
Monitorando a muvuca das transações e trapaças alpinistas
Serpenteando entre escadarias cravejadas de citações
Chutando o balde do crepúsculo com o bebê da aurora dentro
Chegando firme na dividida com a mentira, pisando o calo da calúnia
Colecionando estoques de paciência e delatores pederastas
Beliscando morenas de fiberglass e pixels de altíssima definição
Pegando marqueteiros pela orelha, levando o bispo milionário pelo pescoço
Mostrando seu catálogo de golpes de jiu-jitsu para web designers
Apavorando editores de moda com crucifixos de merda
Partindo pra ignorância pra cima das floriculturas
Esfaqueando a manhã e as boas intenções com sua adaga afiada
Pulverizando jogadores de genoma e modelos chipadas
Dando geral nos arquivos adulterados dos tribunais de justiça
Assaltando pipoqueiros metafísicos e banqueiros artistas de fim de semana
Distribuindo pirulitos de ácido para críticos literários
Arrebentando a boca da razão com denúncias inconseqüentes
Estrangulando docemente a tarde carregada de câmeras de vídeo & trance music
Pregando a irresponsabilidade fiscal, e anthrax para todos,
Rifando o shopping lotado de idéias fixas com um grito de jihad
O homem-bomba entra no poema.
Ademir Assunção é poeta e jornalista. Publicou LSD Nô, Zona Branca (poesia), A Máquina Peluda e Adorável Criatura Frankenstein (prosa), entre outros. Lançou o cd de poesia e música Rebelião na Zona Fantasma. Seu livro mais recente é A Musa Chapada, em parceria com o poeta Antonio Vicente Pietroforte e o desenhista Carlos Carah. Tem parcerias gravadas por Itamar Assumpção, Edvaldo Santana e Madan, entre outros. Escreve com freqüência em seu blog Espelunca: http://zonabranca.blog.uol.com.br/
06 março 2009
Luis Serguilha à queima-roupa
[Foto: Jackeline Walendy]
1) O que é poesia para você?
Não aceito qualquer definição de poesia, qualquer técnica na reformulação/conceptualização poética, por isso há que expulsar “o que é a poesia”, os seus sistemas explicativos-teoréticos-interpretativos e expandir/germinar a correnteza da heterogeneidade:____________ QUANDO HÁ POESIA?_____________________
__________(HÁ a substância energética-obscura do mundo)_____________________
Há POESIA quando regressamos ao centro iluminador do desmesurado, à devastação-criação, ao labirinto, à transmigração de signos buscadores da autenticidade secreta, das fecundações hipnóticas, da essência-do-mundo.
Há POESIA quando existe o lugar dramático, a sedução da vertigem, o ritmo do abismo, a energia encantatória-transmutadora, a esfinge e a perscrutação das danças do universo.
Contra todas as doutrinas o Poeta ergue e faz irromper a metamorfose da substância do cosmos, as vozes genésicas do mundo-outro porque no seu corpo há o grito-eco antiquíssimo, indomável, emancipatório que se projecta na busca da unidade perdida-original, no vazio, no não-lugar, no exílio, nas moradas flamejantes como a libertação mais profunda/interior dos cânticos do coração-do-mundo.
Há poesia quando as aberturas cristalográficas das palavras constróem os hinos astrais da transformação da vida, na infinitude hieroglífica: a poesia acontece na força eléctrica-germinativa, nas múltiplas travessias dos ecossistemas, na espontaneidade das vozes, nos espelhos das profundezas da existência______e o poeta resiste como os soldados de Siracusa recitando os versos de Homero para sobreviverem.
Há poesia quando as explosões rítmicas descobrem os cânticos da fertilidade da terra, a incandescência do nada , a materialidade/espiritualidade do ser, o desassossego primitivo da nossa constituição, a interrogação antropofágica, o tempo e o espaço na absoluta renovação imagética, as epifanias infinitas da linguagem. Então há que defrontar olhos-nos-olhos os críticos, académicos, blogueiros que departamentalizam, standartizam , delimitam, classificam estupidamente os poetas e a poesia: porque QUANDO HÁ POESIA a pulsionalidade libertadora reconcilia o relâmpago idiomático-astrológico-polimórfico-polinizador-indecifrável-eruptivo onde surge o recolhimento uterino-febril-nutritivo da palavra até à louca desocultação do mundo.
QUANDO Há POESIA a indeterminação, a ambivalência da realidade humana expandem a ritmicidade dos seus icebergues numa luta entre o consciente e o inconsciente:________ a linguagem primitiva da presença e da ausência forma-se, regenera-se na transformação simultânea , na navegação crepuscular, nas constelações irrepetíveis.
QUANDO Há POESIA a ebulição perceptiva religa a luz da geografia ontológica aos fluxos da heterogeneidade, às fractalizações da reconquista das origens:________o poeta transgride todos os limites ao refazer o vazio , ao imergir no insondável, ao magnetizar-se nos engolfamentos abíssicos do deserto como um instante obscuro e ardente a reactualizar as revelações pré-babélicas, a integridade alucinante do ser, a fulguração enigmática.
NÃO ACEITO DEFINIÇÕES DA POESIA, porque o impulso da matéria poética procura o ilimitado, alimenta-se do informulável , da composição imaginária-radical-interrogativa , da revelação do relâmpago da existência absoluta, do magnetismo da estranheza, da regressão incomensurável do ser à anterioridade da palavra, ao território genesíaco.
Há POESIA quando a liberdade criadora se abre ao mundo, à originalidade, à transgressão instauradora da independência selvática____aqui o poeta tenta denvendar a esfinge, o segredo do universo através das viagens utópicas, do desejo da visão-própria, da eclosão do corpo-resistente que acolhe a disseminação dos sentidos, as alucinantes sensorialidades, o cântico transmissor do livro da NATUREZA.
Há POESIA na transmigração alquímica da luz-sombra, do firmamento-terra, da matéria (in)orgánica-mutante.
QUANDO Há POESIA o silencio anuncia a sua força das efusões puramente iniciáticas sacralizando as atmosferas do inexplicável , do indizível, do não sentido. O SILÊNCIO da invenção profunda destrói a tentativa da DEFINIÇÃO-DA-POESIA, da significabilidade, da tradução , da exegese , porque a sua incubação obscura transforma o poema numa coexistência incontaminada e selvagem.
QUANDO Há POESIA a exteriorização dos caminhos racionalizadores-totalizadores-delimitadores é dizimada pelo desabrochamento do relâmpago da correspondência entre a linguagem, o silêncio, o desconhecido, o (in)visível, a germinalidade da raiz da vida, o abismo-do-devir .
QUANDO Há POESIA a energia , a violência pulsional do deserto, a regressão ao magma primordial propicia-nos a subjectividade infinita , a transgressão dos limites até à vida absoluta, à obscuridade.
Quando HÁ POESIA o sol-abre-se-na-pedra(HÚMUS-ÊXTASE) e leva-nos para lá do verbo até aos espelhamentos-intercepções das outras artes(cinematográficas, pictóricas, escultóricas,musicais, DA DANÇA( como um Corpo em incandescência e espontâneo a recriar as expansões cosmogónicas-mágicas entre as visões de Merce Cunningham, Olga Roriz, Pina baush, Bill T Jones, Pilobolus Dance Theatre, as telas de Pollock, Rothko, o flamenco de Manuel de Falla, os cantares de Giacometti, o trompete de Miles Davis, as (re)montagens de Buñuel-Rosselini-Fellini, as liberdades perceptivas de Elida Tessler, Dione Veiga Vieira, Cutileiro, a revelação do sublime-informulável dos poetas “exilados de Florença”.........) ___________________________quando há poesia__________________________________________________
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
A cosmovisão dos poetas projecta-se rizomaticamente através do grito iniciático_____________este grito de desnudamentos emancipatórios-lunares prismatiza-se na intemporalidade ininterpretável, na essência-integridade do ser.
Reiniciamos continuamente “no fazer poético” como uma cavalgadura da incerteza-orgiástica-fundente ressuscitadora do delírio jazzístico, dos múltiplos reflexos do mundo. O mistério da linguagem e do silêncio projecta em nós a urgência de regressarmos ao inicio selvagem, à pulsação do estonteamento, à inflorescência das alteridades-ipseidades, à polifonia vibratória, ao magma primordial. Todos desejamos a purificação pristina-instintiva das palavras porque caminhamos como “iniciantes”
(nomadismo mitológico-afectivo) na impulsão da parábola, na faiscação/unificação da interioridade/exterioridade________
A interrogação absoluta-tectónica “no inicio do fazer poético” reconcilia-nos nas línguas edénicas: galáxia silenciosa propulsora do nosso desejo sobre-infra a erotização-reencarnação-transmigração-recriação da linguagem cósmica, do Livro da Natureza
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Procuro os poetas que reunificam os cânticos translatórios dos homens, do verbo, do firmamento e da mãe-natureza....
( constituindo o UNO)
Procuro os poetas-devoradores-de-fogo e da substância energética construtora do ritmo do mundo.
Procuro os poetas meteóricos-petrológicos-isossísticos-piroclásticos(do desconhecido)
Procuro os poetas da linguagem da plenitude corporal, da profundidade da matéria.
Procuro os poetas que resistem à barbárie(como diz Eduardo Lourenço “uma só rosa no meio do inferno é o paraíso inteiro”)
Procuro os poetas das imersões do nada, da centelha-obscuridade, da expansão instintiva-imaginal, das transumâncias aborígenes, das visageidades, do transcendentalismo, dos simulacros, “da liberdade livre”. Nesta correnteza relampagueante estou a reler as obras de Oliverio Girondo, Dylan Thomas, Vicente Aleixandre, Arthur Rimbaud, René Char e “sem pontos fixos no espaço” descubro a “actual” poesia brasileira_________ __________outros serão recolhidos porque na poesia a ausência transforma-se em presença e a presença instaura a ausência____fulguração/atracção da aventura do ser-estar-no-mundo_______
Luis Serguilha nasceu em Vila Nova de Famalicão, Portugal. Poeta e ensaísta, suas obras são: O périplo do cacho (1998), O outro (1999), Lorosa´e - Boca de Sândalo (2001), O externo tatuado da visão (2002), O murmúrio livre do pássaro (2003), Embarcações (2004), A singradura do capinador (2005), Hangares do Vendaval (2007), As processionárias (2008), Roberto Piva e Francisco dos Santos: na sacralidade do deserto, na autofagia idiomática-pictórica, no êxtase místico e na violenta condição humana (2008), estes últimos em edições brasileiras. Recebeu em 2000 o Prêmio de Literatura Poeta Júlio Brandão. Participou em vários encontros internacionais de literatura e possui textos publicados em diversas revistas de literatura no Brasil, Espanha e em Portugal, além de outros trabalhos traduzidos em língua espanhola e catalão. Email: lf.serguilha@hotmail.com
04 março 2009
Ricardo Corona à queima-roupa
1) O que é poesia para você?
Tenho pensado na poesia como um lugar (ou não-lugar) de sentidos incessantes, palimpsestos do sensível na frincha da significação, um lugar em que a poesia resiste independentemente do “poético”, do “poema” e do “poeta”. Poesia furtada da literatura, não figurada, mas que assume o seu sentido de ‘poesia’ como um sentido sempre por fazer. Esse lugar é antes da própria poesia, sem sê-lo propriamente poesia, mas distendido em todas as artes. Um lugar de tartamudez e prenhe de silêncios, na fresta da língua: ali, aqui...
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Bashô disse algo sobre isso (veio-me isso, aceito e cito de memória): procure o que os mais velhos não encontraram.
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Hoje (também no sentido de “agora”) uma resposta para essa pergunta:
1) Arturo Carrera (poeta argentino), por causa do seu escrito con un nictógrafo, poema-livro que se compõe na escuridão para o leitor e deseja oferecer-lhe instantes luminosos, iniciando-se com uma entrega: “el escriba ha desaparecido”. Desorbitado, no lugar em que a linguagem está para todos, lugar vazio, no qual também estão as palavras, talvez distraídas, talvez atentas, mas na sua condição ante todos nós, na inadequação permanente entre significado e significante, no embaraço quando se quer atribuir significado ao desconhecido, conforme Lévi-Strauss: “o universo significou bem antes que se começasse saber o que ele significava...”.
2) Édouard Glissant, poeta, antropólogo e filósofo antilhano, autor de um livro-conferência bastante intrigante chamado Introdução a uma poética da diversidade (o único com tradução brasileira, feita por Enilce Albergaria Rocha) e, principalmente, Poétique de la Relation. Glissant, autor que discutimos muito esse ano em aulas instigantes com o professor e tradutor Maurício Mendonça Cardozo. Glissant põe em jogo muitas questões, mas o que mais repercutiu no meu trabalho poético, talvez pelo livro que escrevo no momento, foram suas idéias em relação ao épico. Ajudaram-me a concluir que pode ser possível escrever um épico hoje, mas não um épico no seu formato clássico, cujo movimento, segundo Glissant, movimento auto-afirmativo de culturas e línguas que apreendeu (cooptou) e, portanto, centralizou nesta forma quase todas as expressões e gêneros da antiguidade. Pode-se com isso perceber esta formação “atávica” das culturas, ao lado de procedimentos que levaram ao aniquilamento das línguas, por exemplo. E hoje, em meio à multiplicidade, à diversidade de expressões e formas, fora o que isso tenha de simulacro, de mentira, de ninho de nadas, e por isso, só por isso, tem que ser dito com cautela o que disse em relação ao épico, pois faz parte da formação histórica das culturas, mas, enfim, quero dizer que hoje não faz mais sentido um épico clássico, a feitura de um épico clássico, e abandonemo-lo à legitimidade histórica. Um épico contemporâneo, no meu entender, só pode ser de força centrífuga, num movimento para o fora, para o depois dos gêneros e da unidade, um épico fractal, feito de múltiplas implosões descentralizadoras – talvez eu o chamasse épico por amor ao épico clássico.
3) Raul Bopp, certamente um precursor da etnopoesia no mundo, lançou mão de procedimentos que merecem estudo mais cuidadoso, verdadeiras filigranas da fala. Bopp era um mestre na seqüência de imagens, espécie de orquestração imagética que propicia o clima ideal para o ouvido pensante, tanto na oralidade imagética de “Cobranorato” quanto na genialidade dos jogos sonoros em poemas de menor fôlego. Basta ver/ouvir “Caboclo”: (...) “O escuro apaga as árvores / Fogo desanimou na cozinha / Mia um gatinho magro no terreiro: M-i-s-é-r-i-a” (...). A sugestão da onomatopéia (“miau”) da voz do gato, mas não inscrita, revela a cena cabocla miserável. É a semântica do som. E som é para ouvir.
Ricardo Corona, poeta, tradutor; autor dos livros de poesia Cinemaginário (1999), Tortografia, em parceria com a artista plástica Eliana Borges (2003), Corpo sutil (2005) – todos publicados pela Editora Iluminuras. Na área de poesia sonora, lançou o CD Ladrão de fogo (2001, Medusa) e o livro-disco Sonorizador (Iluminuras, 2007). Organizou a antologia de poesia Outras praias / Other Shores (Iluminuras, 1997). Criou em parceria com Eliana Borges as revistas de poesia e arte Medusa (1998-2000) e Oroboro (2004-2006). Com Joca Wolff, traduziu o livro-poema aA Momento de simetria (Medusa, 2005) e a coletânea Máscara âmbar (Lumme, 2008), de Arturo Carrera. Em 2009, seus livros Cinemaginário e Corpo sutil serão lançados em Portugal, em único volume intitulado Amphibia, pela editora Cosmorama. E-mail: ricardocorona@terra.com.br
02 março 2009
João Rasteiro à queima-roupa
O que é a poesia para você?
Na juventude era sobretudo estranhamento, depois passou a ser brincadeira e prosápia, só que agora é medo e sofrimento. Poderia talvez dizer que a poesia é. Talvez substanciá-la como espanto e descoberta, caos e criação, vida e morte, verbo e substantivo. Poderia até dizer que a poesia é o lugar mais recôndito e primordial da alucinada linguagem em seus mundos e corpus de perplexidade. Poderia talvez, como refere Herberto Helder, dizer que ela é “Esta mão que escreve a ardente melancolia//da idade//é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça, //que à imagem do mundo aberta de têmpora//a têmpora//ateia a sumptuosidade do coração.”
Eu sei, eu estou também plenamente convencido de que hoje cada vez mais, quando olho Gaza, Darfur, Bagdá, ou Tibete, a poesia não serve para nada, como diz o poeta e amigo Ricardo Aleixo, “A poesia não serve para nada, não se compra pão com palavras, mas não se vive sem ela. O dizer poético é a dimensão amplificada da crise do humano. Não acalma. Ao contrário, nos mostra o quanto ao vivo é muito pior”. Eu sei, eu também ambiciono que cada vez mais a poesia seja acto e não produto. Agora, poesia?
Como comparou Samuel Johnson, “Senhor, o que é a poesia? – Bem, senhor, é muito mais fácil dizer o que não é. Todos nós sabemos o que é a luz, mas não é fácil dizer o que é.” Por isso, talvez como afiança Jean Cocteau, “A poesia é uma religião sem esperança”. E no entanto o mundo (os mundos) e a linguagem precisam agora mais do que nunca desta religião para ainda ter esperança.
O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de maneira?
Ousar pensar/sonhar a palavra outra, a transgressão outra, a linguagem outra. E naturalmente deverá ler, ler, ler – ler incessantemente. Depois, escrever, escrever, escrever – escrever/ver/reescrever/ser. Até se viciar no sabor do sangue entre carne e verbo. Por fim, avançar simplesmente, avançar com a expectativa de ser escutado e de se escutar. Ser escutado, mesmo se apenas por alguns – pois será inolvidável e mágico. Até porque, como refere o poeta norte-americano Charles Bernstein, “não interessa a quantidade ou mesmo serem lidos, a árvore não necessita obrigatoriamente de ter alguém debaixo dos ramos à sombra, mas se precisarem, a sombra está lá”.
Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Afinal são duas perguntas numa só. Apontar três poetas é tão difícil como apontar um, seis ou até nove – Homero, Dante, Shakespeare, Camões, Rilk, Lorca, Pound, Breton ou Kavafis. E no entanto atrevo-me, embora por múltiplas e variadas razões, a apontar os seguintes poetas:
Herberto Helder, pelo terramoto que o seu acto criador, decorrente da transgressão que o seu fluxo verbal, respirando uma mitológica e mágica linguagem, carnal, quase animalesca, provocou na poesia portuguesa contemporânea e que nos impele para um poder encantatório e deslumbrante, sufocando-nos de uma emoção sublime. O corpo poético herbertiano mostra-se luminescente gerando luz própria (o que só acontece talvez na genialidade de alguma poesia) como as estrelas, conforme refere Maria Estela Guedes.
T.S.Eliot, possuidor de uma poesia da fragmentação e da desconstrução e uma das mais difíceis de ser criticada e analisada, em permanente questionamento, onde o retorno é uma inevitabilidade. Poesia a um só tempo clássica e moderna, revolucionária e subversiva e reaccionária, realista e metafísica, está na própria raiz que informa e conforma a mentalidade poética de nossos dias. Como nos mostra The Waste Land, o seu poema mais famoso, onde primam mudanças retóricas constantes e a justaposição de estilos contrastantes, a linguagem de Eliot rejeita a noção de poesia enquanto efusão individual e reabilita o quotidiano transcendendo-o brutalmente. É a poesia assente na permanente procura de uma linguagem nova, perturbadora e catalisadora do mundo e seus sonhos.
Fernando Pessoa, poética também da fragmentação, onde se pretende um percurso que conduza a uma profunda reflexão sobre a relação entre verdade, existência e identidade. Poesia que mesmo com algumas contradições, possui uma visão simultaneamente múltipla e unitária da vida. É sem dúvida uma poesia que pode ser encarada como um paradigma da poiésis, quer seja ao nível da poesia como da arte em geral. Poética que é acima de tudo um acto demolidor, desmistificador e psicologicamente, como disse Jorge de Sena, um "indisciplinador de almas", eu digo da linguagem, do mundo(s), do acto de ser corpus de linguagem viva.
Relativamente aos textos, mais uma vez transgrido e aponto cinco textos poético - ensaísticos: A Poética de Aristóteles, Bíblia (com predominância para o Cântico dos Cânticos), A Divina Comédia, de Dante Alighieri, toda a obra de Shakespeare (“o pequeno irmão de deus”, como o apelidou Schwanitz) e A-Poética, de Charles Bernstein, até como contraponto e /ou complemento da Poética de Aristóteles.
João Rasteiro (Coimbra - Portugal, 1965). Poeta e ensaísta. É sócio da Associação Portuguesa de Escritores, membro do Conselho de Redacção da Revista Oficina de Poesia e do Conselho Editorial da revista brasileira Confraria do Vento. Tem poemas publicados em várias Revistas e Antologias em Portugal, Brasil, Colômbia, Itália e Espanha e possui poemas traduzidos para o Espanhol, Italiano, Inglês, Francês e Finlandês. Publicou os livros de poesia, A Respiração das Vértebras (Sagesse, 2001), No Centro do Arco (Palimage, 2003), Os Cílios Maternos (Palimage, 2005) e O Búzio de Istambul (Palimage, 2008). Obteve vários prémios, nomeadamente a Segnalazione di Merito no Concurso Internacionale de Poesia: Publio Virgilio Marone(Itália-2003) e o 1º prémio no Concurso de Poesia e Conto: Cinco Povos Cinco Nações, 2004. Em 2005 integrou a antologia: “Cânticos da Fronteira/Cánticos de la Frontera (Trilce Ediciones – Salamanca). Em 2007 foi um dos poetas participantes nos VI Encontros Internacionais de Poetas de Coimbra, F.L.U.C. - Universidade de Coimbra. Em 2007 integrou a antologia: “Transnatural” (projecto multidisciplinar que tem como tema o Jardim Botânico da Universidade de Coimbra), Editora Artez. Em 2008 participou na exposição e antologia “O Reverso do Olhar” – exposição internacional do surrealismo actual. Em 2009 integrará a antologia: “Portuguesia: Minas entre os povos da mesma língua – antropologia de uma poética”, organizada pelo poeta brasileiro Wilmar Silva e que engloba poéticas de Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique São Tomé e Príncipe, Timor-leste, Goa, Macau e Galiza. Em 2009 a revista “Arquitrave” da Colômbia editará um número especial dedicado à “Nova Poesia Portuguesa”, do qual será o responsável. Em 2001 englobou um conjunto de pessoas de várias áreas artísticas, nomeadamente a poesia, música, dança, pintura, teatro, etc., em BELGAIS (Centro para o estudo das artes, dirigido pela pianista Maria João Pires) trabalhando com crianças das aldeias limítrofes. Prepara-se para editar um novo livro, que se chamará: “Diacrítico”.Vive e trabalha em Coimbra. Mantém em permanente irrupção o fulgor do blogue: http://www.nocentrodoarco.blogspot.com/ Email: rasteiro.j@gmail.com
28 fevereiro 2009
Ronald Augusto à queima-roupa
1) O que é poesia para você?
Não faz muito tempo eu tinha muitas certezas a respeito desta questão. Hoje, tenho não sei quantas dúvidas. Ainda acho que o conceito de invenção pode vir a colaborar numa eventual definição que se ensaie a propósito do gênero, mas já não tenho um apetite tão grande para, digamos assim, me solidarizar de modo indiscriminado com os adeptos da invenção. Aqui e acolá a todo instante se publicam livros que pretendem reunir o melhor da invenção surgido na última estação. Em poesia invenção virou commodity. Ou bolha especulativa. Mas, poesia não é apenas invenção. Em muitos poemas velhos a beleza está mesmo nessa condição do texto que envelheceu onde podia envelhecer. Em poesia a reiteração talvez seja até mais valiosa que a invenção. Uma resposta mais objetiva à pergunta poderia ser proposta nestes termos: não sei, eu escrevo poesia na perspectiva de que cada poema realizado possa levar acesa em seu bojo essa questão.
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
A pergunta incita em cada um de nós o desabrochar de uma figura nefasta: a do conselheiro (hoje em dia já temos uma variação kitsch: a do facilitador). A coisa mais importante a fazer é a seguinte: se o iniciante perceber que não tem jeito para coisa, o melhor é desistir logo. Se a pessoa não atrapalha ou não empata a vida dos outros é certo que deixará um belo legado. Mas, se o iniciante, antes de mais nada, aprendeu a ser um verdadeiro leitor, então ser poeta ou não, para todos os efeitos, tornar-se-á irrelevante.
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Os poetas: Manuel Bandeira, Dante Alighieri e Ezra Pound. Quanto aos textos de referência para o meu trabalho poético, cabe uma observação. Citarei textos de intervenção crítica produzidos por poetas-críticos, pois está implícito, me parece, no item relativo aos poetas de minha predileção que o convívio com suas obras poéticas foi — e ainda é — decisivo do ponto de vista do aprofundamento meu artesanato. E como situo o meu trabalho também dentro da perspectiva do poeta-crítico, acho importante evocar aqueles textos que me ajudaram a desenvolver uma consciência de linguagem e uma visada menos emocionada em relação ao poema, são eles: Intinerário de Pasárgada de Manuel Bandeira; os ensaios de Ezra Pound (reunidos em dois livros, ABC da Literatura e A arte de poesia); e, por fim, a crítica ensaística dos poetas concretos, inclusive o que depois vieram a produzir já na condição, por assim dizer, de ex-concretos — e para não ficar devendo uma referência cito, deles, Haroldo, Augusto e Décio, a Teoria da poesia concreta (textos críticos e manifestos, 1950-1960).
Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, editor e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao rubro (1983), Puya (1987), Kanhamo (1987), Vá de valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No assoalho duro (2007). É editor associado do website www.sibila.com.br. Dá expediente nos blogs: www.poesia-pau.blogspot.com e www.poesiacoisanenhuma.blogspot.com E-mail: ronaldaugustoc@yahoo.com.br
26 fevereiro 2009
Linaldo Guedes à queima-roupa
1) O que é poesia para você?
- Poesia é mais do que um estado de espírito, como apregoam alguns. Poesia é, antes de tudo, uma busca incessante pelo seu EU através da linguagem. Este EU não é apenas o indivíduo em si, mas, principalmente, a forma como ele se relaciona com o mundo. Afinal, nosso EU é forjado dentro do contexto social e cultural em que estamos inseridos. Poesia é também descoberta e surpresa. Descoberta dos potenciais da linguagem, sobretudo. E surpresa ao perceber que somos capazes de construir utopias apenas com palavras.
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
- O iniciante deve perseguir preferencialmente a linguagem. Não a linguagem rebuscada, elitizada. Nem tampouco a linguagem sem consistência, vulgar. Falo de Linguagem como algo maior. Como a fonte de todo o bom poema. Linguagem esta que é adquirida através da leitura de livros e poetas. Sem preconceitos, o iniciante deve visitar autores de todas as escolas literárias, de todas as tendências. A partir daí, começar a criar seu estilo, que é fundamental em qualquer pessoa que se atreva a ser escritor ou poeta. O estilo é o próprio poeta, parodio Buffon. Dono de um estilo, deve passar a ler também teoria e crítica literária, para moldar melhor sua poesia dentro daquele estilo que escolheu para escrever.
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
- Teria vários poetas, mas vou ficar em três brasileiros: Gregório de Matos, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. São três autores de tempos, escolas e épocas diferentes, mas fundamentais para uma melhor compreensão da importância da poesia brasileira no contexto atual. Em Gregório, vejo o pioneirismo poético, aliado ao seu estilo múltiplo, que ia do deboche ao erótico, sem esquecer do religioso e do político. Em Drummond, a multiplicidade de faces em sua poesia, a grandeza da metafísica e a permanência como o grande nome da poesia brasileira do século XX. E em Cabral, a consciência rigorosa da importância da linguagem e o Nordeste ecoando em seus versos com a secura do nosso clima.
Citaria três textos referenciais de cada um desses poetas. De Gregório, o poema "A cada canto um grande conselheiro". Escolho este por representar uma crítica aos governantes da Bahia, mas, também uma crítica, com muita perspicácia, à hipocrisia do indivíduo comum, quando diz “não sabem governar sua cozinha, mas podem governar o mundo inteiro". Como aquele velho ditado de que o macaco nunca dá fé do seu rabo, o poema ironiza com isso, com o fato de a pessoa ficar olhando a vida alheia e não reparar nos seus próprios erros.
De Drummond, eu escolheria o “Poema de sete faces”. Publicado no primeiro livro do poeta, penso que ele representa um resumo de toda a poesia drummondiana. Estão nele o misticismo do anjo torto, o erotismo implícito (“a tarde talvez fosse azul não houvesse tantos desejos”), o cotidiano ( “o bonde passa cheio de pernas...”), a solidão (“o homem atrás do bigode (...) tem poucos – raros – amigos”), o medo (“meu Deus porque me abandonaste”), a metafísica (“Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é o meu coração”) e a busca do prazer (mas essa lua, mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo). É um poema-síntese de todos os principais temas abordados na poesia de Drummond.
E de Cabral, eu indicaria “Tecendo a manhã”, poema que é exemplo claro da perfeição do poeta na construção de sua linguagem poética. "Um galo sozinho não tece a manhã: ele precisará sempre de outros galos”, afirma o poeta. E a partir daí vai tecendo um dos poemas mais perfeitos da literatura brasileira. Não é a manhã que tece entre outros galos, como determina o poema. É Cabral que vai enredando sua teia poética entre outros poetas brasileiros e educando poeticamente, mesmo que para isso tenha que usar e abusar da metáfora da pedra.
Linaldo Guedes nasceu em Cajazeiras (Alto Sertão da Paraíba), em 16 de junho de 1968. É poeta, tendo publicado seu primeiro livro “Os zumbis também escutam blues e outros poemas” (Textoarte Editora), em 1998, e o segundo, “Intervalo Lírico” (Dinâmica Editora), em 2006. Tem poemas seu incluídos em vários sites de literatura. Lançou, ainda, “Singular e Plural na poesia de Augusto dos Anjos” (ensaio, editora A União) e co-organizou os livros “Correio das Artes, 50 anos”, volumes de poesia e contos (Editoras A União e Universitária, 1999) e “Diálogos” (Editora Aboio, 2004). Ganhou dois prêmios seguidos como destaque literário, concedidos pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais da Paraíba, em 1999 e 2000. Recebeu, em 2006, a Medalha do Mérito Cultural, concedida pela Fundação Casa de José Américo. Seu nome está incluído como verbete na Enciclopédia de Literatura Brasileira, organizada por Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa. É também jornalista, tendo atuado pelos principais jornais de João Pessoa, como O Momento, Correio da Paraíba, Norte e A União, além de ter trabalhado, ainda, na TV Tambaú e na Rádio Tabajara FM. Participou de diversos eventos literários, como o Encontro de Interrogações (São Paulo, 2004), VII Bienal Internacional do Livro (Fortaleza, 2006), Colóquio Rumos Literatura - Edição João Pessoa, promovido pelo Itaú Cultural (2007), 4º Festival Recifense de Literatura (Recife, 2007), XII Festival Nacional de Artes (Fenart) (João Pessoa, 2008) e Cartografia Web Literária (São Paulo, 2008). Atualmente edita o caderno de Cultura e o suplemento literário Correio das Artes, ambos do jornal A União. É também professor de Literatura do ensino médio. Tem um blogue na internet desde janeiro de 2004, no seguinte endereço: http://linaldoguedes.blog.uol.com.br
E-mail: linaldoguedes@uol.com.br
24 fevereiro 2009
Gustavo Lopez à queima-roupa
1) O que é poesia para você?
Las definiciones de poesia me parecen siempre problemáticas por que cuando queremos cerrarle el paso para definirla automáticamente da un salto y se convierte en otra cosa, diferente distinta. Pero si me apuran hoy diría que la poesia es una forma de conocimiento, un instrumento de investigación y una practica de las mas copadas para investigar la existencia, el mundo, la historia y lo que esta por venir.
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Dar cuenta de lo que esta mirando.
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
En relación a lo que dije antes podría armar una larga lista de poetas, voy a elegir a tres argentinos para aprovechar además a difundirlos:
JOAQUÍN GIANUZZI
Poética
La poesía no nace.
Está allí, al alcance
de toda boca
para ser doblada, repetida, citada
total y textualmente.
Usted, al despertar esta mañana,
vio cosas, aquí y allá,
objetos, por ejemplo.
Sobre su mesa de luz
digamos que vio una lámpara,
una radio portátil, una taza azul.
Vio cada cosa solitaria
y vio su conjunto.
Todo eso ya tenía nombre.
Lo hubiera escrito así.
¿Necesitaba otro lenguaje,
otra mano, otro par de ojos, otra flauta?
No agregue. No distorsione.
No cambie
la música de lugar.
Poesía es la que se está viendo.
LEONIDAS LAMBORGHINI
Me detengo un momento
por averiguación de antecedentes
trato de solucionar importantísimos
problemas de estado;
vena mía poética susúrrame contracto
planteo, combinación
y remate.
En vez
tú no tienes voz propia
ni virtud
dijo
y escribes sólo para
yo quise decirle mentira mentira
para purificarme
La pista se rodea
de todas las especies, de todos los órdenes
y clases
sobre todo de público
en la primera fila van
los relegados.
Siempre algún gobernante
algún guerrero ilustre, algún
funcionario aventajado
da el puntapié inicial
entonces entro yo
entrando por el aro.
Tome asiento
nadie debe perderse
un espectáculo
abro mi risa negra
a función continuada.
Y a la bartola
haciendo de las mías
en el país del tuerto
es rey.
RICARDO ZELARAYAN
La Gran Salina
La locomotora ilumina la sal inmensa,
los bloques de sal de los costados,
los yuyos mezclados con sal que crecen entre las vías.
Yo vacilo....
y callo....
porque estoy pensando en los trenes de carga
que pasan de noche por la Gran Salina.
La palabra misterio hay que aplastarla
como se aplasta una pulga,
entre los dos pulgares.
La palabra misterio ya no explica nada.
(El misterio es nada y la nada no se explica por sí misma.)
Habría que reemplazar la palabra misterio
(al menos por hoy, al menos por este "poema" )
por lo que yo siento cuando pienso en los trenes de carga
que pasan de noche por la Gran Salina.
La pera trepida en el plato.
La miel se desespera en el frasco cerrado,
para desesperación de las moscas que le acechan posadas al vidrio.
Pero yo no me explico
y hasta ahora nadie ha podido explicarme
por qué me sorprendo pensando
en la Gran Salina.
El hombre de chaleco del salón comedor
se ha quitado los anteojos.
Los anteojos trepidan sobre el mantel de la mesa tendida.
Todo trepida,
todo se estremece,
en el tren que pasa a mediodía por la Gran Salina.
Yo me he sorprendido mirando
la sombra del avión que pasa por la Gran Salina.
Pero eso no explica nada.
Es como una gota que se evapora enseguida.
Hay que distraerse, dicen.
Hay que distraerse mirando y recordando
para tapar el sueño
de la Gran Salina.
Un piano colgado como una araña del hilo
se ha detenido entre los pisos doce y trece...
Un camión pasa cargado de ventiladores de pie
que mueven alegremente sus hélices.
En 1948, en Salta,
fuimos de noche a cazar vizcachas y ranas,
y la conversación se apagó con el fuego del asado,
abrumados como estábamos por el cielo negro
y estrellado.
Nerviosamente encendíamos y apagábamos las linternas
hasta quedarnos sin pilas.
Tampoco puedo explicarme por qué sueño con pilas de linternas,
con pilas para radios a transistores.
Ni por qué sueño con lamparitas de luz,
delicadamente guardadas en sus cajas respectivas.
Ni por qué me sorprendo mirando el filamento roto
de una lamparita quemada.
Nunca he visto...
nunca he podido imaginarme
la lluvia cayendo sobre la Gran Salina.
Yo no tengo objetivos pero me gusta objetivar.
Desde chico intenté cortar una gota de agua en dos
(con una tijera).
Aún hoy intento,
apartando las cosas de la mesa
o ahuyentando amigos,
imitar, imaginarme, la lluvia sobre la Gran Salina.
Tomo una plancha caliente y le salpico gotas de agua.
Pero aunque pueda imaginarme todo,
nunca podré imaginarme
el olor a salina mojada.
Anoche llegué a mi casa a las tres de la mañana.
En la oscuridad, tropecé con un mueble...
y allí nomás me quedé pensando
en lo que no quería pensar...
en lo que creía bien olvidado!
Pero en realidad me estaba escapando
del sueño estremecedor de la Gran Salina.
Y ahora me interrogo a mí mismo
como si estuviera preso y declarara:
"La Gran Salina o Salina Grande
está situada al norte de Córdoba,
cerca (o dentro, no recuerdo)
del límite con Santiago del Estero."
Estoy mirando el mapa...
pero esto no explica nada.
La caja de fósforos queda vacía
a las cuatro de la mañana
y yo me palpo a mí mismo, desesperado,
con el cigarrillo en la boca...
Habría que inventar el fuego, pensarían algunos.
Yo en cambio pienso en los reflejos del tren
que pasa de noche junto al río Salado.
No puedo dormir cuando viajando de noche
sé que tengo a mi derecha
el río Salado.
Paro aún así sigo escapando del gran misterio...
del misterio de la sal inagotable de la Gran Salina.
Recuerdo cuando arrojábamos impunemente naranjas chupadas
al espejo ciejo y enceguecedor de la Gran Salina.
A la siesta, cuando la resolana enceguece más que el sol.
Esperábamos llegar a Tucumán a las siete
y a las dos de la tarde tuvimos que cambiar una rueda
junto a la Gran Salina.
Un diario volaba por el aire...
el sol calcinaba las arrugadas noticias del mundo
del diario que caía sobre la Gran Salina.
Y vi pasar varios trenes
y hasta un jet...
Los pasajeros de los Caravelle
o de los Bac One-Eleven,
no saben que esa mancha azulada,
que a lo mejor están viendo en este mismo momento,
desde ocho mil metros de altura,
esa mancha azulada que permanece durante escasos minutos,
es la Gran Salina,
la Salina Grande.
Pero el jet anda muy alto.
La Gran Salina no conoce su sombra que pasa.
Los pasajeros del jet duermen...
se sienten muy seguros.
En el jet no hay paracaídas.
Los jets no caen. Explotan.
Hace unos años,
un avión que no era un jet volaba, creo, sobre Santa Fe.
De pronto se abrió una puerta
y una camarera tuvo que obedecer calladita
a las sagradas leyes de la física,
y demostrar su inequívoco apego a la ley de la gravedad.
Una ley dura como las piedras metidas en la boca de Demóstenes
que, según dicen, hablaba mucho.
Aquí hay que hacer un minuto de silencio.
Primero, por la dócil camarera sin cama del avión.
Después, por las palabras muertas,
muertas por no decir nada...
misterio, por ejemplo,
que sirve para no explicar lo inexplicable,
lo que yo siento cuando pienso en la Gran Salina,
lo que traté de no pensar un día que caminaba por la Gran Salina
tratando de distraerme y de no pensar dónde estaba,
escuchando una canción de Leo Dan
que pasaba LV12 Radio Aconquija
y el Concierto en sol de Ravel por la filial de Radio Nacional.
¿Qué pensaría Ravel, el finado,
si caminara como yo en ese momento
por la Gran Salina.
Ravel, púdico sentimental,
te imagino tocando el piano que hoy vi colgado
entre el piso 12 y el piso 13.
Sí, pobre Ravel de 1932
con un tumor en la cabeza que ya no lo dejaba componer.
Ravel tocando solo,
de noche (pero eso sí, absolutamente solo)
los "Valses nobles y sentimentales" en medio de la Gran Salina.
Estoy seguro que se hubiera interrumpido
al escuchar el silbato lejano de la locomotora,
para ver el haz de luz a la distancia
y la penumbra sobre la Gran Salina.
Días pasados fui al Hospital.
Hace años yo andaba por allí,
despreocupado y con mi guardapolvo blanco.
Pero ahora, de simple paciente,
sentí el ruidito angustioso
!Trank!
de la máquina de sacar radiografías.
!Y que pase otro! gritó el enfermero.
Pero el otro no podrá explicarme
por qué tengo sed,
por qué voy detrás del agua cautiva de la botella
y de la sal capturada en el salero,
yo, tan luego yo,
capturado en el sueño de la Gran Salina.
Un amigo, alto funcionario estatal,
me ofreció su pase libre para viajar por todo el país.
Total, me dijo, es un pase innominado,
cualquiera lo puede usar...
si se lo presto.
El pase sin nombre me deslumbró
como la marca de la cubierta que leí y releí
cuando cambiábamos la rueda junto a la Gran Salina.
Pero después pensé en Tucumán
(mi segunda provincia)
y en las vértebras azules del Aconquija
horadando las nubes blancas.
Ahora me entero que mi amigo,
el del pase sin nombre,
se separó de la mujer.
Aquí me callo...
Pero el silencio me hace pensar ahora
en lo que no quise pensar cuando miré el pase sin nombre que me ofrecían,
en lo que dejé de pensar hace un momento...
cuando vi pasar el ascensor con una mujer silenciosa
que no me quiso llevar.
Olvidemos el ascensor perdido
y pensemos de nuevo, de frente, en la sal
(cloruro de sodio)
y en el misterio...
Pero como nada es misterio
hagamos una traducción de apuro:
miss Terio
o miss Tedio
o chica rodeada de teros asustados
o algo por el estilo.
Pero no hay distracción que valga.
El ayudante de cocina del vagón comedor
se rasca la cabeza de tanto en tanto
pero sigue pelando papas sin distraerse
en el tren que se acerca a la Gran Salina.
Y el ascensor perdido con la mujer silenciosa
sigue recorriendo kilómetros entre la planta baja
y el piso quince.
El sastre de enfrente que ya comió
se asoma a tomar aire con el metro colgado en el cuello.
Yo pienso en comer, como se ve...
Son exactamente las 14 horas, 8 minutos, 30 segundos.
Y también, no sé por qué,
pienso en el acorazado de bolsillo Graf Spee
que en los comienzos de la última guerra
se suicidó antes que su capitán
frente a Punta del Este.
El Graf Spee yace a treinta metros de profundidad.
Ya nadie se acuerda de él.
Ni siquiera los hombres-rana
que bajaron a explorar sus entrañas.
Pero hasta los hombre-rana
salen a comer a mediodía.
Y a veces, para comer,
sólo se quitan las antiparras y los tubos de oxígeno.
Todavía hay gente que se asombra viendo comer a esos hombres...
con patas de rana.
Los hombres-rana reclaman al mozo la sal que se olvidó!
Dale!... Dale!
Hoy almuerzo con amigos
(si es que no se fueron).
Miraré de costado la sal y pediré pimienta en vez,
porque tengo miedo de quedarme callado,
ya se sabe por qué.
No quiero quedarme callado
ni distraerme,
ya se sabe por qué.
En realidad no se sabe nada
del sueño de la pilas,
de la lluvia sobre la sal,
de la chica del ascensor,
del sastre asomado con el metro colgado
o del tren que pasa de noche indiferente
junto a lo que ya se sabe
y no se sabe.
....................................................
....................................................
....................................................
Hace años creía
que "después del almuerzo es otra cosa"...
es decir que las cosas son otras
después del almuerzo.
Este poema (llamémoslo así),
partido en dos por el almuerzo
y reanudado después, me contradice.
No comí postre.
!Siento la boca salada!
Pero no voy a insistir.
El domingo pasado,
en casa de un amigo poeta,
conocí a un chileno novelista e izquierdista
que se fue a Pekín y que, posiblemente,
no vuelva a ver en mi vida.
Tímidamente, entre cinco porteños y un chileno izquierdista,
metí una frase de Lautréamont
que como buen franchute es uruguayo
y si es uruguayo es entrerriano.
Una frase (salada) para terminar (o interrumpir) este poema:
"Toda el agua del mar no bastaría para lavar una mancha de sangre intelectual"
Gustavo Darío López Bahía Blanca, Argentina.1959. Trabaja desde 1982 en la coordinando acciones de gestión cultural en distintos organismos e instituciones. Desde 1995 dirige la revista-objeto VOX y la colección de libros de poesía ediciones VOX. Es artista plástico y curador. E-mail: senda@criba.edu.ar
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