11 dezembro 2009
09 dezembro 2009
Poesia Brasileira Hoje
[Carlos Felipe Moisés expõe
sua reflexão sobre a poesia contemporânea brasileira, sob os olhares atentos e
quase assustados de Márcio-André e Lúcia Santaella.]
Foto by Giorgio Rocha
Perto do final da primeira
década do século xxi, a poesia brasileira vive um momento esplêndido,
excepcional. Nos últimos 10, 15 anos surgiram no país mais poetas do que nos 30
ou 40 anteriores. Quantidade não é qualidade, sem dúvida, mas no caso creio que
já é, em si, um dado relevante. A fartura de poetas em atividade, hoje, no
país, é indício de uma efervescência, uma ebulição, uma sede, um apetite voraz
por poesia, sem precedentes. E, na minha avaliação, a qualidade tem sido
proporcional. Não tenho lembrança de outro momento em que houvesse, entre nós,
tanta poesia de boa qualidade como nos anos recentes. Nossos poetas, hoje, já
nascem maliciosos, já estreiam com um notável domínio de ofício, uma
considerável bagagem literária.
Antes, prevalecia a figura do
poeta ingênuo, falsamente ingênuo, que acreditava em inspiração ou no improviso
mais ou menos lírico-sentimental. Hoje prevalece o poeta que sabe o que faz, e
é capaz de defendê-lo, não com base no direito que cada um tem de dizer o que
quer, mas com base em argumentos e exemplos concretos, extraídos de uma sólida
tradição, já hoje, de 80 anos. Os poetas surgidos mais recentemente tomam como
referência os grandes mestres do passado, para os quais poesia para valer é
aquela que tem, entranhado nos próprios versos, o necessário espírito crítico,
a consciência crítica da poesia como forma de conhecimento.
Antes, os poetas olhavam para
trás e enxergavam outro poeta, algum que tivesse feito sucesso nos anos
anteriores; hoje, enxergam toda a tradição que os precedeu, remontando aos
pioneiros dos anos 20-30, que aí estão, presentes e vivos, como nunca. A poesia
brasileira, hoje, é uma poesia que tem consciência de sua história, que até
recentemente era uma história linear, feita de “ismos”, “gerações” ou grupos de
pressão, que iam se justapondo, em sucessão cronológica, e cada qual dava por
superado e obsoleto tudo o que tinha acontecido antes. Hoje, essa história é o
que sempre foi: movimentos espiralados, que incessantemente retomam o ponto de
partida, ou seja, os grandes veios abertos pelos pioneiros dos anos 20-30, cada
vez mais atuais.
O resultado é a pluralidade, a
convivência de tendências variadas, não em nome do protocolar “respeito” às
diferenças, ou em nome do politicamente correto, mas em razão da efetiva
diversidade das matrizes que formam a nossa tradição.
Antes, tínhamos dois ou três
suplementos literários, duas ou três revistas, uma ou outra editora que
publicava alguma poesia, de modo que era possível, de um lado, um grupo de
pressão mais persistente impor o seu gosto aos demais; de outro, era possível
acompanhar com segurança o que estava acontecendo – ou era possível fingir ou
até mesmo achar que era isso era tudo.
Hoje, essa ilusão não é mais
possível. Não porque já não se façam mais suplementos literários como
antigamente, mas porque revistas, no papel ou na grande rede, agora temos
dezenas, a cada ano; livros, centenas, a cada cinco ou seis anos. E já não
temos mais como acompanhar o que está acontecendo. Hoje, poetas de todas as
idades dependem muito mais uns dos outros, todos empenhados no propósito comum
de levar adiante uma rica tradição em poesia que, finalmente, 80 anos depois,
atinge a sua plena maturidade.
* * *
Passados uns dias desse
memorável encontro na Casa das Rosas, cuja tônica foi, na avaliação de todos, a
tolerância entre facções outrora litigantes, ocorreu-me que eu poderia ter ido
mais direto ao ponto se, em vez de optar por esse arrazoado mais ou menos
impessoal, eu tivesse apelado, como diria Fernando Pessoa, para “a covardia do
exemplo” (um só bastaria), acompanhado de um depoimento pessoal. O exemplo
poderia ser este:
Ora, a alegria, este pavão
vermelho, está morando em meu quintal agora. Vem pousar como um sol
em meu joelho, quando é estridente em meu quintal a aurora. Clarim de
lacre, este pavão vermelho sobrepuja os pavões que estão lá fora. É uma festa
de púrpura, e o assemelho a uma chama do lábaro da aurora. É o próprio doge a
se mirar no espelho. E a cor vermelha chega a ser sonora neste pavão pomposo e
de chavelho. Pavões lilases possuí outrora. Depois que amei este pavão
vermelho, os meus outros pavões foram-se embora.
A maioria dos presentes talvez
não soubesse identificar o autor; muitos talvez não fizessem ideia de quem foi
Sosígenes Costa (Belmonte, 1901 - Rio de Janeiro, 1968).
Idos de 70, tarde ensolarada – ao
entrar no escritório que José Paulo Paes ocupava na sede da Editora Cultrix,
que ele dirigia com mão de mestre, saudei-o, quase histriônico, com a primeira
estrofe do soneto acima, o 29º dos “Sonetos pavônicos”, que sei de cor, desde
que os li pela primeira vez, no início dos 60, na edição original da Obra
poética, pela Editora Leitura. José Paulo ficou surpreso ao ver que um
jovem poeta, em São Paulo, não só conhecia como admirava Sosígenes Costa, a
ponto de sabê-lo de cor.
Conversamos longamente sobre
poetas brasileiros miseravelmente esquecidos – alguns de vez em quando
lembrados, outros esquecidos para sempre. Conversamos também sobre os que
tiveram o seu momento de glória e logo migraram para o limbo dos que nunca
existiram. Menos de vinte anos depois da auspiciosa e tardia estreia, em 1959,
ali tínhamos Sosígenes Costa, outra vez, um ilustre desconhecido. Zé Paulo
confidenciou-me estar pesquisando, fazia algum tempo, a obra invulgar do poeta
de Belmonte. O resultado foi, uns anos depois, a reedição revista e ampliada de
sua Obra poética, preparada por José Paulo Paes (Cultrix, 1978 –
exatos dez anos após a morte de Sosígenes). O circuito dos admiradores do poeta
baiano, então, ampliou-se consideravelmente, mas hoje, 2009, meros trinta anos
depois, esgotada a reedição, morto há mais de dez anos o próprio Zé Paulo – o
poeta da zona do cacau volta a ser deslembrado.
Mas continua a ser o meu
exemplo, um dos muitos possíveis, de poesia brasileira, hoje. Exemplo de quê?
De que todos podemos orgulhar-nos de uma das mais ricas, férteis e variadas
tradições poéticas do Ocidente, no século xx. Tão rica e tão fértil que
nos damos ao luxo de, periodicamente, esquecer alguns dos melhores – esquecimento
coletivo, já se vê. Cada um de nós tem o seu deslembrado Sosígenes (são
tantos!), mas coletivamente é que são elas. É que estamos todos tramados na
irrisória concepção de história literária que arruma tudo em blocos ou “ismos”
ou “gerações” – essa enganosa sucessão linear de falsos “programas”, onde os
vários Sosígenes, conhecidos de todos, não têm lugar.
Não há como escapar: a situação
“atual” da poesia brasileira (assim tem sido, há décadas) só poderá ser
corretamente avaliada quando for, um dia, encarada à luz de um processo
histórico, longo já de 80 anos, que tem pouco a ver com a linearidade dos
“ismos” ou das doutrinas dominantes, artificialmente forjadas nos bastidores,
mas incondizentes com a multifacetada riqueza dos versos propriamente ditos.
Então nos daremos conta do
“coração selvagem” que pulsa no bojo da nossa tradição poética. A imagem aqui
lembrada (essa do “coração selvagem”) rege toda a trajetória de Clarice
Lispector, mas não diz respeito à poesia. Clarice nem de longe pensava no apagado
e esquecido ofício de poetar. No entanto, diz.
Talvez seja o caso de perguntar:
passaremos a vida, como Clarice, sempre “perto do coração selvagem”, acampados
nas suas imediações? Ou ousaremos um dia entrar na sua posse, para que nossa
poesia – coletivamente – ecoe o variado e heterogêneo batecum desse coração que
desde sempre nos anima?
[Depoimento de Carlos
Felipe Moisés no debate coordenado por Edson Cruz (São Paulo, Casa
das Rosas, 5/12/2009), que contou com a participação dos poetas
Affonso Romano de Sant’Anna, Carlito Azevedo, Márcio-André, Nicolas Behr e
Ricardo Silvestrin.]
08 dezembro 2009
02 dezembro 2009
POESIA NA RAVE
O QUE É POESIA?
organizado por Edson Cruz
Depoimentos de 45 poetas contemporâneos brasileiros, portugueses e hispano-americanos respondendo a três questões essenciais sobre o fazer poético de cada um deles. O lançamento contará com debate, recital e performance.
Sábado, 5 de dezembro
16h – Debate: Os caminhos da poesia contemporânea brasileira: dificuldades e acertos
Com Affonso Romano de Sant'Anna, Carlito Azevedo, Carlos Felipe Moisés, Lúcia Santaella, Márcio-André, Nicolas Behr e Ricardo Silvestrin.
Mediação: Edson Cruz
18h15 – Recital: Poeta em Voz Alta
Com Ademir Assunção + Affonso Romano de Sant'Anna + Carlito Azevedo + Carlos Felipe Moisés + Claudio Daniel + Claudio Willer + Donny Correia + Edson Cruz + Eunice Arruda + Flavio Amoreira + Frederico Barbosa + Luiz Roberto Guedes + Marcelo Ariel + Marcelo Tápia + Márcio-André + Micheliny Verunschk + Nicolas Behr + Reynaldo Bessa + Ricardo Silvestrin + Rodrigo Petronio + Victor Paes + Virna Teixeira.
Mestre de Cerimônia: Frederico Barbosa
21h – Performance multimídia: Boca também toca tambor
com Ricardo Aleixo
O evento faz parte das comemorações pelo aniversário da Casa das Rosas.
A Rave Cultural é um evento da Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura cuja primeira edição foi em dezembro de 2006. Desde então, tornou-se a festa anual em comemoração à reabertura do local como espaço de poesia, homenageando o poeta concreto Haroldo de Campos. Em sua quinta edição, a Rave Cultural prepara grandes atrações que começam às 14h do dia 5 de dezembro e se estendem até as 5h da manhã do dia 6.
RAVE CULTURAL 2009
Sábado e domingo, 5 e 6 de dezembro
programação completa aqui
CASA DAS ROSAS – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura
Diretor: Frederico Barbosa
Av. Paulista, 37 -Bela Vista – Metrô Brigadeiro
Fone: 11 3285-6986/ 3288-9447
Funcionamento: Terça a sexta, das 10h às 22h.
Sábados e domingos, das 10h às 18h.
01 dezembro 2009
Celuzlose 03
27 novembro 2009
Gustavo Felicíssimo à queima-roupa
O que é poesia para você?
O conceito de poesia é muito amplo, o que se transformou em um problema para a grande arte. Parodiando Pessoa eu poderia dizer que há poesia bastante no pôr-do-sol em Itapuã da mesma forma que em um assassinato. Agora, transformar essas matérias em um poema é que são elas.
O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Eu acredito, como Mário de Andrade, que o poeta é um ser fatalizado. Ou seja: nasce-se poeta. E por mais que se leia, caso o leitor não seja um poeta, jamais chegará a sê-lo. No máximo ele poderá ser um grande leitor e, se insistir, um poeta irregular, como a maioria, aliás. Ao poeta, aquele que diz a si mesmo e acredita não poder viver sem poesia, como sugere Rilke, cabe ler de maneira atenta os grandes artesãos do verso de todos os tempos, escolas e nacionalidades. Também ao poeta se pede estudo e dedicação, conhecimento formal, inclusive de versificação. Isso vale, também, àqueles que se dizem vanguardistas ou iconoclastas, pois não se pode desconstruir o que não se sabe construir. Aos admiradores do modernismo paulista eu diria que o verso é livre, mas nunca fora frouxo.
Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?
Os poetas que mais gosto e admiro são: o pernambucano Alberto da Cunha Melo, sobre o qual já produzi vários ensaios, alguns deles publicados pelo Cronópios. Toda a sua obra é importante para mim, mas se tiver que escolher algum poema dele eu escolheria “Casa Vazia”, onde ele diz: Poema nenhum, nunca mais,/ será um acontecimento:/ escrevemos cada vez mais/ para um mundo cada vez menos. Que porrada, hein! Outro poeta de minha admiração é o baiano Ildásio Tavares. Ildásio, além de excelente poeta, possui uma obra vastíssima e é um grande mestre. Muitos poetas aqui da Bahia marcham nos finais de semana para sua casa a fim de se instrumentalizarem. O “home” sabe muito e eu tenho o privilégio da sua amizade. Também escrevi sobre sua obra e de sua lavra eu destaco o poema “Canto do Homem Cotidiano”, do qual trago aqui um excerto: (...) Por isso eu canto a luta sem memória/ Desse homem que perde, e não se ufana/ De no rosário de derrotas várias/ E de omissões, e condições precárias/ Poder contar com uma só vitória/ Que não se exprime nas mentiras tantas/ Espirradas sem medo das gargantas/ Mas sim no que ele vence sem saber/ E não se orgulha, campeão na história/ Da eterna luta de sobreviver. E o que dizer de Bruno Tolentino? Um fora de série total. Um poeta que, como os grandes, sempre primou pela eufonia. Seu poema que mais me agrada é “Nihil Obstat”, que corre assim:
É preciso que a música aparente
no vaso harmonizado pelo oleiro
seja perfeitamente consistente
com o gesto interior, seu companheiro
e fazedor. O vaso encerra o cheiro
e os ritmos da terra e da semente
porque antes de ser forma foi primeiro
humildade de barro paciente.
Deus, que concebe o cântaro e o separa
da argila lentamente, foi fazendo
do meu aprendizado o Seu compêndio
de opacidades cada vez mais claras,
e com silêncios sempre mais esplêndidos
foi limando, aguçando o que escutara.
Gustavo Felicíssimo é poeta, ensaísta e pesquisador. Trabalha com preparação de textos para editoras e poetas. Fundou em Salvador, juntamente com outros poetas, o tablóide literário SOPA, do qual foi seu editor. Edita o blog Sopa de Poesia: www.sopadepoesia.blogspot.com
31 outubro 2009
ELEGIA
levantei ferido por estilhaços
dados flamejantes do real
a morte acompanha-me
em vigília sorri com servos
em seus braços
um sol negro explode
com a fúria de Ísis
a recolher pedaços tenros
na manhã que inicia
mãe assassina cinco filhos
em busca de atenção
pai estupra a própria filha
e torna-se pai-avô
mãe deixa bebê rolar
nos trilhos de um trem em movimento
pai esquece bebê no carro
e sob sol escaldante vai para academia
o tempo para por um átimo
atiraram no dramaturgo
metralharam a poesia do dia a dia
tudo o que é humano
me é estranho
os átomos todos foram maculados
agora só nos resta o vazio
com seus espaços povoados de dor
chorar em nada me alivia
devo acordar do pesadelo
que me atormenta
e lívido merecer o perdão
por pertencer à espécie humana?
25 outubro 2009
Clássicos para quem?
1. Que elementos/instâncias/poderes são fundamentais para a constituição de um clássico, seja em que área for?
Se eu soubesse a resposta já estaria imortalizado em minhas várias existências passadas e futuras (como criador ou como crítico). O que pode se tornar um clássico, em qualquer área, é regido pela música do acaso, da repetição criativa e da seleção (muitas vezes arbitrária) cultural e/ou social.
A natureza da arte, como toda natureza, é paradoxal. Uma obra-prima, prima por ser única e por isso mesmo eterna, mas não foi a primeira tentativa do artista e se ele tivesse mais tempo e paciência não seria a última. É como querer decifrar a “proporção áurea”. Nada sabemos sobre ela (ou melhor, eu é que não sei nada sobre ela, os matemáticos parecem saber algo), mas que ela está presente em várias criações no universo, isso é irrefutável. O que dizer das semelhanças, em vários níveis e camadas de sentido, entre uma catedral gótica e as composições de Bach, ou os desenhos de minha filha de três anos e meio?
Gosto de uma das definições do que seria um Clássico na literatura (que em geral são muito instigantes) feitas pelo escritor Ítalo Calvino: “É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.”
Por outro lado é sempre bom manter a indagação: clássico para quem?
A discussão deve estar sempre aberta.
2. Clássicos podem desaparecer? Exemplo: um disco, livro ou peça de teatro ter sido considerado clássico em uma época para, na seguinte, ser total ou parcialmente esquecido? A atemporalidade é mesmo uma característica inerente ou podem existir clássicos com prazos de validade nem tão perenes?
Me parece que um clássico nunca desaparece. O barulho de fundo é que se altera e muitas vezes oblitera a percepção, o reconhecimento efetivo e até o contato real com determinada obra. Mas ela continua lá, indiferente ao tempo e a turba ensandecida. Às vezes um Indiana Jones da cultura, um outro artista, consegue garimpá-la no limbo das confusões culturais de cada época e apresentá-la, pepita que é, para a recepção ávida e jubilosa do cegos de plantão.
3. Existe idade para entender ou, ao menos, fruir um clássico?
Um clássico é composto de várias camadas que são descascadas aos poucos e nos revelam significados insuspeitados por toda a vida. Quando o lemos aos 15 anos temos uma apreensão, aos 30 outra e aos 80, com certeza, outra. Quem mudou, o clássico ou eu?
4. O que prevalece na leitura de um clássico: o simples prazer ou algum sentimento mais imponderável?
Creio que os dois. Em um momento o prazer de estar lendo algo que transcende as suas questões comezinhas, ou a algo esteticamente irreparável e em outro o sentimento de ter sido tocado por algo da obra que não conseguimos com clareza definir.
5. Por fim, liste obras clássicas nos últimos 50 anos na literatura e na música.
Olha, vou resistir ao canto de sereia de querer colocar o que para mim tem alguma relevância como sendo algo que pudesse ter relevância para outras pessoas. No final das contas cada um tem que fazer o seu próprio caminho, e olha que eu disse fazer, e não trilhar.
E aí leitor cúmplice, quais são as obras que você considera clássicas nos últimos 50 anos?
15 outubro 2009
Hipersexo
Talvez fosse melhor me explicar e dizer que não quero necessariamente as verdinhas que advém do milagre da multiplicação das edições multilingües, não invejo aquele acontecimento que nos torna encantados e encantadores a todos os editores e leitores do planeta, que nos disputam à tapas, beijos e seduções, pagam isto e aquilo, e mais aquilo outro para nos ter em sua casa, casa da palavra, casa do saber, casa de papel.
O verdadeiro sábio diria que há caminhos no céu que só os pássaros conhecem, e como eles sabem se guiar, sem marcas, placas, sem trombadas, tropeços, a não ser quando um helicóptero, claro, pilotado por um humano vesgo os atropela, ou melhor os estraçalha sem nem perceber que acabou de dizimar uma vida, ou a de um bando, mas voltando ao assunto, estou tergiversando, talvez embriagado por este lampejo epifânico de sabedoria que me veio neste instante, o sábio realmente diria que há trajetos nos mares e rios manjadíssimos pelos peixes que de olhos fechados ou abertos, tanto faz, os percorrem e sempre vão onde querem, chegam onde desejam, se é que peixe deseja alguma coisa, peixe não chora vocês já repararam?, embora alguns poetas japoneses em seus tankas, ou seriam tanques, vislumbrem lágrimas nos olhos dos peixes e até dos sapos, mas que eles sofrem, sofrem, talvez, não mais do que nós, que não conhecemos nem caminhos nos céus, nem nos mares, muito menos na terra, a não ser aqueles caminhos áridos e já enlameados de sangue percorridos por todos em nossa triste história recente e sem fim.
Mas vocês querem apostar quanto que esse texto inspiradamente confuso, genial dirão alguns, melodramático dirão outros, carente de revisão, dirão meus amigos revisores, jornalistas de plantão, ilegível, diria Oscar Wilde, esse texto com a pontuação esdrúxula e mal usada como se fosse um copião medíocre de nosso amado Saramago, o mago da língua portuguesa, embora eu prefira lobos a magos, não, não, o verdadeiro mago de nossa língua é o Paulo, sim, o Coelho, o cara realmente é mago, cura, descura e não sara, quer sempre mais, agora quer escrever bem, e até que vem conseguindo, já tem até fardão, mas o que eu ia dizendo é que vocês, leitores atentos, querem apostar quanto, mesmo, de que esse texto que agora termina vai estar na lista dos mais acessados do Google, só porque tem no título a palavra que anima até os santos: SEXO, SEXO, SEXO?
13 outubro 2009
Literatura na Web [bate-papo]
Surrupiei o banner acima do blogue da queridíssima Andréa del Fuego. Depois do papo de amanhã, com a Índigo, o Sandro Saraiva, Euzinho e o Ivan Marques, ela continuará no Sesc Vila Mariana com sua Oficina. Confira:
Criação literária na web
Criação literária (teoria e prática) para publicação em quaisquer suportes digitais. Cada aluno criará seu próprio blog. Com a escritora Andrea Del Fuelgo.
Dias 17, 24 e 31, sábados, das 15h às 18h
SESC Vila Mariana
Rua Pelotas, 141 - Fone: 11 5080-3000
De terça a sexta, das 9h às 21h30
Sábado, domingo e feriado, das 10h às 18h30
email@vilamariana.sescsp.org.br
Visite:
http://www.sescsp.org.br
0800-118220
03 outubro 2009
Como deixei de ser Deus
Trechos do livro:
21
(...): não me importo com as coisas perdidas mas com o tempo perdido. O vento nunca devolveu o meu tempo.
28
: pelo amor de Deus se vai ao inferno. Deus é um bom Diabo.
35
O espírito permanece no tempo e não no espaço. Jamais tive outro cárcere além do meu corpo.
37
O pensamento está sempre além do corpo. A linguagem é a máscara do pensamento.
40
(...): ele reparava atentamente em todo relâmpago que mergulhava no lago; fazia questão de medir a extensão dos raios para desvendar com quantos espelhos se esclarece uma noite. A hora dele não é deste tempo. Ontem ele deu um perdido no passado e correu para se adiantar mas não parou lá adiante como se fosse um antes. Continuou percorrendo, correndo, vivendo e morrendo todo dia. Todo dia é uma memória.
43
(...): se não há sonho, há muitas realidades a serem realizadas. O pesadelo é um oráculo.
48
Ele pôs fim à própria vida por uma questão de princípios. Se, na hora da morte de um homem, toda a compaixão dos outros homens se juntasse para impedi-lo de partir, esse homem não morreria.
86
Eu vivo às cegas. Minha sombra olha por mim.
121
Ontem visitei a cidade em que nasci; ninguém me reconheceu. Deus não se revela ‘no’ mundo.
2041
Não dê ouvidos aos adivinhos. (...) não há um mundo a descobrir.
Como deixei de ser Deus, Ed. Topbooks será lançado em São Paulo, no dia 20 de outubro, terça-feira, Livraria da Vila, Jardins. Al. Lorena, 1731, Jardins – 3062.1063. Nos vemos por lá.
28 setembro 2009
Amador Ribeiro Neto à queima-roupa
1) O que é poesia para você?
Embora seja professor de teoria da poesia e poeta, eu não sei o que é poesia.
Por isto me valho de 2 grandes pensadores:
poesia é palavra na sua mais condensada dimensão (Pound) e
é som, sentido e imagem numa interação semiótica (Jakobson).
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Clareza de pensamentos e consciência de linguagem. Neca de pitibiribas de inspiração. Muito tutano, no duro.
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Poetas: Augusto de Campos, João Cabral de Melo Neto e Caetano Veloso.
Escolhi estes 3 poetas porque o que fazem/fizeram me provocam, me instigam e me incomodam sempre.
Amador Ribeiro Neto é autor, em parceria com Roberto Coura, de "imagens & poemas" (ed. UFPB, joão pessoa, 2008). É organizador e co-autor de "muitos – textos sobre caetano veloso" (ed. orobó, montes claros-mg, no prelo). É autor de “Poemail”, livro de poemas, inédito. Também organizou e é co-autor de "literatura na universidade" (ed. UFPB, joão pessoa). É co-autor de "chico buarque do brasil", organizado por rinaldo de fernandes, rio, garamond; de "quartas histórias", organizado por rinaldo de fernandes, rio, garamond e de "capitu mandou flores", organizado por rinaldo de fernandes, s. paulo: geração editorial, 2008. E-mail: amador.ribeiro@uol.com.br
25 setembro 2009
Poeta Radioativo
Se você ainda não conhece o Márcio-André, corra! O cara tá mandando bem e contaminando tudo que passa pelo seu caminho. Eu já fui contaminado e cooptado: faço parte do conselho da bela revista da Confraria do Vento e logo, logo, sai, pela editora da Confraria, o livro que organizei com poetas contemporâneos respondendo àquelas três questões ingênuas mas nem tanto: o que é poesia? etc.
Confira: www.marcioandre.com e www.confrariadovento.com/
11 setembro 2009
A GRAVIDADE SEM PESO [apontamentos - I]
O ficcionista italiano Italo Calvino deu o mote ao que deverá ser a busca de qualquer projeto literário contemporâneo consistente: a leveza. Calvino coloca a literatura como uma função existencial e a busca da leveza como uma reação ao peso de viver. A leveza como um valor a ser buscado na carpintaria da literatura, na poiésis diária que subtrai com afinco o peso do que é pesado, seja de figuras humanas, corpos celestes, cidades, estruturas da narrativa, ou da própria linguagem.
A leveza poderá emergir quando o autor, associado à precisão e à determinação (nunca ao vago ou aleatório), despojar a linguagem de seu excesso de indumentária e tecer uma escritura sem suspensórios — como diz o poeta Manoel de Barros. Ela poderá ser encontrada nas narrações e descrições que comportem um alto grau de abstração ou pela criação de imagens figurativas da leveza que possam assumir um valor emblemático e gerar possíveis epifanias.
A força do autor contemporâneo reside na recusa da visão direta, assim como a força de Perseu — para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar — sustentou-se sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento e, sobretudo, ao dirigir seu olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, uma imagem capturada no espelho de seu escudo.
Uma bela alegoria da relação do poeta com o mundo, revelou-nos Calvino, e uma lição definitiva do processo de continuar escrevendo, apesar de tudo e de todos.
No século passado, século de duas guerras mundiais, duas bombas atômicas, de Auschwitz-Birkenau, de tantas guerras civis e devastações, se tornou categórica a “missão” do escritor em refletir, questionar e problematizar a vida e o seu mundo. Muitos se transformaram em estátuas no processo e não puderam escapar ao olhar inexorável da Medusa, deixando que o pesadume, a inércia e a opacidade do mundo aderissem à sua escrita, sem encontrar meios de driblá-los.
Na primeira de suas seis propostas para o próximo milênio, Calvino diz:
“Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos...”
Deixa bem claro, Calvino, que esta busca não é uma fuga da realidade do mundo, nem o abraçar inconsciente do sonho e do devaneio. A busca da leveza está associada à agilidade e à capacidade de revelar o imprevisível, de sobrelevar o peso do mundo, demonstrando que sua gravidade detém a chave da leveza.
Calvino lembra uma citação do poeta Paul Valéry que diz: “É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma”.
Uma pluma é tão leve que é levada por qualquer sopro, enquanto o pássaro depende da gravidade do mundo para pairar sobre ele e dirigir o seu bico para o horizonte que lhe aprouver.
Buscar o antigo instante mais leve que o próprio pássaro, como no poema de Cecília Meireles:
Leveza
Cecília Meireles
Leve é o pássaro:
e a sua sombra voante,
mais leve.
E a cascata aérea
de sua garganta,
mais leve.
E o que lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto,
mais leve.
E o desejo rápido
desse mais antigo instante,
mais leve.
E a fuga invisível
do amargo passante,
mais leve.
O escritor contemporâneo, na construção de seu projeto literário, deve ter um plano de vôo (um projeto) com uma estrutura leve como a ossada de um passarinho, cujo objetivo maior seja o de fazer com que o leitor e o texto decolem juntos e, por que não, o próprio autor.
Algumas dicas práticas, referentes ao trabalho com o texto, são sempre bem-vindas. Façamos bom proveito delas:
1) O toque de leveza transforma as frases explícitas do texto em sutilezas que surpreendem e cativam o leitor impelindo-o a continuar na viagem.
2) Aparar as pontas das palavras gastas pelo uso, das frases vazias, das observações desnecessárias e das descrições muito longas.
3) Saber a hora de evitar um adjetivo desnecessário.
4) Saber eliminar um advérbio cujo sentido já está implícito no verbo da frase. Evitar as explicações. O leitor deverá compreender, por si mesmo, a trajetória do texto em voo.
5) Mantê-lo (o leitor) ligado no texto, evitando repetições e remissões.
6) O excesso de gordura e peso de um texto advém de nosso medo pessoal (a escritura não é lugar de uma terapia pessoal), de nossa ansiedade, da pressa (o afã de ser reconhecido, de publicar, de marcar presença) ou da pressão externa (aceitar prazos que não sejam os de sua própria criação).
7) Esvaziar a linguiça (enchê-la qualquer um faz, esvaziá-la com estilo é o desafio). Frases extras diminuem o ritmo e tornam o texto enfadonho.
8) Aprender a reescrever o texto quantas vezes forem necessárias (não esquecer a prática ensinada por João Cabral ou por João Gilberto) para deixá-lo respirar aliviado e airoso. Sim, leveza não é só cortar, mas, também, reescrever, redistribuir palavras, frases, ideias, enfim, reorganizar.
9) Ouvir a melodia do texto e buscar a harmonia necessária. Onde está a tônica, a terça e a quinta de seu texto? A terça é menor ou maior? O acorde precisa de uma sétima menor, uma nona? Você quer realçar o trítono?
10) O ritmo do texto entra em consonância e no compasso da tônica, seja ela uma imagem, uma ideia, uma palavra. Ao ler em voz alta os sons do tecido textual poderão nos alertar para cacofonias e inadequações em vários níveis.
11) Literatura busca ambiguidade, mas não a confusão. De confusão o mundo está cheio. O escritor, assim como o músico, surge para colocar ordem no caos, mesmo que seja uma ordem não reconhecida em um primeiro momento, uma ordem caótica.
12) Ter consciência de que técnica e background (um autor sem vivências, sem leitura, sem o sofrimento, sem a alegria, sem o desespero, pode ser facilmente substituído por uma máquina de produzir textos sem ossatura) são duas coisas totalmente diferentes e igualmente importantes para um escritor.
13) Nunca deixar de buscar um estilo próprio e pessoal de escrita. Parece redundância, mas é a coisa mais difícil de se alcançar. Estar só sem desprezar o mundo e os seres é um exercício digno de um Buda.
Os ossos da escrita são colosso.
08 setembro 2009
LOS 500 AÑOS
ARNULFO ROMERO
HELDER CAMARA
LEONARDO BOFF.
Fragmento de la carta que un grupo de indígenas andinos entregó a Juan Pablo II cuando visitó el Perú en 1985.
“Nosotros, indios de los Andes y de América, decidimos aprovechar la visita de Juan Pablo II para devolverle su Biblia, porque en cinco siglos ella no nos dio ni amor, ni paz, ni justicia. Por favor, tome de nuevo su Biblia y devuélvala a nuestros opresores, porque ellos necesitan sus preceptos morales más que nosotros. Porque, desde la llegada de Cristóbal Colón, se impuso a América, por la fuerza, una cultura, una lengua, una religión y valores propios de Europa...”
Allí quedaron, esperando respuesta:
Máximo Flores, del Movimiento Indio
De Kollasuyo (aimara) y Ramiro Reynaga
Del Movimiento Indio Tupac Katari (quechua),
Y Emmo Valeriano, del Partido Indio (aimara),
Quienes fueron los chasques ante Wojtyla.
Imagino que allí quedaron, como Martín
Fierro esperando la paga (que nunca llegó).
En antesalas silenciosas y ante discretos
Secretarios locales o importados con sonrisas
(y una furia absoluta) que defendieron la paciencia.
Ramiro Reynaga, en conferencia de prensa
Explicó la misiva:
“La Biblia llegó a nosotros como parte
del proyecto colonial impuesto.
Ella fue el arma ideológica de este asalto
Colonialista. La espada española,
Que de día atacaba y asesinaba el cuerpo
De los indios, de noche se convertía en cruz
Que atacaba el alma india.”
Eso dijo.
Otra cosa escribió Stefan Sweig
Apasionado memorialista del Nuevo Mundo
(que en Brasil decidiera apagar su luz)
cuando apuntó: “En el principio fueron
las especias...”
Tomas Diego Bernard (h) escritor
Y cronista argentino, por 1969, escribió
Una razón diferente, cuando, parafraseando
Al evangelista dictaminó: ”En el principio
Fue el indio...”
Las intenciones comerciales del oro
Y de la plata, de las maderas o la especiería,
Se vieron reforzadas con la mano de obra
Barata (llámese: el indio), que luego continuara
(fue error tuyo,Fray Bartolomé de Las Casas)
con el inmundo barco del negrero.
El primer texto escrito en América Latina
De Fray Ramón Pané (en 1498)
Satanizaba las religiones indias.
Por más que Fray Francisco de Vitoria
Afirmase que “los indios son los verdaderos
Dueños de sus tierras y haciendas; como eran
Legítimos sus príncipes, pues, por naturaleza
Nadie es siervo o esclavo...”
Nosotros, al parafrasear escritores,
Indios, sacerdotes, cronistas, lo hacemos
Con un notorio sentimiento de culpa.
Nosotros eliminamos de estas tierras
A los indios. Dígalo Don Frutos,
Dígalo su sobrino Bernab: díganlo
Los estancieros y comerciantes
Que exigieron la persecución y muerte
De todos los charrúas.
Allí quedaron,
Junto a los montes del Salsipuedes,
O exhibidos como fenómenos
En los circos de variedades de París.
En 1958 la Organización Internacional
Del Trabajo, informó: “En la región andina
De América del Sur, existen 7 millones
De indígenas aimarás y quechuas, cuyo nivel
De vida es mera subsistencia: seres
Humanos que han permanecido relegados
Durante siglos, aislados del resto
De sus compatriotas y ajenos a las
Estructuras sociales y económicas nacionales.”
En 1992, la cosa no ha cambiado mayormente.
(En Brasil rozan bosques y ultiman
a los indios). La iglesia sigue visitando “La Casa
Grande” e ignorando la senzala...
“En el principio era el indio..”
No menciones al Paraíso. Y no me vengas
Con el “bon sauvage” de Jean Jacques
Ni aquello de: ”Bienaventurados...”
El pan y el vino en cada mesa,
O haremos un paro general del Espíritu.
Washington Benavides.
16/4/91-6/10/92. Montevideo. Uruguay.
06 setembro 2009
A nova vogal no espaço
[Carlos Emílio C. Lima por Charles Bicalho]
Escrever diário sobre os modos
de autoconstrução dos rabiscos,
transformar pedra em mente útil
ao reacender grito solar de pássaros
em busca por fogueiras,
descrevendo formas de aldeias,
remotas, no ar.
Cada pássaro de forças
aqui tracejado,
garoto cósmico emblemático de clareiras
em um diário de procedimentos gráficos,
inícios riscados com força,
meio desesperados,
à procura do ideograma em transe
da letra copiosa,
rio de peregrinação até à forma
que o pronunciado ovo-som deseja,
novo, nasal silêncio de habitação sonora,
vento da vocalização escrito,
inscrições rupestres em desenho tridimensional
de pré-letra sobre musgosa superficie
de pedra refrescada por um rio
quando um raio em segredo
come no futuro velhas alpercatas de plástico
com fome de meandros de milênios...
Continua a soprar
força de correnteza aérea
sem intervalos
do rio de poder
da letra futura.
Tipologia inovada de rios arcaicos
cria etapas de dobras infinitas
em flutuante branca camisa de algodão
pendurada no varal da propiciatória varanda
durante a procura da exata forma fluvial
da letra a acrescentar a todos os alfabetos,
vento, vento, vento, prosperação.
Na padaria quente, de manhã,
o sol esconde-se dos arados.
Dissolvido em líqüidos e pães
viceja o leopardo da revolta.
Enquanto degusta o espaço-ambiente
o elixir da nova forma,
o leopardo é o trânsito.
Carros urbanos não levam a lugar algum,
sopram vozes-avós do futuro.
Comidas, tortas de moscas, cremes silenciosos de estampido,
cifras inodoras, gestos, gananciosos ruídos.
Oca cerimonial dos universos-flautas,
diziam as espumas do mar.
Inversas palavras ouvidas na padaria torta:
mortas, desafiadas, sempre
desfiadas pelo azul crescente
do mar próximo,
de vozes esvoaçadas,
vindo do por vir,
atacadas pelo Azul comedor,
“azul” com fome de ar,
inoculando sua força contrária.
Anti-matemática.
A criança bebendo um líquido
de localização de antiouro das caixas registradoras
não pronuncia língua interminável
recebida das nuvens do cocar da montanha.
Arara, amarela arara, dedicada à decifração
da teia delicada dos rios do invisível
não pousara no topo da cumeeira
arcomida de madeira da abafada padaria, ainda?
Tribo que ela é a não ser adivinhada
por nuas mastigações centrífugas do nada...
Escre-vendo na mesa sedenta
setenta rabiscos,
indeterminações gráficas fluentes
da futura letra-forma trazida do Orenoco,
cunhada agora sobre chumbo fervente
na oficina tipográfica do porão do casarão
no centro da cidade atlântica,
solidificada em seu tablete lunar,
repetidamente desenhador,
bebendo refrigerantes antiequinociais,
que certo tom de ouro inventa-se
antes do meio-dia.
Um estilo tipológico preciso
a se forjar
que
invade o ar.
Mais buscas-rabiscos
extraídas do contínuo
ecoar permanente da faminta vogal,
Afluentes próximos dos condutos da bilabiação
da vogal atratora de entre-entes,
primícias, arquétipos, rebentam.
O som sem serifas
no belvedere circular
octogonal
do telhado da tipografia
soara
desde os lábios natatórios de peixe
do índio, desatando antes de beijar-me
de repente, atenuando
a compleição do azul vespertino,
côncavo, sobre a cidade,
retendo-a, em seu arco, para sempre,
seu centro ancorado na lagoa
parada do tempo. A cidade
assaltada por torvelinho de pronunciação,
sopro infinito antes do inesperado
beijo selvagem, masculino,
telhas mexidas tipograficamente
em telhados de casas baixas a uma só voz,
na onda de calor da energia
de nova vogal tingindo o céu com estrias
de tigre mais profundo.
Desenhando o achar
com os modos em torno
à fôrma de letra de amor
do beijo circular.
Os três naturais emissários da desconhecida língua
que parece desejar tudo,
(pelas indicações atmosféricas
se organizar em gramática, ventania,
dar-se a descobrir em sintaxe floreal),
dançavam o silêncio recém-habitado
no pátio do terraço sobre o piso quase vivo
da materna cerâmica colorida,
pulsando formas geométricas mântricas,
(antigás),
intensionada mesmo a fecundação ritual do som
acrescentando-se aos outros sonemas
colecionados no mundo,
vogal evolucionária,
vento pós-significado,
inserindo sua lentidão alerta
do espaço nos acontecimentos,
próprio sopro unificado dos lábios do índio
antes de beijar-me um beijo de língua,
beijo-selo de poder, pré-furacão,
letra desejante ardente de floresta:
coisas, seres,fatos modificados
pela súbita vogal que, nova, retinge o céu
e , com a força de seu amarelo-arara,
dele se apodera
ENTÃO
Escrever, escrever bem, sempre,
sempre ir além,
desvestindo-se das vozes antigas
que não pronunciavam o gê.
Se elas, estas vozes-ventos,
se elas vêm do mar,
à procura de suas delicadas inumeráveis nozes,
anteriormente perdidas,
você talvez acaso encontre os sentidos,
as casas do som,
a grande base-tom,
e as pautas de rota,
estes invólucros móveis do Leste,
para seu canto-nutriz voador
nestas agora outras mesmas escritas palavras
abertas mágicas no ar
diretas à mente.
Inovadas - vindas da distância -
pelo sopro da pedra
que escondia o centro de todos os dias no céu.
Carlos Emílio C. Lima é autor de nove livros de prosa de ficção e de um longo ensaio literário e, também, de três livros de poesia ainda inéditos, constando esse poema-conto do livro intitulado Culinária Venusiana. Mestre em Litertura Brasileira pela UFC, editor de diversas publicações culturais, entre elas Arraia Pajéurbe, O Saco Cultural, Cadernos RioArte e o jornal Letras&Artes. Fundador do CEP 20 000, Centro de Experimentação Poética do Rio de Janeiro, das Rodas de Poesia e das ZPLs, Zonas Poéticas Liberadas. E-mail: carlosemiliobarretocorrealima@yahoo.com.br
03 setembro 2009
Tender Surrender
Olha, vou ser pai novamente. Logo, logo, chega o Tom Mitsuo. Sim, meio Tom Zé, meio Tom Jobim, meio Antonio Candido, ginga brasileira com disciplina japonesa, farofa sofisticada pra comer com palitinhos. O sobrenome foi um presente do mestre Daisaku Ikeda. Uma diretriz para a vida do pimpolho, e para a nossa. A Sophia, lembram?, já ganhara a sua: Miki (aquela que lidera de forma esplêndida). Agora, o Tom, ganhou a sua diretriz. Dois caracteres: o de cima significa homem; o de baixo, brilhante. Homem brilhante. Uau!
O curioso é que, preparando as rodas de leitura do SESC Campinas, li o Haroldo de Campos fazendo sua homenagem à síntese do haicai e de toda a escrita japonesa (digo, o kanji). Abramos uma valiosa aspas:
“...Realmente, se tivermos presentes as observações de Fenollosa sobre a estrutura do ideograma (kanji, para o japonês), ou seja, que ‘neste processo de compor, duas coisas conjugadas não produzem uma terceira, mas sugerem alguma relação fundamental entre ambas’, compreenderemos que um ideograma isolado pode ser, em si próprio, pela alta voltagem obtida com a justaposição direta dos elementos, um verdadeiro poema completo:
em chinês ming ou mei = sol + lua, ou como interpreta Pound, ‘processo de luz total’ (em japonês, na forma adjetiva, akarui = brilhante); e, mais ainda, perceberemos que o haicai não é outra senão a manifestação de análoga ‘forma mentis’, desenvolvida em combinações mais elaboradas, se bem que sujeitas sempre, à mais extrema economia de meios.”
Auspicioso. Tom será nosso haicai: meu e de minha querida esposa Eliane. A Sophia Miki pula de felicidade ao saber que seu irmãozinho está chegando. Desde a barriga, Sophia já escutava e gostava da canção que o Luiz Tatit fez para ela - que por sinal se chama "Haicai".
Fico pensando nisso tudo e escutando o blues acima [apesar do lado poser do Steve]: uma doce melancolia rola, uma leve alegria, alguma fúria e doçura... entrego-me a essa docura concentrada. Gotas de um mar morto deslizam nos seios de minha face. Play again, Steve.
02 setembro 2009
Zen e a Crise da Cultura Ocidental
[Texto inédito de Leonardo Boff, Teólogo]
Venho insistindo há tempos que por detrás da crise atual econômico financeira vige uma crise de paradigma civilizatório. De qual civilização? Obviamente se trata da civilização ocidental que já a partir do século XVI foi mundializada pelo projeto de colonização dos novos mundos.
Este tipo de civilização se estrutura na vontade de poder-dominação do sujeito pessoal e coletivo sobre os outros, os povos e a natureza. Sua arma maior é uma forma de racionalidade, a instrumental analítica, que compartimenta a realidade para melhor conhecê-la e assim mais facilmente submetê-la. Depois de quinhentos anos de exercício desta racionalidade, com os inegáveis benefícios trazidos e que encontrou na economia política capitalista sua realização mais cabal, estamos constatando o alto preço que nos cobrou: o aquecimento global induzido, em grande parte, pelo industrialismo ilimitado e a ameaça de uma catástrofe previsível ecológica e humanitária.
Estimo que todos os esforços que se fizerem dentro deste paradigma para melhorar a situação serão insuficientes. Serão sempre mais do mesmo. Temos que mudar para não perecer. É o momento de inspirar-nos em outras civilizações que ensaiaram um modo mais benevolente de habitar o planeta. O que foi bom ontem pode valer ainda hoje.
Tomo como uma das referências possíveis o zen-budismo. Primeiro, porque ele influenciou todo o Oriente. Nascido na Índia, passou à China e chegou ao Japão. Depois, porque penetrou vastamente em estratos importantes do Ocidente e de todo o mundo. O Zen não é uma religião. É uma sabedoria, uma maneira de se relacionar com todas as coisas de tal forma que se busca sempre a justa medida, a superação dos dualismos e a sintonia com o Todo.
A primeira coisa que o zen-budismo faz, é destronar o ser humano de sua pretensa centralidade, especialmente do eu, cerne básico do individualismo ocidental. Ele nunca está separado da natureza, é parte do Todo. Em seguida, procura uma razão mais alta que está para além da razão convencional. Recusa-se a tratar a realidade com conceitos e fórmulas. Concentra-se com a maior atenção possível na experiência direta da realidade assim como a encontra.
“Que é o zen?”, perguntou um discípulo ao mestre. E este respondeu: “as coisas cotidianas; quando tem fome, coma, quando tem sono durma”. “Mas não fazem isso todos os seres humanos normais?” - atalhou o discípulo. “Sim”- respondeu o mestre - “os seres humanos normais quando comem pensam em outra coisa, quando dormem, não pregam o olho porque estão cheios de preocupações”. Que significa esta resposta? Significa que devemos ser totalmente inteiros no ato de comer e totalmente entregues ao ato de dormir. Como já dizia a mística cristã Santa Tereza: “quando galinhas, galinhas, quando jejum, jejum”. Essa é a atitude zen. Ela começa por fazer com extrema atenção as coisas mais cotidianas, como respirar, andar e limpar um prato. Então não há mais dualidade: você é inteiro naquilo que faz. Por isso, obedece à lógica secreta da realidade sem a pretensão de interferir nela. Acolhê-la com o máximo de atenção nos torna integrados porque não nos distraímos com representações e palavras.
Essa atitude faltou ao Ocidente globalizado. Estamos sempre impondo nossa lógica à lógica das coisas. Queremos dominar. E chega um momento em que elas se rebelam, como estamos constatando atualmente. Se queremos que a natureza nos seja útil, então devemos obedecer a ela.
Não deixaremos de produzir e de fazer ciência, mas o faremos com a máxima consciência e em sintonia com o ritmo da natureza. Orientais, ocidentais, cristãos e budistas podem usar o zen da mesma forma que peixes grandes e pequenos podem morar no mesmo oceano. Eis uma outra forma de viver que pode enriquecer nossa cultura em crise.
Leonardo Boff é autor, entre tantos, de Espiritualidade: caminho de realização, Vozes, 2009. Site: http://www.leonardoboff.com/