18 dezembro 2009
Por onde anda o Evandro Affonso Ferreira, catrâmbias?
CATRÂMBIAS!
Diacho ando meio angurriado metade descrente metade arrufadiço totalmente afuazado apre há algo de podre no reino da dinamarca-mídia-literária em que vivemos; dois anos atrás escrevi livrinho de minicontos huifa baba-ovo daqueles louvaminhas cousalousa de todos os tipos-naipes quejandos; gostei claro; sou escritor; pobre-diabo estólido hã careço deles tapinhas nas costas; mas convenhamos dito-cujo puh muita-abelha-pouco-mel diriam amigos malandros dantanho eh-eh; oportuno dizer tertuliamente que elas vespas também fazem favos; retomando assunto digo-repito estou estupidificado com o digamos desprezo amplo-total-irrestrito deles jornalões de todos os quadrantes brasilísticos ao livro CERTEZA DO AGORA de Juliano Garcia Pessanha – autor que contraria meu (como direi?) malthusianismo literário: população-escritor e texto-consistência crescem em proporções diferentes; bangalafumenga aqui nada-neca-neres talento nenhum para costuras ensaísticas; pena; senão escreveria texto à la Carpeaux dizendo a flux: o numem de Juliano é um numem tremendum; a religião de Juliano não é a religião fácil dos bem-pensantes, a quem o seu Deus garante todas as ordens do mundo; o Deus de Juliano faz estremecer os fundamentos do céu e da terra; pena; estou anos-luz dele Otto Maria; mas Juliano Pessanha não; vejamos: Engana-se quem diz que o horror é inominável, o horror só é inominável para quem só conhece as palavras dóceis, para quem só conhece as palavras meios-termos, mas o horror é dizível na hipótese em que você foi visto por um olho-Auschwitz e você, tendo percebido que estava sendo visto-e-dito por um olho-boca-Auschwitz e você, simultaneamente, assistiu tudo isso acontecer. Com uma voz-frieza-de-objeto você pode descrever-mimetizar o que assistiu enquanto era visto e no-me-a-do como algo exterminável; li muito muito mesmo nos últimos tempos; mas não sei escrever sobre livros; Hermann Broch Gontcharov Bruno Schulz Lobo Antunes Jens Peter Jacobsen Hilda Hilst Manganelli mais tantos outros escritores que não vieram ao mundo para agradar a ortodoxia; sabiam-sabem que viver é garimpar pechisbeque hã são os áditos schopenhauerianos da vida; mas diacho nenhum deles me comoveu tanto feito ele Juliano Pessanha; nenhum deles havia sido literalmente taquicárdico; sim páginas tantas toque toque toque arre lá! Coração recauchutado pimba! Exigiu incontinenti auxílio dele Isordil; susto daqueles; finalmente entendia porque Tirésias perdeu a vista por ter olhado Atena; tarde toda quieto dentro de casa andando a furta-passo; vez em quando eh-eh olhava a revezes azabumbado CERTEZA DO AGORA fechado sobre criado-mudo me espreitando heiddegerianamente; abri não apre incor never more; dois dias depois sim enfrentei altivo livro-quase-letal dele magnífico Juliano Garcia Pessanha; huifa; texto traz nelas entrelinhas loucura simulada à la Ulisses aquele que semeava pedra em vez de trigo; texto dele transmigra verbo-presente-eclesiástico pro pretérito; nada havia de novo debaixo do Sol; texto dele Juliano deixa claro-claríssimo-da-silva que não há ensalmos que dê jeito nela insensatez humana; CERTEZA DO AGORA é comovente; é magistral; é devastador; diacho se eu soubesse escrever feito ele Carpeaux terminaria assim: uma vez Heidegger fez uma tentativa de traduzir seu pensamento citando versos de Hölderlin; ele se reconhecia no poeta; Juliano se reconhece no filósofo.
(Trecho do livro Zaratempô, editora 34, 2005, de Evandro Affonso Ferreira)
16 dezembro 2009
Caiu na rede começou
Sem dúvida nenhuma, uma das questões que o advento da internet veio problematizar e questionar, é a noção de autoria. Essa palavrinha/conceito só passou a existir de fato na literatura, se não estou enganado, a partir do século XIX. Antigamente, pelo menos na chamada Idade Média latina, tínhamos uma noção de “autoridade” que estava relacionada diretamente ao discurso, e não à figura de um indivíduo propriamente dito.
No romantismo é que se gera a idéia de um indivíduo artístico, a figura do “gênio” e a do “marginal”. Como propõe Foucault, em sua palestra para a Sociedade Francesa de Filosofia (em 1969), mereceria um estudo mais pormenorizado saber “como é que o autor se individualizou numa cultura como a nossa, que estatuto lhe foi atribuído, a partir de que momento, por exemplo, se iniciaram as pesquisas sobre a autenticidade e atribuição [de autoria], em que sistema de valorização foi o autor julgado, em que momento se começou a contar a vida dos autores de preferência à dos heróis, como é que se instaurou essa categoria fundamental da crítica que é ‘o-homem-e-a-obra’...”
Se não continuo enganado em meu raciocínio, creio que foi o próprio Foucault quem demonstrou que a noção de autoria interessava ao poder estabelecido, a igreja etc., pois com ela se podia melhor aferir as penas e culpas de determinados discursos transgressores.
E eu, nessa pequena reflexão, invisto-me da autoridade e do discurso de Foucault para valorizar a autoria de meu texto, recheado de citações, e quem sabe me livrar das penalidades cabíveis a minha inapetência intelectual, ou, o mais importante, seduzir o incauto leitor aos argumentos de “meu” discurso. Mas, mesmo assim, leitor cúmplice, assinarei meu nome no final, ou no começo como podes bem notar.
Em todo caso, anote bem o que dizia o grande Michel: “Assim que se instaurou um regime de propriedade para os textos, assim que se promulgaram regras estritas sobre os direitos de autor, sobre as relações autores-editores, sobre os direitos de reprodução, etc, – isto é, no final do século XVIII e no início do século XIX –, foi nesse momento que a possibilidade de transgressão própria do ato de escrever adquiriu progressivamente a aura de um imperativo típico da literatura. ...”
Você pode notar, prezado, que eu ainda me dou ao trabalho de colocar aspas (pois sou “intelectualmente honesto”) aos discursos que me aproprio, mesmo você, talvez, não sabendo se a ordem dos fatores, ou da fatura, apresentada poderia mudar drasticamente o produto.
Para finalizar o rosário de citações de Valery-Foucault, anote mais essa – mas me dê o crédito também, pois eu também penso assim, talvez, não com as mesmas palavras, claro – de nosso filósofo de última hora: “...os discursos ‘literários’ já não podem ser recebidos se não forem dotados da função autor: perguntar-se-á a qualquer texto de poesia ou de ficção de onde é que veio, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de que projeto. O sentido que lhe conferirmos, o estatuto ou o valor que lhe reconhecermos dependem da forma como respondermos a estas questões.”
Percebeu, mon chéri, o que isso significa? Se ainda não, então, leia rapidinho o texto de outro grande autor plagiado e diluído mundialmente, o Borges de Pierre Menard. Aquele texto fundamental onde Borges prova que o autor do Quixote não foi o fidalgo Cervantes.
Agora que já enchi bastante a lingüiça desta página em branco, devo dizer que esse palavrório todo é para sugerir a leitura do livro Caiu na rede acabou, de Cora Ronai. O livro já é antigo (aos padrões velozes dos novos tempos), mas o tema atualíssimo.
Ela tenta entender e analisar a inocência, ou a cara-de-pau de muitos que repassam textos, na internet, como se fossem seus, ou de autores consagrados, omitindo, ou rasurando, a autoria real do texto.
Dê uma conferida aqui.
11 dezembro 2009
Poetas à queima-roupa
Ainda que todas as artes tenham a sua especificidade e complexidade, os escritores — e, particularmente, os poetas — acreditam que a sua seja a mais complexa e inescrutável de todas. Bafejados pelas musas, os escritores são os seres mais suscetíveis do planeta. E os poetas, minha turma preferida, são a essência cintilante do que denominamos escritor. E dá-lhe suscetibilidade, pois eles carregam a responsabilidade, ou a pretensão, de serem as antenas da raça. E, cá pra nós, muitos realmente o são.
Se você é peitudo o suficiente e formula uma questão simples como esta: “o que é literatura?”, eles (os escritores) respondem como fazia Louis Armstrong quando lhe perguntavam o que é jazz: “Se você não sabe o que é jazz, então não vale a pena eu tentar explicar”. E ficamos por isso mesmo.
Pergunte a um poeta cioso de seu ofício: o que é poesia? Tem que ser à queima-roupa. Sacar rapidamente e desaparecer enquanto ele estiver perplexo e abalado. Antes de ele se recompor do primeiro balaço, volte e dê mais alguns tiros sem misericórdia para garantir o serviço: o que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?, e, cite-nos três poetas e três textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Se Paulo Leminski estivesse vivo ele responderia (como de fato o fez, homenageando o poeta Manoel de Barros que em seu poema “Sabiá com trevas” diz: “o poema é antes de tudo um inutensílio”), sem pestanejar, com um golpe de caratê: “a poesia é um inestimável inutensílio”. E continuaria: “fazemos as coisas úteis para ter acesso a estes dons absolutos e finais.” Kiai! E não daria chance para as duas próximas perguntas.
Felizmente, estamos em época de internet e cibercultura. Pudemos enviar as afrontas por e-mail e aguardar, protegidos e ansiosos, as respostas. Se viessem. E elas vieram.
O projeto originou-se com essas reflexões quase pueris no intuito de satisfazer a curiosidade de estudantes, oficineiros e iniciantes no trabalho apurado com a palavra. O resultado seria (e foi) postado no blogue sambaquis.blogspot.com. Mas, afinal de contas, quem é que não se fez essas perguntas em algum momento, ou que não gostaria de saber como seu poeta dileto as responderia?
Alguns poetas silenciaram olimpicamente. Outros consideraram a primeira pergunta quase ofensiva. Mas, para minha surpresa, muitos poetas com quilometragem e obra consolidada responderam de forma generosa e corajosa.
À medida que as respostas e comentários foram chegando, percebemos que estávamos compondo um calidoscópio reflexivo do fazer poético contemporâneo, em sua imensa variedade de perspectivas e de fazeres.
Para adequação ao tamanho da edição, tivemos que deixar várias respostas de fora desta amostragem. O que nos leva a pensar na possibilidade de um segundo volume, pois respostas instigantes continuam a chegar.
Esperamos que as reflexões compiladas neste livro satisfaçam e reverberem no leitor sensível aos mistérios da criação poética (e no poeta que inicia sua trajetória) mas, principalmente que os libere para continuar a pesquisar, questionar e a tentar novos caminhos, pois, no âmbito da criação literária não há verdades absolutas. As musas, várias em suas manifestações, agradecem.
Se todo poema atualiza uma possível teoria da criação, o poeta quando instado a refletir sobre o (seu) fazer poético apresenta-nos, de bandeja, aspectos fundamentais de sua práxis, de sua poiésis, de seu paideuma, enfim, de sua índole poética.
A poesia é de longe, pelo menos para os poetas, a linguagem de maior potência de significação (“a mais condensada forma de expressão verbal”, dizia Pound), e não é de espantar a variedade de percepções, de leituras, de idiossincrasias, de práticas que permeiam a poética contemporânea e, evidente, a sua recepção. Tão diversas como o são os próprios seres e seus interesses.
Roland Barthes foi um dos teóricos que caracterizaram a linguagem poética como sendo um desvio consciente e sistemático da norma linguística. Podemos acrescentar que não só da norma linguística. A linguagem poética prima por desviar-se de qualquer tipo de normalidade, de adequação social, histórica, mercadológica e existencial. Pelo menos o que costumamos chamar — os envolvidos com o fazer poético — de poesia digna de nota.
O escritor norte-americano Randall Jarrel dizia de forma jocosa que um poeta poderá amanhã de manhã acordar famoso por ter escrito uma novela ou matado sua esposa, mas não por ter escrito um poema. Ele não contava com a possibilidade de um poeta acordar famoso por ter escrito uma canção. E menos ainda com a possibilidade desta canção ter resultado em um bom poema.
Como diz o poeta, filósofo e compositor popular Antonio Cicero, em suas respostas, citando Montaigne: “é mais fácil produzir poesia do que conhecê-la”. Bem, produzir boa poesia não nos parece ser tão fácil assim. Mas isso é história para outro projeto.
[Texto de apresentação do livro "O que é poesia?", de Edson Cruz, editado pela Confraria do Vento/Calibán]
09 dezembro 2009
Poesia Brasileira Hoje
[Carlos Felipe Moisés expõe
sua reflexão sobre a poesia contemporânea brasileira, sob os olhares atentos e
quase assustados de Márcio-André e Lúcia Santaella.]
Foto by Giorgio Rocha
Perto do final da primeira
década do século xxi, a poesia brasileira vive um momento esplêndido,
excepcional. Nos últimos 10, 15 anos surgiram no país mais poetas do que nos 30
ou 40 anteriores. Quantidade não é qualidade, sem dúvida, mas no caso creio que
já é, em si, um dado relevante. A fartura de poetas em atividade, hoje, no
país, é indício de uma efervescência, uma ebulição, uma sede, um apetite voraz
por poesia, sem precedentes. E, na minha avaliação, a qualidade tem sido
proporcional. Não tenho lembrança de outro momento em que houvesse, entre nós,
tanta poesia de boa qualidade como nos anos recentes. Nossos poetas, hoje, já
nascem maliciosos, já estreiam com um notável domínio de ofício, uma
considerável bagagem literária.
Antes, prevalecia a figura do
poeta ingênuo, falsamente ingênuo, que acreditava em inspiração ou no improviso
mais ou menos lírico-sentimental. Hoje prevalece o poeta que sabe o que faz, e
é capaz de defendê-lo, não com base no direito que cada um tem de dizer o que
quer, mas com base em argumentos e exemplos concretos, extraídos de uma sólida
tradição, já hoje, de 80 anos. Os poetas surgidos mais recentemente tomam como
referência os grandes mestres do passado, para os quais poesia para valer é
aquela que tem, entranhado nos próprios versos, o necessário espírito crítico,
a consciência crítica da poesia como forma de conhecimento.
Antes, os poetas olhavam para
trás e enxergavam outro poeta, algum que tivesse feito sucesso nos anos
anteriores; hoje, enxergam toda a tradição que os precedeu, remontando aos
pioneiros dos anos 20-30, que aí estão, presentes e vivos, como nunca. A poesia
brasileira, hoje, é uma poesia que tem consciência de sua história, que até
recentemente era uma história linear, feita de “ismos”, “gerações” ou grupos de
pressão, que iam se justapondo, em sucessão cronológica, e cada qual dava por
superado e obsoleto tudo o que tinha acontecido antes. Hoje, essa história é o
que sempre foi: movimentos espiralados, que incessantemente retomam o ponto de
partida, ou seja, os grandes veios abertos pelos pioneiros dos anos 20-30, cada
vez mais atuais.
O resultado é a pluralidade, a
convivência de tendências variadas, não em nome do protocolar “respeito” às
diferenças, ou em nome do politicamente correto, mas em razão da efetiva
diversidade das matrizes que formam a nossa tradição.
Antes, tínhamos dois ou três
suplementos literários, duas ou três revistas, uma ou outra editora que
publicava alguma poesia, de modo que era possível, de um lado, um grupo de
pressão mais persistente impor o seu gosto aos demais; de outro, era possível
acompanhar com segurança o que estava acontecendo – ou era possível fingir ou
até mesmo achar que era isso era tudo.
Hoje, essa ilusão não é mais
possível. Não porque já não se façam mais suplementos literários como
antigamente, mas porque revistas, no papel ou na grande rede, agora temos
dezenas, a cada ano; livros, centenas, a cada cinco ou seis anos. E já não
temos mais como acompanhar o que está acontecendo. Hoje, poetas de todas as
idades dependem muito mais uns dos outros, todos empenhados no propósito comum
de levar adiante uma rica tradição em poesia que, finalmente, 80 anos depois,
atinge a sua plena maturidade.
* * *
Passados uns dias desse
memorável encontro na Casa das Rosas, cuja tônica foi, na avaliação de todos, a
tolerância entre facções outrora litigantes, ocorreu-me que eu poderia ter ido
mais direto ao ponto se, em vez de optar por esse arrazoado mais ou menos
impessoal, eu tivesse apelado, como diria Fernando Pessoa, para “a covardia do
exemplo” (um só bastaria), acompanhado de um depoimento pessoal. O exemplo
poderia ser este:
Ora, a alegria, este pavão
vermelho, está morando em meu quintal agora. Vem pousar como um sol
em meu joelho, quando é estridente em meu quintal a aurora. Clarim de
lacre, este pavão vermelho sobrepuja os pavões que estão lá fora. É uma festa
de púrpura, e o assemelho a uma chama do lábaro da aurora. É o próprio doge a
se mirar no espelho. E a cor vermelha chega a ser sonora neste pavão pomposo e
de chavelho. Pavões lilases possuí outrora. Depois que amei este pavão
vermelho, os meus outros pavões foram-se embora.
A maioria dos presentes talvez
não soubesse identificar o autor; muitos talvez não fizessem ideia de quem foi
Sosígenes Costa (Belmonte, 1901 - Rio de Janeiro, 1968).
Idos de 70, tarde ensolarada – ao
entrar no escritório que José Paulo Paes ocupava na sede da Editora Cultrix,
que ele dirigia com mão de mestre, saudei-o, quase histriônico, com a primeira
estrofe do soneto acima, o 29º dos “Sonetos pavônicos”, que sei de cor, desde
que os li pela primeira vez, no início dos 60, na edição original da Obra
poética, pela Editora Leitura. José Paulo ficou surpreso ao ver que um
jovem poeta, em São Paulo, não só conhecia como admirava Sosígenes Costa, a
ponto de sabê-lo de cor.
Conversamos longamente sobre
poetas brasileiros miseravelmente esquecidos – alguns de vez em quando
lembrados, outros esquecidos para sempre. Conversamos também sobre os que
tiveram o seu momento de glória e logo migraram para o limbo dos que nunca
existiram. Menos de vinte anos depois da auspiciosa e tardia estreia, em 1959,
ali tínhamos Sosígenes Costa, outra vez, um ilustre desconhecido. Zé Paulo
confidenciou-me estar pesquisando, fazia algum tempo, a obra invulgar do poeta
de Belmonte. O resultado foi, uns anos depois, a reedição revista e ampliada de
sua Obra poética, preparada por José Paulo Paes (Cultrix, 1978 –
exatos dez anos após a morte de Sosígenes). O circuito dos admiradores do poeta
baiano, então, ampliou-se consideravelmente, mas hoje, 2009, meros trinta anos
depois, esgotada a reedição, morto há mais de dez anos o próprio Zé Paulo – o
poeta da zona do cacau volta a ser deslembrado.
Mas continua a ser o meu
exemplo, um dos muitos possíveis, de poesia brasileira, hoje. Exemplo de quê?
De que todos podemos orgulhar-nos de uma das mais ricas, férteis e variadas
tradições poéticas do Ocidente, no século xx. Tão rica e tão fértil que
nos damos ao luxo de, periodicamente, esquecer alguns dos melhores – esquecimento
coletivo, já se vê. Cada um de nós tem o seu deslembrado Sosígenes (são
tantos!), mas coletivamente é que são elas. É que estamos todos tramados na
irrisória concepção de história literária que arruma tudo em blocos ou “ismos”
ou “gerações” – essa enganosa sucessão linear de falsos “programas”, onde os
vários Sosígenes, conhecidos de todos, não têm lugar.
Não há como escapar: a situação
“atual” da poesia brasileira (assim tem sido, há décadas) só poderá ser
corretamente avaliada quando for, um dia, encarada à luz de um processo
histórico, longo já de 80 anos, que tem pouco a ver com a linearidade dos
“ismos” ou das doutrinas dominantes, artificialmente forjadas nos bastidores,
mas incondizentes com a multifacetada riqueza dos versos propriamente ditos.
Então nos daremos conta do
“coração selvagem” que pulsa no bojo da nossa tradição poética. A imagem aqui
lembrada (essa do “coração selvagem”) rege toda a trajetória de Clarice
Lispector, mas não diz respeito à poesia. Clarice nem de longe pensava no apagado
e esquecido ofício de poetar. No entanto, diz.
Talvez seja o caso de perguntar:
passaremos a vida, como Clarice, sempre “perto do coração selvagem”, acampados
nas suas imediações? Ou ousaremos um dia entrar na sua posse, para que nossa
poesia – coletivamente – ecoe o variado e heterogêneo batecum desse coração que
desde sempre nos anima?
[Depoimento de Carlos
Felipe Moisés no debate coordenado por Edson Cruz (São Paulo, Casa
das Rosas, 5/12/2009), que contou com a participação dos poetas
Affonso Romano de Sant’Anna, Carlito Azevedo, Márcio-André, Nicolas Behr e
Ricardo Silvestrin.]
08 dezembro 2009
02 dezembro 2009
POESIA NA RAVE
O QUE É POESIA?
organizado por Edson Cruz
Depoimentos de 45 poetas contemporâneos brasileiros, portugueses e hispano-americanos respondendo a três questões essenciais sobre o fazer poético de cada um deles. O lançamento contará com debate, recital e performance.
Sábado, 5 de dezembro
16h – Debate: Os caminhos da poesia contemporânea brasileira: dificuldades e acertos
Com Affonso Romano de Sant'Anna, Carlito Azevedo, Carlos Felipe Moisés, Lúcia Santaella, Márcio-André, Nicolas Behr e Ricardo Silvestrin.
Mediação: Edson Cruz
18h15 – Recital: Poeta em Voz Alta
Com Ademir Assunção + Affonso Romano de Sant'Anna + Carlito Azevedo + Carlos Felipe Moisés + Claudio Daniel + Claudio Willer + Donny Correia + Edson Cruz + Eunice Arruda + Flavio Amoreira + Frederico Barbosa + Luiz Roberto Guedes + Marcelo Ariel + Marcelo Tápia + Márcio-André + Micheliny Verunschk + Nicolas Behr + Reynaldo Bessa + Ricardo Silvestrin + Rodrigo Petronio + Victor Paes + Virna Teixeira.
Mestre de Cerimônia: Frederico Barbosa
21h – Performance multimídia: Boca também toca tambor
com Ricardo Aleixo
O evento faz parte das comemorações pelo aniversário da Casa das Rosas.
A Rave Cultural é um evento da Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura cuja primeira edição foi em dezembro de 2006. Desde então, tornou-se a festa anual em comemoração à reabertura do local como espaço de poesia, homenageando o poeta concreto Haroldo de Campos. Em sua quinta edição, a Rave Cultural prepara grandes atrações que começam às 14h do dia 5 de dezembro e se estendem até as 5h da manhã do dia 6.
RAVE CULTURAL 2009
Sábado e domingo, 5 e 6 de dezembro
programação completa aqui
CASA DAS ROSAS – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura
Diretor: Frederico Barbosa
Av. Paulista, 37 -Bela Vista – Metrô Brigadeiro
Fone: 11 3285-6986/ 3288-9447
Funcionamento: Terça a sexta, das 10h às 22h.
Sábados e domingos, das 10h às 18h.
01 dezembro 2009
Celuzlose 03
27 novembro 2009
Gustavo Felicíssimo à queima-roupa
O que é poesia para você?
O conceito de poesia é muito amplo, o que se transformou em um problema para a grande arte. Parodiando Pessoa eu poderia dizer que há poesia bastante no pôr-do-sol em Itapuã da mesma forma que em um assassinato. Agora, transformar essas matérias em um poema é que são elas.
O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Eu acredito, como Mário de Andrade, que o poeta é um ser fatalizado. Ou seja: nasce-se poeta. E por mais que se leia, caso o leitor não seja um poeta, jamais chegará a sê-lo. No máximo ele poderá ser um grande leitor e, se insistir, um poeta irregular, como a maioria, aliás. Ao poeta, aquele que diz a si mesmo e acredita não poder viver sem poesia, como sugere Rilke, cabe ler de maneira atenta os grandes artesãos do verso de todos os tempos, escolas e nacionalidades. Também ao poeta se pede estudo e dedicação, conhecimento formal, inclusive de versificação. Isso vale, também, àqueles que se dizem vanguardistas ou iconoclastas, pois não se pode desconstruir o que não se sabe construir. Aos admiradores do modernismo paulista eu diria que o verso é livre, mas nunca fora frouxo.
Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?
Os poetas que mais gosto e admiro são: o pernambucano Alberto da Cunha Melo, sobre o qual já produzi vários ensaios, alguns deles publicados pelo Cronópios. Toda a sua obra é importante para mim, mas se tiver que escolher algum poema dele eu escolheria “Casa Vazia”, onde ele diz: Poema nenhum, nunca mais,/ será um acontecimento:/ escrevemos cada vez mais/ para um mundo cada vez menos. Que porrada, hein! Outro poeta de minha admiração é o baiano Ildásio Tavares. Ildásio, além de excelente poeta, possui uma obra vastíssima e é um grande mestre. Muitos poetas aqui da Bahia marcham nos finais de semana para sua casa a fim de se instrumentalizarem. O “home” sabe muito e eu tenho o privilégio da sua amizade. Também escrevi sobre sua obra e de sua lavra eu destaco o poema “Canto do Homem Cotidiano”, do qual trago aqui um excerto: (...) Por isso eu canto a luta sem memória/ Desse homem que perde, e não se ufana/ De no rosário de derrotas várias/ E de omissões, e condições precárias/ Poder contar com uma só vitória/ Que não se exprime nas mentiras tantas/ Espirradas sem medo das gargantas/ Mas sim no que ele vence sem saber/ E não se orgulha, campeão na história/ Da eterna luta de sobreviver. E o que dizer de Bruno Tolentino? Um fora de série total. Um poeta que, como os grandes, sempre primou pela eufonia. Seu poema que mais me agrada é “Nihil Obstat”, que corre assim:
É preciso que a música aparente
no vaso harmonizado pelo oleiro
seja perfeitamente consistente
com o gesto interior, seu companheiro
e fazedor. O vaso encerra o cheiro
e os ritmos da terra e da semente
porque antes de ser forma foi primeiro
humildade de barro paciente.
Deus, que concebe o cântaro e o separa
da argila lentamente, foi fazendo
do meu aprendizado o Seu compêndio
de opacidades cada vez mais claras,
e com silêncios sempre mais esplêndidos
foi limando, aguçando o que escutara.
Gustavo Felicíssimo é poeta, ensaísta e pesquisador. Trabalha com preparação de textos para editoras e poetas. Fundou em Salvador, juntamente com outros poetas, o tablóide literário SOPA, do qual foi seu editor. Edita o blog Sopa de Poesia: www.sopadepoesia.blogspot.com
31 outubro 2009
ELEGIA
levantei ferido por estilhaços
dados flamejantes do real
a morte acompanha-me
em vigília sorri com servos
em seus braços
um sol negro explode
com a fúria de Ísis
a recolher pedaços tenros
na manhã que inicia
mãe assassina cinco filhos
em busca de atenção
pai estupra a própria filha
e torna-se pai-avô
mãe deixa bebê rolar
nos trilhos de um trem em movimento
pai esquece bebê no carro
e sob sol escaldante vai para academia
o tempo para por um átimo
atiraram no dramaturgo
metralharam a poesia do dia a dia
tudo o que é humano
me é estranho
os átomos todos foram maculados
agora só nos resta o vazio
com seus espaços povoados de dor
chorar em nada me alivia
devo acordar do pesadelo
que me atormenta
e lívido merecer o perdão
por pertencer à espécie humana?
25 outubro 2009
Clássicos para quem?
1. Que elementos/instâncias/poderes são fundamentais para a constituição de um clássico, seja em que área for?
Se eu soubesse a resposta já estaria imortalizado em minhas várias existências passadas e futuras (como criador ou como crítico). O que pode se tornar um clássico, em qualquer área, é regido pela música do acaso, da repetição criativa e da seleção (muitas vezes arbitrária) cultural e/ou social.
A natureza da arte, como toda natureza, é paradoxal. Uma obra-prima, prima por ser única e por isso mesmo eterna, mas não foi a primeira tentativa do artista e se ele tivesse mais tempo e paciência não seria a última. É como querer decifrar a “proporção áurea”. Nada sabemos sobre ela (ou melhor, eu é que não sei nada sobre ela, os matemáticos parecem saber algo), mas que ela está presente em várias criações no universo, isso é irrefutável. O que dizer das semelhanças, em vários níveis e camadas de sentido, entre uma catedral gótica e as composições de Bach, ou os desenhos de minha filha de três anos e meio?
Gosto de uma das definições do que seria um Clássico na literatura (que em geral são muito instigantes) feitas pelo escritor Ítalo Calvino: “É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.”
Por outro lado é sempre bom manter a indagação: clássico para quem?
A discussão deve estar sempre aberta.
2. Clássicos podem desaparecer? Exemplo: um disco, livro ou peça de teatro ter sido considerado clássico em uma época para, na seguinte, ser total ou parcialmente esquecido? A atemporalidade é mesmo uma característica inerente ou podem existir clássicos com prazos de validade nem tão perenes?
Me parece que um clássico nunca desaparece. O barulho de fundo é que se altera e muitas vezes oblitera a percepção, o reconhecimento efetivo e até o contato real com determinada obra. Mas ela continua lá, indiferente ao tempo e a turba ensandecida. Às vezes um Indiana Jones da cultura, um outro artista, consegue garimpá-la no limbo das confusões culturais de cada época e apresentá-la, pepita que é, para a recepção ávida e jubilosa do cegos de plantão.
3. Existe idade para entender ou, ao menos, fruir um clássico?
Um clássico é composto de várias camadas que são descascadas aos poucos e nos revelam significados insuspeitados por toda a vida. Quando o lemos aos 15 anos temos uma apreensão, aos 30 outra e aos 80, com certeza, outra. Quem mudou, o clássico ou eu?
4. O que prevalece na leitura de um clássico: o simples prazer ou algum sentimento mais imponderável?
Creio que os dois. Em um momento o prazer de estar lendo algo que transcende as suas questões comezinhas, ou a algo esteticamente irreparável e em outro o sentimento de ter sido tocado por algo da obra que não conseguimos com clareza definir.
5. Por fim, liste obras clássicas nos últimos 50 anos na literatura e na música.
Olha, vou resistir ao canto de sereia de querer colocar o que para mim tem alguma relevância como sendo algo que pudesse ter relevância para outras pessoas. No final das contas cada um tem que fazer o seu próprio caminho, e olha que eu disse fazer, e não trilhar.
E aí leitor cúmplice, quais são as obras que você considera clássicas nos últimos 50 anos?
15 outubro 2009
Hipersexo
Talvez fosse melhor me explicar e dizer que não quero necessariamente as verdinhas que advém do milagre da multiplicação das edições multilingües, não invejo aquele acontecimento que nos torna encantados e encantadores a todos os editores e leitores do planeta, que nos disputam à tapas, beijos e seduções, pagam isto e aquilo, e mais aquilo outro para nos ter em sua casa, casa da palavra, casa do saber, casa de papel.
O verdadeiro sábio diria que há caminhos no céu que só os pássaros conhecem, e como eles sabem se guiar, sem marcas, placas, sem trombadas, tropeços, a não ser quando um helicóptero, claro, pilotado por um humano vesgo os atropela, ou melhor os estraçalha sem nem perceber que acabou de dizimar uma vida, ou a de um bando, mas voltando ao assunto, estou tergiversando, talvez embriagado por este lampejo epifânico de sabedoria que me veio neste instante, o sábio realmente diria que há trajetos nos mares e rios manjadíssimos pelos peixes que de olhos fechados ou abertos, tanto faz, os percorrem e sempre vão onde querem, chegam onde desejam, se é que peixe deseja alguma coisa, peixe não chora vocês já repararam?, embora alguns poetas japoneses em seus tankas, ou seriam tanques, vislumbrem lágrimas nos olhos dos peixes e até dos sapos, mas que eles sofrem, sofrem, talvez, não mais do que nós, que não conhecemos nem caminhos nos céus, nem nos mares, muito menos na terra, a não ser aqueles caminhos áridos e já enlameados de sangue percorridos por todos em nossa triste história recente e sem fim.
Mas vocês querem apostar quanto que esse texto inspiradamente confuso, genial dirão alguns, melodramático dirão outros, carente de revisão, dirão meus amigos revisores, jornalistas de plantão, ilegível, diria Oscar Wilde, esse texto com a pontuação esdrúxula e mal usada como se fosse um copião medíocre de nosso amado Saramago, o mago da língua portuguesa, embora eu prefira lobos a magos, não, não, o verdadeiro mago de nossa língua é o Paulo, sim, o Coelho, o cara realmente é mago, cura, descura e não sara, quer sempre mais, agora quer escrever bem, e até que vem conseguindo, já tem até fardão, mas o que eu ia dizendo é que vocês, leitores atentos, querem apostar quanto, mesmo, de que esse texto que agora termina vai estar na lista dos mais acessados do Google, só porque tem no título a palavra que anima até os santos: SEXO, SEXO, SEXO?