O ficcionista italiano
Italo Calvino deu o mote ao que deverá ser a busca de qualquer projeto literário contemporâneo consistente:
a leveza. Calvino coloca a literatura como uma função existencial e a busca da leveza como uma reação ao peso de viver. A leveza como um valor a ser buscado na carpintaria da literatura, na
poiésis diária que subtrai com afinco o peso do que é pesado, seja de figuras humanas, corpos celestes, cidades, estruturas da narrativa, ou da própria linguagem.
A leveza poderá emergir quando o autor, associado à precisão e à determinação (nunca ao vago ou aleatório), despojar a linguagem de seu excesso de indumentária e tecer uma escritura sem suspensórios — como diz o poeta Manoel de Barros. Ela poderá ser encontrada nas narrações e descrições que comportem um alto grau de abstração ou pela criação de imagens figurativas da leveza que possam assumir um valor emblemático e gerar possíveis epifanias.
A força do autor contemporâneo reside na recusa da visão direta, assim como a força de
Perseu — para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar — sustentou-se sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento e, sobretudo, ao dirigir seu olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, uma imagem capturada no espelho de seu escudo.
Uma bela alegoria da relação do poeta com o mundo, revelou-nos Calvino, e uma lição definitiva do processo de continuar escrevendo, apesar de tudo e de todos.
No século passado, século de duas guerras mundiais, duas bombas atômicas, de Auschwitz-Birkenau, de tantas guerras civis e devastações, se tornou categórica a “missão” do escritor em refletir, questionar e problematizar a vida e o seu mundo. Muitos se transformaram em estátuas no processo e não puderam escapar ao olhar inexorável da Medusa, deixando que o pesadume, a inércia e a opacidade do mundo aderissem à sua escrita, sem encontrar meios de driblá-los.
Na primeira de suas seis propostas para o próximo milênio, Calvino diz:
“Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos...”
Deixa bem claro, Calvino, que esta busca não é uma fuga da realidade do mundo, nem o abraçar inconsciente do sonho e do devaneio. A busca da leveza está associada à agilidade e à capacidade de revelar o imprevisível, de sobrelevar o peso do mundo, demonstrando que sua gravidade detém a chave da leveza.
Calvino lembra uma citação do poeta
Paul Valéry que diz: “É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma”.
Uma pluma é tão leve que é levada por qualquer sopro, enquanto o pássaro depende da gravidade do mundo para pairar sobre ele e dirigir o seu bico para o horizonte que lhe aprouver.
Buscar o antigo instante mais leve que o próprio pássaro, como no poema de
Cecília Meireles:
LevezaCecília MeirelesLeve é o pássaro:
e a sua sombra voante,
mais leve.
E a cascata aérea
de sua garganta,
mais leve.
E o que lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto,
mais leve.
E o desejo rápido
desse mais antigo instante,
mais leve.
E a fuga invisível
do amargo passante,
mais leve.
O escritor contemporâneo, na construção de seu projeto literário, deve ter um
plano de vôo (
um projeto) com uma estrutura leve como a ossada de um passarinho, cujo objetivo maior seja o de fazer com que o leitor e o texto decolem juntos e, por que não, o próprio autor.
Algumas
dicas práticas, referentes ao trabalho com o texto, são sempre bem-vindas. Façamos bom proveito delas:
1) O toque de leveza transforma as frases explícitas do texto em sutilezas que surpreendem e cativam o leitor impelindo-o a continuar na viagem.
2) Aparar as pontas das palavras gastas pelo uso, das frases vazias, das observações desnecessárias e das descrições muito longas.
3) Saber a hora de evitar um adjetivo desnecessário.
4) Saber eliminar um advérbio cujo sentido já está implícito no verbo da frase. Evitar as explicações. O leitor deverá compreender, por si mesmo, a trajetória do texto em voo.
5) Mantê-lo (o leitor) ligado no texto, evitando repetições e remissões.
6) O excesso de gordura e peso de um texto advém de nosso medo pessoal (a escritura não é lugar de uma terapia pessoal), de nossa ansiedade, da pressa (o afã de ser reconhecido, de publicar, de marcar presença) ou da pressão externa (aceitar prazos que não sejam os de sua própria criação).
7) Esvaziar a linguiça (enchê-la qualquer um faz, esvaziá-la com estilo é o desafio). Frases extras diminuem o ritmo e tornam o texto enfadonho.
8) Aprender a reescrever o texto quantas vezes forem necessárias (não esquecer a prática ensinada por João Cabral ou por João Gilberto) para deixá-lo respirar aliviado e airoso. Sim, leveza não é só cortar, mas, também, reescrever, redistribuir palavras, frases, ideias, enfim, reorganizar.
9) Ouvir a melodia do texto e buscar a harmonia necessária. Onde está a tônica, a terça e a quinta de seu texto? A terça é menor ou maior? O acorde precisa de uma sétima menor, uma nona? Você quer realçar o trítono?
10) O ritmo do texto entra em consonância e no compasso da tônica, seja ela uma imagem, uma ideia, uma palavra. Ao ler em voz alta os sons do tecido textual poderão nos alertar para cacofonias e inadequações em vários níveis.
11) Literatura busca ambiguidade, mas não a confusão. De confusão o mundo está cheio. O escritor, assim como o músico, surge para colocar ordem no caos, mesmo que seja uma ordem não reconhecida em um primeiro momento, uma ordem caótica.
12) Ter consciência de que técnica e background (um autor sem vivências, sem leitura, sem o sofrimento, sem a alegria, sem o desespero, pode ser facilmente substituído por uma máquina de produzir textos sem ossatura) são duas coisas totalmente diferentes e igualmente importantes para um escritor.
13) Nunca deixar de buscar um estilo próprio e pessoal de escrita. Parece redundância, mas é a coisa mais difícil de se alcançar. Estar só sem desprezar o mundo e os seres é um exercício digno de um Buda.
Os ossos da escrita são colosso.